Em meados de 2017, uma escola filosófica do século III a.C. ressurgiu no Vale do Silício: o Estoicismo. Verdade seja dita, ela nunca desapareceu por completo, tendo influenciado diversas personalidades ao longo da história, como George Washington, Adam Smith, John Stuart Mill, Immanuel Kant, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Ralph Waldo Emerson. Recentemente, porém, ela voltou a ser popular, especialmente desde o início da pandemia da Covid-19. As vendas da versão digital de Cartas de um Estoico, de Sêneca, aumentaram 356% no primeiro semestre de 2020 em comparação com 2019. E a venda desse livro na versão impressa cresceu em 42% no mesmo período¹. Qual seria o motivo disso?
Algumas hipóteses: o Estoicismo é prático, dialogando com a mentalidade dos nossos tempos. De que adianta uma bela filosofia de vida que não se traduz em ações? Além de prático, é também objetivo - não por acaso muitas de suas obras canônicas têm um tom de "manual" sobre como viver a vida, sem floreios ou devaneios. Por último, seus ensinamentos vão na direção de virtudes que, indiscutivelmente, precisam ser cultivadas hoje e sempre: sabedoria, coragem, justiça e moderação.
A obra mais difundida do filósofo estoico Lúcio Aneu Sêneca data de cerca de 49 d.C., sendo uma compilação de cartas com teor de ensinamentos a Paulino (provavelmente Pompeius Paulinus). Poderiam tranquilamente terem sido escritas hoje e endereçadas a todos nós. A obra Sobre a brevidade da vida. Sobre a firmeza do sábio oferece ensinamentos importantes que podem influenciar a forma como você encara o ano que começa (e a própria vida) - vejamos dois deles.
#1: A VIDA É LONGA O BASTANTE.
É comum ouvir a frase "a vida é curta". No entanto, Sêneca abre sua carta a Paulino dizendo justamente o contrário: "Não dispomos de pouco tempo, mas desperdiçamos muito"² (p. 9). Para o filósofo, a vida não é breve pelo tempo que dispomos, mas se torna breve pelo uso de que fazemos dele. Segundo os estoicos, usa-se bem o tempo cultivando a sabedoria, as virtudes, o aperfeiçoamento do próprio caráter e das próprias ações.
A ideia de que a vida é longa o bastante dialoga diretamente com um dos conceitos fundamentais do Estoicismo: Memento Mori. Essa expressão poderia ser traduzida como "lembre-se da morte" ou "lembre-se de que você vai morrer". Sua reflexão sobre a impermanência da vida deveria incentivar não uma vida "curta", sinônimo de extrair o máximo de prazeres do presente, mas sim para tomar como precioso cada instante dela para o próprio aperfeiçoamento. "Viveis como se sempre havereis de viver, nunca vos ocorreu vossa fragilidade, não observais quanto tempo já transcorreu. Desperdiçais como se de uma fonte plena e abundante, quando, nesse ínterim, exatamente aquele dia que é doado a uma pessoa ou a uma tarefa talvez seja o último. Tendes medo de tudo como mortais, desejais tudo como imortais." (p.12).
Na prática:
- Ao acordar, tome alguns instantes para realizar que está vivo agora, e que este pode ser seu último dia. Como seria um dia bem vivido?
- Durante o dia, programe um ou dois alarmes. Nestes momentos, tome alguns instantes para lembrar-se de que o tempo presente é brevíssimo. Estou fazendo o melhor uso do meu tempo agora?
#2: SÓ É LIVRE QUEM É SÁBIO.
A dicotomia do controle, lição formulada pelo filósofo estoico Epiteto, diz basicamente sobre a sabedoria de distinguir entre o que está sob o seu controle e o que não está. Segundo essa lição, o homem pode exercer controle apenas sobre si mesmo: sobre o próprio juízo, impulso, desejo e repulsa. As outras pessoas e o que pensam, dizem ou fazem, bem como os acontecimentos da vida em geral estão, essencialmente, fora do domínio do indivíduo. A grande lição dessa filosofia é apontar para o equívoco comum de se tornar obcecado em controlar o que não se pode controlar e abdicar do controle do que se pode, ou seja, tentar insistentemente fazer o impossível para controlar as outras pessoas, por exemplo, sem conseguir exercitar a única alternativa possível, que é controlar a si mesmo. Sobre isso, Sêneca diz: "Liberdade é situar o ânimo acima das injúrias e constituir-se como um ser cuja felicidade lhe venha unicamente de si; é separar de si os eventos exteriores para não ter de levar uma vida atormentada, a temer o riso de todos, a língua de todos." (p.61). Só é livre, portanto, quem é sábio o bastante para ter a si mesmo sob controle.
Para os filósofos estoicos, só existe mal-estar quando há resistência à realidade que se impõe. Partindo da premissa de que não se pode controlar as outras pessoas ou os acontecimentos em geral, é ilógico deixar-se perturbar pelo que os outros podem fazer ou pelos fatos fora do próprio domínio. Daí surge a expressão latina Amor Fati que denota a aceitação de todos os fatos, um conceito essencial do Estoicismo. Para Sêneca, quando uma pessoa se perturba por algum fato que lhe acometeu ou contra alguém que possa ter lhe feito mal, tal perturbação não ilustra injustiça ou sequer justifica a vitimização da pessoa em questão. Ao contrário, isso revela apenas sua própria falta de sabedoria. "Não é invulnerável algo que não recebe um golpe, mas aquilo que não sofre ferimento" (p.42).
Na prática:
- Em situações em que se sentir perturbado, aplique a Dicotomia do Controle. O que nessa situação está sob o meu controle? E, então: qual é a melhor forma de agir?
Que os ensinamentos de Sêneca ressoem no seu novo ano! "Ninguém vai restituir os teus anos, ninguém vai devolver-te de novo a ti mesmo. A vida segue a trajetória que iniciou e não retrocede ou detém seu curso. Não fará tumulto nem advertirá sobre sua velocidade: deslizará em silêncio." (p.19). Lembre-se: cada dia é tempo suficiente para exercitar sua sabedoria e liberdade. Feliz 2022!
*Flávia Sato é graduada em Comunicação Social pela Universidade Estadual Paulista, pós-graduada em Mindful Leadership pela New York University e em Gestão Emocional nas Organizações pelo Hospital Israelita Albert Einstein, e associada ao Instituto de Formação de Líderes de São Paulo - IFL-SP