Notícias dão conta de irregularidades na aquisição, pela Administração Pública, de insumos de saúde para combater a covid-19: superfaturamento, pagamento antecipado, equipamentos não entregues. Em condições normais, seriam irregularidades graves. Porém, o combate a uma pandemia não é normal. É preciso separar atos inusuais, mas necessários diante da urgência, de atos deliberadamente ímprobos, a serem punidos com rigor.
A emergência de saúde pública cria um “novo normal”. Seria irrazoável esperar todo um procedimento licitatório, ou mesmo de pesquisa de preços, correndo o risco de colapso do sistema. Não pagar antecipado implicaria perder o fornecimento para outro Estado ou país que o faça. A noção de sobrepreço deve ser colocada no contexto de uma oferta limitada e uma demanda exponencialmente aquecida. Exigir tradição do fornecedor é incompatível com a ampliação da oferta.
Leis recentes abrigam essa excepcionalidade. Foram ampliadas as hipóteses de dispensa de licitação, flexibilizadas exigências na cotação de preços e elaboração de projetos. Recente MP permite pagamento antecipado a fornecedores. A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro subordina o controle dos atos às “dificuldades reais do gestor”. Isso não autoriza a negligência ou, pior, o locupletamento.
A documentação das compras deve caracterizar a necessidade urgente, as razões da escolha daquele fornecedor diante da escassez; o preço, mesmo elevado, deve ser justificado. Essa documentação pode ser concluída mesmo após a compra, já que a doença dispensa formalidades. Boa ideia seria a criação ou articulação de banco de dados nacional de preços dos principais insumos. Importações devem, na medida do possível, dispensar intermediários.
No Ensaio sobre a Cegueira, Saramago nos conta que, numa imaginada epidemia, uma nova regra se impõe. Resta evitar que ela não permita nem o justiçamento do administrador de boa fé, nem a proliferação do vírus da incúria administrativa.
* Floriano de Azevedo Marques Neto é professor de Direito Administrativo e Diretor da Faculdade de Direito da USP