A Associação Nacional de Jornais (ANJ) manifestou “repúdio e preocupação” com os ataques sofridos pelo Estadão e seus profissionais, desde de que o jornal passou a publicar reportagens que revelam o acesso da mulher do chefe do Comando Vermelho no Amazonas a gabinetes do Ministério da Justiça. Em nota divulgada nesta segunda-feira, 20, a entidade se junta a profissionais de diferentes áreas, que também criticaram as tentativas de intimidação insufladas por líderes partidários, membros e apoiadores do governo e influenciadores.
“O uso de métodos de intimidação contra veículos e jornalistas não se coaduna com valores democráticos e demonstra um flagrante desrespeito à liberdade de imprensa. Também evidencia uma prática característica de regimes autocráticos de, com o apoio de dirigentes políticos, sites e influenciadores governistas, tentar desviar o foco de reportagens incômodas por meio de ataques contra quem as apura e divulga”, diz a nota da Associação. (leia a íntegra no fim da reportagem)
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Os ataques foram amplificados no último domingo, a partir de postagens no X (ex-Twitter) da presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, e do ministro da Justiça, Flávio Dino. Ambos faziam menção a matéria de um site simpático ao governo Lula, com informações falsas sobre o processo de produção das reportagens pelo Estadão.
Pouco depois, o youtuber Felipe Neto direcionou os ataques a Andreza Matais, editora-executiva de Política e chefe da sucursal do Estadão em Brasília. Em menos de duas horas, Neto apagou o post em que expunha a imagem da jornalista. Publicou outro, que tinha apenas o jornal como alvo. Nesta segunda-feira, o influenciador pediu desculpas por “expor sua foto ou incentivar qualquer tipo de perseguição contra ela”. Contudo, reiterou críticas à conduta da profissional e ao jornal.
“Esperava-se que a prática de destruir reputações em vez de debater os argumentos tivesse sido interrompida depois da última eleição. Infelizmente, isso não ocorreu. A melhor maneira de lidar com as divergências é com mais liberdade de imprensa, não menos. Preocupa a perseguição de pessoas em vez do debate sobre as ideias e os fatos”, disse o economista Marcos Lisboa, ex-presidente do Insper e ex-Secretário de Política Econômica do primeiro governo Lula. Lisboa procurou o Estadão para prestar solidariedade ao jornal e a Andreza.
“Remontam o ‘gabinete do ódio’ e reclamam de ‘falsa simetria’. O que estão fazendo contra Andreza Matais é uma vergonha”, postou no X o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central.
Políticos de diferentes partidos também se manifestaram nas redes sociais.
“Minha solidariedade à jornalista Andreza Matais, alvo de ataques nefastos que devem ser condenados por todos que defendem a liberdade de imprensa e a democracia”, escreveu o deputado federal Baleia Rossi (MDB-SP).
“Os ataques do governo do PT e de seus aliados ao Estadão e aos seus jornalistas, pelas matérias sobre a ‘Dama do Tráfico’, apenas confirmam o viés autoritário do partido. Convive mal com o contraditório”, postou o senador Sergio Moro (União Brasil-PR).
“Matéria do Estadão mostra o lobby do crime organizado em agendas oficiais em dois Ministérios, com passagem e estadia pagas pelo governo. Qual foi a reação do PT? Atacar a jornalista”, publicou o presidente do Partido Novo, Eduardo Ribeiro.
Jornalistas e analistas de diversos veículos também condenaram os ataques à jornalista Andreza Matais e ao jornalismo profissional.
“Se o jornalismo brasileiro tem vergonha na cara, agora é a hora de tuitar, fazer carinha de nojo no telejornal e digitar ‘tempos sombrios’, mas é pedir muito para o estado atual das coisas. Viva o Estadão e a ótima Andreza Matais”, escreveu o jornalista Milton Neves, da Rádio Bandeirantes e do UOL.
“O que estão fazendo com a Andreza Matais, jornalista premiada, autora ou coordenadora de equipes que deram alguns dos furos mais importantes dos últimos anos (orçamento secreto, joias sauditas, pastores do MEC, para os que têm memória seletiva) é assédio vergonhoso. É misógino num grau nojento. Exposição da foto da jornalista à turba de linchadores, exposição de vida pessoal, questionamento sobre ‘quem financia’. Não faz muito tempo que vimos isso. Que vergonha”, disse Vera Magalhães, apresentadora do Roda Viva, da TV Cultura, colunista do jornal O Globo e comentarista da CBN.
“A Andreza Matais é uma jornalista primorosa. Conheci-a em Brasília, em 2015, quando era assessor econômico do Senador Serra. Todo meu apoio a ela, pelo trabalho sério e correto. Democracia só combina com imprensa livre”, frisou Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo, colunista do Estadão e do UOL e professor do IDP.
Ministério da Justiça admitiu erro e mudou procedimento para reuniões
O Estadão revelou que Luciane Barbosa Farias teve acesso ao Ministério da Justiça no dia 13 de novembro. Casada há 11 anos com Clemilson dos Santos Farias, o Tio Patinhas, líder do Comando Vermelho no Amazonas, a “dama do tráfico” esteve pela primeira vez no Palácio da Justiça no dia 19 de março, em uma reunião com Elias Vaz, secretário Nacional de Assuntos Legislativos. Ela voltou dia 2 de maio, para reunião com Rafael Velasco Brandani, titular da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).
Procurado antes da publicação da primeira reportagem, o ministério chefiado por Flávio Dino confirmou a presença de Luciane na comitiva para ambas as reuniões, mas afirmou que era “impossível” o setor de inteligência detectar previamente a presença dela.
Responsável por pedir as duas reuniões, a advogada Janira Rocha, ex-deputada pelo PSOL do Rio de Janeiro, recebeu três depósitos bancários do “contador” do Comando Vermelho do Amazonas, segundo investigação da Polícia Civil amazonense. As transferências ocorreram dias antes da primeira reunião. É o nome de Janira que consta na agenda do ministério em ambos os encontros.
Já com a matéria no ar, diante da repercussão do caso, Vaz assumiu para si a culpa pela entrada da “dama do tráfico” no Ministério. “Se teve algum erro, esse erro foi de minha parte por não ter feito uma verificação mais profunda das pessoas que eu iria receber”, disse o secretário.
No mesmo dia, o ministério elaborou portaria alterando as regras de acesso à pasta. As novas normas exigem: envio de nome e CPF dos participantes de reunião ou audiência com antecedência mínima de 48 horas; reuniões ou audiência devem ser solicitadas por e-mail para fim de avaliação; todo visitante deve ser atendido na recepção do Palácio da Justiça ou dos anexos para identificação e orientação.
Além do Ministério da Justiça, Luciane esteve na Câmara dos Deputados e no Conselho Nacional de Justiça. No início de novembro, participou de evento em Brasília sobre prevenção e combate à tortura com passagens e diárias custeadas pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
O Estadão ainda revelou inconsistência em outra justificativa apresentada pelo Ministério da Justiça. A pasta disse que não tinha dado andamento às demandas de Luciane em nome da ONG “Instituto Liberdade do Amazonas”, da qual é presidente. O sistema do Ministério da Justiça, contudo, indica que o pleito da entidade tramitou durante dois meses e meio pela pasta.
Investigação da Polícia Civil do Amazonas mostra que a ONG presidida por Luciane teve despesas pagas pelo Comando Vermelho em fevereiro, um mês antes da primeira visita dela ao MJ.
“A reação furiosa orquestrada nas redes sociais contra jornalistas do Estadão em nada diminui a qualidade da apuração da reportagem sobre as intimidades da dama do tráfico com altos funcionários públicos. Ela mostra apenas a incapacidade de certos setores de conviver com o jornalismo independente”, afirmou o diretor executivo de jornalismo do Grupo Estado, Eurípedes Alcântara.
Leia a íntegra da nota da ANJ
“A ANJ acompanha com preocupação e manifesta seu repúdio às tentativas de intimidação contra O Estado de S. Paulo e sua editora de Política, Andreza Matais, depois de o jornal ter divulgado o acesso da mulher de um líder do crime organizado no Amazonas a gabinetes do Ministério da Justiça.
O uso de métodos de intimidação contra veículos e jornalistas não se coaduna com valores democráticos e demonstra um flagrante desrespeito à liberdade de imprensa. Também evidencia uma prática característica de regimes autocráticos de, com o apoio de dirigentes políticos, sites e influenciadores governistas, tentar desviar o foco de reportagens incômodas por meio de ataques contra quem as apura e divulga.
A ANJ espera que tais métodos de intimidação, sobretudo contra jornalistas mulheres já empregados no passado recente, cessem imediatamente, em nome do respeito à liberdade de imprensa e à livre atuação do jornalismo e dos veículos de comunicação.
Brasília, 20 de novembro de 2023.
Associação Nacional de Jornais - ANJ”