Mais incisivo na forma e no conteúdo, e em alguns momentos até mais agressivo do que em discursos anteriores, dentro e fora do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro manteve na sua estreia na abertura da Assembleia-Geral da ONU o ponto central da personalidade do seu governo: a ideologia - termo, aliás, citado cinco vezes em vinte minutos.
Ao iniciar o discurso, no ataque e em tom grave, ele disse ao mundo algo bastante questionável entre políticos, juristas, analistas e estudiosos: que o Brasil esteve “à beira do socialismo” com seus antecessores diretos. Esteve mesmo? Quando? E o que caracterizou isso?
A história registrará, e a realidade mostra, que os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff cometeram erros graves e sucessivos, mas nenhum dos dois tentou implantar socialismo nenhum. Até porque sabiam que não havia e não há ambiente e a chance seria próxima de zero.
Além de atacar diretamente Cuba e Venezuela, o presidente brasileiro também mirou na Alemanha e na França. Citou os dois, não seus presidentes, e mandou recados nada sutis. Exemplo: “um ou outro país, em vez de ajudar (no combate às queimadas), embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa, com espírito colonialista”.
Evaporou-se a expectativa, e até o compromisso assumido por Bolsonaro, de baixar a poeira, reduzir a beligerância. Ao contrário, como registra o diplomata aposentado Rubens Barbosa, ex-embaixador em Washington, o presidente “não focou adequadamente as críticas ao meio ambiente e fez o contrário do esperado: ampliou os pontos de atrito no exterior”.
Com tantos dados importantes citados na véspera pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, sobre o combate aos incêndios, Bolsonaro preferiu manter o discurso ideológico, fazer meia dúzia de ácidas críticas à mídia, nacional e internacional, e atribuiu todos os problemas políticos e diplomáticos gerados por desmatamentos e queimadas a uma única fonte: “os ataques sensacionalistas por grande parte da mídia”.
Ele, aliás, foi contraditório. Apesar dos ataques aos governos anteriores, em todas as áreas, admitiu que, enquanto a França e a Alemanha usam mais de 50% de seus territórios para agricultura, o Brasil usa apenas 8% e, com uma exclamação, declarou: “61% do nosso território é preservado!. Faltou dizer graças a quem, ou ao que: aos governantes, às instituições, às ONGs, aos institutos científicos que monitoram a Amazônia e outros biomas.
Além de atirar em seus inimigos e externos e internos, atribuindo a facada da campanha a um “militante de esquerda”, o presidente também atacou o cacique Raoni – “usado como peça de manobra por governos estrangeiros” - e introduziu a sua candidata a líder indígena, a jovem Ysany Kalapalo, da Reserva do Xingu, que quase simultaneamente ao discurso já enfrentava um manifesto crítico a ela de 16 caciques indígenas. Pelo visto, o presidente não só ampliou os pontos de atrito “no exterior”, como disse Rubens Barbosa, mas também internamente.
De positivo destaca-se a forma. Jair Bolsonaro estava firme, bem treinado, manejou sem dificuldade o equipamento transparente e leu sem gaguejar, com voz clara e fluente. Destaque-se também o trecho em que ele refaz seu compromisso com a abertura da economia e a redução do risco para negócios, por meio da desburocratização e da desregulamentação.
Aliás, uma curiosidade: o presidente só citou um único ministro, Sérgio Moro, da Justiça, “um juiz que é símbolo no meu país”. Nenhuma referência, por exemplo, ao outro “superministro” do governo, Paulo Guedes, da Economia, igualmente importante no ambiente internacional.
No frigir dos ovos, Bolsonaro falou principalmente para seu público interno e para os líderes da direita emergente no mundo que concordam com ele, por exemplo, na delicada questão da “família”. Segundo o presidente brasileiro, “a ideologia se instalou no terreno da cultura, da educação e da mídia, dominando meios de comunicação, universidades e escolas”. Olha aí mais “pontos de atrito”...
Para ele, a ideologia invadiu até “os nossos lares para investir contra a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família (...), pervertendo até mesmo sua identidade mais básica e elementar, a biológica”. Muito ideológico e abstrato, o presidente foi pouco objetivo e propositivo. Exportadores, produtores e diplomatas esperavam muito mais.
Ah! O presidente prometeu paz, democracia, liberdade de expressão, mas os grandes ausentes do discurso foram a pobreza, a miséria, a desigualdade social, ou seja, os mais cruéis males brasileiros.