O romance Quincas Borba, de Machado de Assis, inspira o título deste texto, pois contém uma reflexão que ajuda a pensar outros caminhos e possibilidades para as políticas de proteção do patrimônio cultural, quando impulsionadas apenas pelo temor da perda (ou morte) dos bens culturais pela destruição, demolição ou mutilação.
E se Rubião desejoso de entender o que é a morte e a vida, ao invés de indagar sobre a morte da avó de Quincas Borba, indagasse-lhe sobre a “morte” do patrimônio cultural, acredito que a resposta poderia ser a mesma, a de que
" - não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição de sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum” (Machado de Assis).
O patrimônio cultural está em constante disputa, sofrendo processos contínuos de expansão e de supressão, como explicado por Quincas Borba. Ele segue os influxos valorativos da sociedade que o envolve e da comunidade que os vivenciam. As disputas de poder que buscam controlar a memória e o esquecimento colocam em conflito os diversos interesses relacionados aos bens culturais, cujo resultado, como afirmado pelo personagem machadiano, não lhe causa a morte, pois o patrimônio cultural está imerso na noção de continuidade histórica reveladora da ideia de que também estamos gestando no presente (neste momento) os bens que irão, no futuro, integrar o patrimônio cultural.
Neste sentido, o alerta de Le Goff de que os esquecimentos e os silêncios da história revelam os mecanismos de manipulação da memória coletiva, acende o alerta para os usos do patrimônio cultural neste campo de disputas, em que se ocultam as faces dolorosas da história atreladas ao patrimônio cultural, para se construir uma narrativa idealizada de uma época, que se reproduz ao longo do tempo de forma acrítica.
Esclarecedora desta disputa é a fala do professor Túllio Scovazzi durante o XIII Encontro Internacional de Direitos Culturais, ocorrido Ceará, que ao abordar os aspectos críticos da interpretação e apresentação do patrimônio cultural para o seu reconhecimento pela Unesco como patrimônio da humanidade relatou uma complexa discussão envolvendo o Japão e a Coreia em relação ao reconhecimento do patrimônio cultural solicitado pelo Japão relacionado ao início da modernização e industrialização iniciada na Era Meiji.
A Coreia desencadeia referida discussão porque na apresentação e interpretação deste patrimônio cultural pelo Japão perante a Unesco foi omitido relevante fato histórico: a ocupação da Coreia pelo Japão que perdurou de 1910 até o final da Segunda Guerra Mundial, que utilizou o trabalho forçado dos coreanos, que foram levados forçadamente ao Japão para trabalhar nas referidas indústrias.
Com isso, a Coreia protestou contra o reconhecimento do referido patrimônio cultural porque estava repleto de silêncios históricos intencionalmente manipulados. Mas, após longas negociações, chegou-se a um acordo para reconhecer ao bem cultural toda a sua história, sem omissões e sem silêncios, o que viabilizou a sua inclusão na lista da Unesco.
Essa disputa entre a Coreia e o Japão mostram que, contrariamente ao que pregou Quincas Borba sobre a guerra, nos conflitos que envolvem o patrimônio cultural é possível comemorar e amar o que não lhe foi aprazível ou vantajoso no passado, porque é possível ressignificá-lo para que as feridas do passado se tornem cicatrizes com um novo significado.
Assim, nas disputas pelo patrimônio cultural, escolher dividir a batatas não levará à morte ou à inanição dos bens culturais, pois estes se constroem em comunidades que devem compartilhar as suas riquezas culturais que se traduzem nos objetivos dos direitos culturais, que são a dignidade, o desenvolvimento e a paz.