BRASÍLIA – Dos 37 indiciados pela Polícia Federal por tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, um é estrangeiro. O argentino Fernando Cerimedo protagonizou transmissões ao vivo, em 2022, com informações falsas sobre o sistema eletrônico de votação do Brasil. As “lives” serviram, segundo a investigação, para criar um ambiente propício para o golpe que impediria a ascensão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O argentino é um amigo de longa data do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que foi recebido por ele em Buenos Aires poucas semanas antes da votação em segundo turno e da principal “live” que rendeu a Cerimedo o indiciamento por integrar o “Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral” do esquema golpista.
A proximidade de ambos levou Eduardo Bolsonaro a contratar um aliado da estrita confiança de Cerimedo como prestador de serviço na campanha à reeleição. Giovanni Larosa recebeu R$ 3,9 mil para trabalhar pela reeleição do “zero três” de Bolsonaro e para promover o brasileiro no La Derecha Diário, canal controlado por Cerimedo.
Eduardo Bolsonaro não está entre os indiciados – nem os demais herdeiros políticos do ex-presidente. Procurado para comentar a relação com o argentino, por meio do gabinete, não se manifestou. Fernando Cerimedo nega que tenha atuado em campanha de desinformação e promete apelar a tribunais internacionais caso seja denunciado (leia mais abaixo).
Fernando Cerimedo conta que conheceu Eduardo ainda em 2010, durante uma viagem aos Estados Unidos. Na campanha de 2022, ele se apresentava como “consultor do Bolsonaro pai no Brasil”. No ano passado, ressurgiu como estrategista digital da campanha de Javier Milei, presidente da Argentina.
As “lives” de Cerimedo seriam uma etapa da intentona golpista e serviram para que aliados do então presidente Jair Bolsonaro (PL) propagassem dúvidas sobre a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva.
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A primeira delas foi ao ar em 4 de novembro de 2022, cinco dias após a derrota de Bolsonaro e chegou a ter mais de 400 mil pessoas assistindo simultaneamente. Àquela altura, havia pontos de bloqueio em estradas brasileiras formados por apoiadores de Bolsonaro inconformados com o resultado da eleição.
Os argumentos da suposta fraude, disseminados por outros influenciadores à direita, serviram de combustível político. O principal argumento apresentado por meio do que até então era um dossiê apócrifo era o de que cinco modelos de urnas eletrônicas usadas na eleição daquele ano registraram mais votos para Lula do que para Bolsonaro. Esses modelos, dizia o argentino, não teriam sido submetidos a teste de segurança.
Essa informação é falsa porque todos os modelos da urna já tinham sido submetidos a análises. Os argumentos do argentino não consideraram o fato de Bolsonaro ter sido preterido pelos eleitores nas regiões em que ele foi superado por Lula. Um exemplo está nas urnas da terra indígena Vale do Javari, no Amazonas. A discrepância entre as votações recebidas pelos dois candidatos foi invocada na argumentação para apontar a suposta fraude. A localidade, entretanto, é notadamente antibolsonarista.
Em dezembro, Cerimedo fez uma nova transmissão. Mais uma vez, os argumentos falsos foram amplamente explicados e desmentidos pela imprensa e pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A atuação levou a PF a classificar Fernando Cerimedo como integrante do do “Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral” do esquema golpista. Além dele, o major da reserva do Exército Angelo Martins Denicoli.
Ao militar coube alimentar o argentino com as informações falsas e distorcidas que eram trocadas por uma pasta mantida na nuvem do Google Drive. As ligações foram reveladas ainda na etapa da Operação Tempus Veritatis, deflagrada em fevereiro.
Segundo a PF, esse núcleo atuou para “produção, divulgação e amplificação de notícias falsas quanto a lisura das eleições presidenciais de 2022 com a finalidade de estimular seguidores a permanecerem na frente de quartéis e instalações, das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o golpe de Estado”.
Na Tempus Veritatis, a PF apontou ainda a participação do empresário Eder Balbino. Ele seria o responsável pelo estudo que sugeriu falsamente falhas em alguns modelos mais antigos de urnas. O PL o contratou por meio de um instituto para entregar o estudo que seria usado pelo esquema. Balbino não foi indiciado. O presidente do partido, Valdemar Costa Neto, sim.
Ao Estadão, Fernando Cerimedo afirmou que os vídeos dele não tiveram nenhuma relação com o 8 de Janeiro. “Questionar resultados (das eleições) não pode ser tomado como golpe de Estado. Se for, irei a tribunais internacionais”, disse. Valdemar se disse injustiçado e que “a PF tem que prender traficantes, não Bolsonaro”. A reportagem não localizou a defesa do major Angelo Denicoli.