A ascensão de líderes, ideias e movimentos autoritários, populistas e nacionalistas em diversas democracias maduras, com destaque para a eleição de Trump nos Estados Unidos da América (2016), e em mais recentemente estabelecidas, como a vitória de Bolsonaro no Brasil (2018), levaram a um grande debate sobre retrocessos democráticos e riscos de colapso da democracia sem a ocorrência de processos violentos de ruptura, como golpes militares. Ocorre que, tanto Trump (2020) como Bolsonaro (2022) foram derrotados em suas tentativas de reeleição e, apesar de contestações infundadas aos resultados e atos violentos, Biden e Lula foram empossados e exercem seus mandatos. Diante disso, uma questão fundamental é: não obstante a existência de um movimento populista autoritário e a chegada de seu líder ao poder, as instituições brasileiras estão sendo capazes de garantir a estabilidade do regime democrático?
Para responder a essa questão, inicialmente, é preciso fazer algumas distinções conceituais. Há paradoxos que, embora passíveis de diversas ordens de críticas, são inerentes ao próprio modelo de democracia liberal-representativo, sendo o maior deles a convivência de um regime político fundado na igualdade entre todos os cidadãos inserido em um sistema econômico que se estrutura a partir da lógica da acumulação e da desigualdade. Também existem problemas de qualidade da democracia, como a hiperfragmentação partidária e os vícios na formação das coalizões de governo. Os paradoxos e os problemas de qualidade da democracia, a depender de seu grau e de suas características, podem contribuir com a ocorrência de uma crise, porém não se confundem com ela, assim como conflitos e instabilidades inerentes à política democrática e processados pelas instituições. Devemos, enfim, distinguir, a crise emergente da crise estrutural da democracia - a primeira se refere justamente à ascensão e chegada ao poder de movimentos e líderes populistas e autoritários que atacam a institucionalidade democrática; já a segunda corresponde aos problemas de fundo que explicam a ascensão do autoritarismo e os retrocessos democráticos.
Separemos, então, a discussão da questão proposta em duas partes. No que se refere ao que denominamos de "crise emergente" da democracia, observamos que as instituições estão sendo apenas parcialmente capazes de garantir a estabilidade do regime democrático e enfrentam grandes desafios.
Por um lado, diversas tentativas de avanços autoritários, como o desrespeito à divisão de competências federativas durante a pandemia, foram contidas pelas instituições, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal. No mesmo sentido, apesar dos infundados questionamentos sobre o sistema eleitoral, da recusa de Bolsonaro em aceitar a derrota e de seus persistentes propósitos golpistas, o processo de votação transcorreu dentro da normalidade, o resultado das eleições foi reconhecido pelas instituições (TSE, STF, Congresso Nacional etc.), o Presidente Lula tomou posse e iniciou seu governo. Diante dos atos criminosos, golpistas e terroristas do último dia 8 de janeiro, a resposta institucional também foi rápida, firme e harmônica: o decreto de intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal foi aprovado pelo Congresso Nacional em decisão quase unânime (exceção feita a senadores que parecem compactuar com o golpismo), o Ministério da Justiça e o STF tomou as medidas necessárias para identificação e responsabilização penal e civil dos envolvidos, os chefes dos três Poderes da República e os Governadores de todos os Estados manifestaram de forma uníssona seu repúdio aos atos, e a sociedade civil também deu sua resposta.
Por outro lado, o avanço do golpismo só foi possível em razão de um processo de corrupção institucional. Emprego a palavra corrupção no sentido de que membros de instituições que deveriam atuar em defesa do Estado Democrático de Direito, por dolo ou omissão, contribuem com golpismo. Refiro-me à omissão (e provavelmente colaboração) de parte das forças de segurança do Distrito Federal e das Forças Armadas sem a qual os crimes praticados no dia 8 não teriam sido possíveis, bem como sua gestação nos acampamentos estabelecidos às portas dos quartéis. Mas não só: o processo é mais longo e complexo. Se o Congresso Nacional não tivesse se omitido em face das inúmeras quebras de decoro parlamentar praticadas por Bolsonaro e cassado seu mandato de deputado federal, ele nem teria sido candidato a Presidente. Da mesma forma, se tivesse sido instaurado processo de impeachment diante dos inúmeros crimes de responsabilidade que ele praticou, também não teríamos chegado a esse estado de coisas - aqui, é importante ressaltar, a responsabilidade é compartilhada por partidos, organizações da sociedade e veículos da imprensa que foram demasiadamente tolerantes com Bolsonaro e, alguns deles, inclusive, ajudaram a forjar o bolsonarismo. Não fosse a omissão do Procurador-geral da República, a situação também poderia ser bastante diferente. Durante o próprio processo eleitoral, a reação em face aos abusos de poder político e econômico, além da produção de mentiras em escala industrial, foram tardias e insuficientes, distorceram a competição política em favor de Bolsonaro. Por fim, ressaltamos o gravíssimo problema da "bolsonarização" de parcelas significativas das forças de segurança pública e das Forças Armadas (e sua postura autoritária - que não é nova, registre-se) as quais devem se submeter à Constituição e são subordinadas ao poder civil democraticamente eleito.
Esse quadro indica que o novo Governo e demais instituições do Estado e da sociedade civil terão grandes desafios para superar a corrupção institucional, e assim enfrentar a crise emergente da democracia brasileira. Entretanto, o maior desafio se encontra na crise estrutural da democracia, a qual compreende, por exemplo, as transformações tecnológicas e socioculturais que não foram acompanhadas por mudanças institucionais capazes de promover a adequada mediação dos conflitos sociais em um contexto bastante diferente daquele em que foram construídas. Esse aspecto mais profundo da crise ainda não está devidamente colocado como prioridade no debate público e nas instituições de representação política - o que precisa ser feito, caso contrário, ainda que superada a atual crise emergente da democracia, outra poderá ocorrer a qualquer momento.
*Murilo Gaspardo, 40 anos, é vice-diretor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, câmpus de Franca - SP. Livre-docente em Teoria do Estado pela Unesp, é doutor, mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Dentre outras obas, é autor de Democracia e governança financeira global (Alameda, 2021)
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção