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Opinião|A controvérsia da tese do marco temporal no Brasil


Por Luísa Dresch*

A tese do marco temporal tem sido discutida no contexto dos direitos territoriais de povos indígenas no Brasil. Essa tese sustenta que os povos indígenas apenas têm direito às terras que estavam sob sua posse física, ou em disputa, no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988 (momento conhecido como o “marco temporal”).

Luísa Dresch Foto: Divulgação

De acordo com essa tese, somente as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas na data da promulgação da Constituição Federal (05 de outubro de 1998) seriam consideradas como suas terras legítimas. Essa interpretação visa a estabelecer limites temporais para a demarcação de terras indígenas, no sentido de que eventuais reivindicações sobre terras que estavam desocupadas ou ocupadas por terceiros após 1988 não seriam passíveis de reconhecimento.

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A escolha dessa data como “marco temporal” se baseia na ideia de que a Constituição de 1988 representou um momento de consolidação dos direitos e garantias fundamentais no país. Defende-se, portanto, que, a partir dessa data, as regras e princípios constitucionais passaram a ser a base para a organização social e jurídica do Brasil, incluindo as disposições relacionadas aos direitos dos povos indígenas.

Todavia, por definir uma data que, embora simbólica, não necessariamente leva em consideração a história dos povos indígenas e a dinâmica social e cultural dessas comunidades, a tese do marco temporal tem, há mais de uma década, sido objeto de controvérsias e críticas, especialmente por parte de organizações indígenas, antropólogos e defensores dos direitos humanos. Muitos deles argumentam que, dentre outras coisas, essa abordagem ignoraria a história de deslocamento forçado e violações dos direitos dos povos indígenas ao longo do tempo.

De fato, a discussão em torno da tese do marco temporal está inserida em um contexto mais amplo de disputas territoriais, direitos indígenas e proteção ambiental no Brasil. O debate jurídico sobre essa tese muitas vezes ocorre em âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), podendo as decisões judiciais ter impacto significativo na demarcação e proteção das terras indígenas. Nesse sentido, a tese (que surgiu em 2009 e foi adotada como critério no processo relativo à demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol) vinha sendo questionada e aguardava nova definição pelo STF.

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Em setembro deste ano, após anos de análise pelos Ministros da Suprema Corte, e em um dos maiores julgamentos da história, o STF derrubou, por 9 votos a 2, a tese do marco temporal. Restou decidido, portanto, que a data da promulgação da Constituição Federal de 1988 não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. A decisão refere-se ao RE 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031), tendo o Plenário fixado tese a servir de parâmetro de resolução de centenas de casos semelhantes que estavam suspensos aguardando tal definição.

Ocorre que, também em setembro, foi aprovada pelo Congresso Nacional nova lei que se apoia na tese do marco temporal (Lei 14.701/23). Vários artigos desta nova lei foram objetos de veto presidencial (Veto 30/2023), com fundamento na decisão do STF e na necessária segurança jurídica em relação ao tema. Contudo, na última semana, o veto foi objeto de análise pelo Congresso Nacional, tendo sido rejeitado.

Nesse sentido, voltaria a ser considerado o marco temporal?

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Se o STF não adota a tese do marco temporal em suas decisões e é promulgada uma nova lei que adota esse critério, a tendência é de que ocorra uma tensão entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo. Em sistemas democráticos, como o brasileiro, os Poderes são independentes, mas devem atuar dentro dos limites estabelecidos pela Constituição Federal. Assim, se uma nova lei é promulgada pelo Legislativo adotando o marco temporal, isso implicaria uma mudança nas regras para a demarcação de terras indígenas, estabelecendo limites temporais para o reconhecimento dessas terras. No entanto, ao mesmo tempo, isso não anula as decisões do STF que tenham reconhecido direitos territoriais dos povos indígenas com base em outros critérios, uma vez rejeitada a tese do marco temporal.

Surgindo um conflito de interpretação e aplicação da lei entre os tribunais e o legislador, o STF, como guardião da Constituição, tem a responsabilidade de analisar a constitucionalidade dessa nova lei e decidir se essa está em conformidade com os princípios constitucionais, incluindo aqueles relacionados aos direitos fundamentais dos povos indígenas.

Caso haja discordância entre o STF e o Legislativo sobre a validade da lei, a questão pode ser objeto de nova análise pela Suprema Corte. Essa dinâmica é inerente ao sistema de freios e contrapesos das democracias constitucionais, e a resolução dependerá do funcionamento do sistema jurídico e das instituições do país.

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É certo que a recente decisão do STF sinaliza, em princípio, uma tendência de manutenção do entendimento sobre a inconstitucionalidade da tese do marco temporal. Tal posicionamento parece decorrer de uma preocupação da Suprema Corte em preservar os direitos fundamentais dos povos indígenas, considerando não apenas a data da promulgação da Constituição vigente, mas também a complexidade histórica e social das relações entre essas comunidades e o território.

Nesse contexto, a dinâmica entre os Poderes Legislativo e Judiciário desempenhará um papel crucial na definição do panorama jurídico sobre os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil. Neste novo capítulo de fortes tensões relativas à questão da demarcação das terras indígenas, a busca por um equilíbrio entre a proteção desses direitos, a promoção do desenvolvimento sustentável e a preservação da ordem constitucional continuará a desafiar a sociedade brasileira, colocando em evidência a necessidade de um diálogo construtivo e embasado em princípios democráticos e humanitários. Do contrário, o ciclo relativo a essa (não) definição jamais terá fim.

*Luísa Dresch, advogada das áreas de contencioso cível estratégico e ambiental do escritório Silveiro Advogados, é Mestre em Direito com ênfase em Direito Civil e Empresarial pela UFRGS e pós-graduanda em Direito Ambiental e Gestão Estratégica da Sustentabilidade pela PUCSP

A tese do marco temporal tem sido discutida no contexto dos direitos territoriais de povos indígenas no Brasil. Essa tese sustenta que os povos indígenas apenas têm direito às terras que estavam sob sua posse física, ou em disputa, no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988 (momento conhecido como o “marco temporal”).

Luísa Dresch Foto: Divulgação

De acordo com essa tese, somente as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas na data da promulgação da Constituição Federal (05 de outubro de 1998) seriam consideradas como suas terras legítimas. Essa interpretação visa a estabelecer limites temporais para a demarcação de terras indígenas, no sentido de que eventuais reivindicações sobre terras que estavam desocupadas ou ocupadas por terceiros após 1988 não seriam passíveis de reconhecimento.

A escolha dessa data como “marco temporal” se baseia na ideia de que a Constituição de 1988 representou um momento de consolidação dos direitos e garantias fundamentais no país. Defende-se, portanto, que, a partir dessa data, as regras e princípios constitucionais passaram a ser a base para a organização social e jurídica do Brasil, incluindo as disposições relacionadas aos direitos dos povos indígenas.

Todavia, por definir uma data que, embora simbólica, não necessariamente leva em consideração a história dos povos indígenas e a dinâmica social e cultural dessas comunidades, a tese do marco temporal tem, há mais de uma década, sido objeto de controvérsias e críticas, especialmente por parte de organizações indígenas, antropólogos e defensores dos direitos humanos. Muitos deles argumentam que, dentre outras coisas, essa abordagem ignoraria a história de deslocamento forçado e violações dos direitos dos povos indígenas ao longo do tempo.

De fato, a discussão em torno da tese do marco temporal está inserida em um contexto mais amplo de disputas territoriais, direitos indígenas e proteção ambiental no Brasil. O debate jurídico sobre essa tese muitas vezes ocorre em âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), podendo as decisões judiciais ter impacto significativo na demarcação e proteção das terras indígenas. Nesse sentido, a tese (que surgiu em 2009 e foi adotada como critério no processo relativo à demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol) vinha sendo questionada e aguardava nova definição pelo STF.

Em setembro deste ano, após anos de análise pelos Ministros da Suprema Corte, e em um dos maiores julgamentos da história, o STF derrubou, por 9 votos a 2, a tese do marco temporal. Restou decidido, portanto, que a data da promulgação da Constituição Federal de 1988 não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. A decisão refere-se ao RE 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031), tendo o Plenário fixado tese a servir de parâmetro de resolução de centenas de casos semelhantes que estavam suspensos aguardando tal definição.

Ocorre que, também em setembro, foi aprovada pelo Congresso Nacional nova lei que se apoia na tese do marco temporal (Lei 14.701/23). Vários artigos desta nova lei foram objetos de veto presidencial (Veto 30/2023), com fundamento na decisão do STF e na necessária segurança jurídica em relação ao tema. Contudo, na última semana, o veto foi objeto de análise pelo Congresso Nacional, tendo sido rejeitado.

Nesse sentido, voltaria a ser considerado o marco temporal?

Se o STF não adota a tese do marco temporal em suas decisões e é promulgada uma nova lei que adota esse critério, a tendência é de que ocorra uma tensão entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo. Em sistemas democráticos, como o brasileiro, os Poderes são independentes, mas devem atuar dentro dos limites estabelecidos pela Constituição Federal. Assim, se uma nova lei é promulgada pelo Legislativo adotando o marco temporal, isso implicaria uma mudança nas regras para a demarcação de terras indígenas, estabelecendo limites temporais para o reconhecimento dessas terras. No entanto, ao mesmo tempo, isso não anula as decisões do STF que tenham reconhecido direitos territoriais dos povos indígenas com base em outros critérios, uma vez rejeitada a tese do marco temporal.

Surgindo um conflito de interpretação e aplicação da lei entre os tribunais e o legislador, o STF, como guardião da Constituição, tem a responsabilidade de analisar a constitucionalidade dessa nova lei e decidir se essa está em conformidade com os princípios constitucionais, incluindo aqueles relacionados aos direitos fundamentais dos povos indígenas.

Caso haja discordância entre o STF e o Legislativo sobre a validade da lei, a questão pode ser objeto de nova análise pela Suprema Corte. Essa dinâmica é inerente ao sistema de freios e contrapesos das democracias constitucionais, e a resolução dependerá do funcionamento do sistema jurídico e das instituições do país.

É certo que a recente decisão do STF sinaliza, em princípio, uma tendência de manutenção do entendimento sobre a inconstitucionalidade da tese do marco temporal. Tal posicionamento parece decorrer de uma preocupação da Suprema Corte em preservar os direitos fundamentais dos povos indígenas, considerando não apenas a data da promulgação da Constituição vigente, mas também a complexidade histórica e social das relações entre essas comunidades e o território.

Nesse contexto, a dinâmica entre os Poderes Legislativo e Judiciário desempenhará um papel crucial na definição do panorama jurídico sobre os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil. Neste novo capítulo de fortes tensões relativas à questão da demarcação das terras indígenas, a busca por um equilíbrio entre a proteção desses direitos, a promoção do desenvolvimento sustentável e a preservação da ordem constitucional continuará a desafiar a sociedade brasileira, colocando em evidência a necessidade de um diálogo construtivo e embasado em princípios democráticos e humanitários. Do contrário, o ciclo relativo a essa (não) definição jamais terá fim.

*Luísa Dresch, advogada das áreas de contencioso cível estratégico e ambiental do escritório Silveiro Advogados, é Mestre em Direito com ênfase em Direito Civil e Empresarial pela UFRGS e pós-graduanda em Direito Ambiental e Gestão Estratégica da Sustentabilidade pela PUCSP

A tese do marco temporal tem sido discutida no contexto dos direitos territoriais de povos indígenas no Brasil. Essa tese sustenta que os povos indígenas apenas têm direito às terras que estavam sob sua posse física, ou em disputa, no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988 (momento conhecido como o “marco temporal”).

Luísa Dresch Foto: Divulgação

De acordo com essa tese, somente as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas na data da promulgação da Constituição Federal (05 de outubro de 1998) seriam consideradas como suas terras legítimas. Essa interpretação visa a estabelecer limites temporais para a demarcação de terras indígenas, no sentido de que eventuais reivindicações sobre terras que estavam desocupadas ou ocupadas por terceiros após 1988 não seriam passíveis de reconhecimento.

A escolha dessa data como “marco temporal” se baseia na ideia de que a Constituição de 1988 representou um momento de consolidação dos direitos e garantias fundamentais no país. Defende-se, portanto, que, a partir dessa data, as regras e princípios constitucionais passaram a ser a base para a organização social e jurídica do Brasil, incluindo as disposições relacionadas aos direitos dos povos indígenas.

Todavia, por definir uma data que, embora simbólica, não necessariamente leva em consideração a história dos povos indígenas e a dinâmica social e cultural dessas comunidades, a tese do marco temporal tem, há mais de uma década, sido objeto de controvérsias e críticas, especialmente por parte de organizações indígenas, antropólogos e defensores dos direitos humanos. Muitos deles argumentam que, dentre outras coisas, essa abordagem ignoraria a história de deslocamento forçado e violações dos direitos dos povos indígenas ao longo do tempo.

De fato, a discussão em torno da tese do marco temporal está inserida em um contexto mais amplo de disputas territoriais, direitos indígenas e proteção ambiental no Brasil. O debate jurídico sobre essa tese muitas vezes ocorre em âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), podendo as decisões judiciais ter impacto significativo na demarcação e proteção das terras indígenas. Nesse sentido, a tese (que surgiu em 2009 e foi adotada como critério no processo relativo à demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol) vinha sendo questionada e aguardava nova definição pelo STF.

Em setembro deste ano, após anos de análise pelos Ministros da Suprema Corte, e em um dos maiores julgamentos da história, o STF derrubou, por 9 votos a 2, a tese do marco temporal. Restou decidido, portanto, que a data da promulgação da Constituição Federal de 1988 não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. A decisão refere-se ao RE 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031), tendo o Plenário fixado tese a servir de parâmetro de resolução de centenas de casos semelhantes que estavam suspensos aguardando tal definição.

Ocorre que, também em setembro, foi aprovada pelo Congresso Nacional nova lei que se apoia na tese do marco temporal (Lei 14.701/23). Vários artigos desta nova lei foram objetos de veto presidencial (Veto 30/2023), com fundamento na decisão do STF e na necessária segurança jurídica em relação ao tema. Contudo, na última semana, o veto foi objeto de análise pelo Congresso Nacional, tendo sido rejeitado.

Nesse sentido, voltaria a ser considerado o marco temporal?

Se o STF não adota a tese do marco temporal em suas decisões e é promulgada uma nova lei que adota esse critério, a tendência é de que ocorra uma tensão entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo. Em sistemas democráticos, como o brasileiro, os Poderes são independentes, mas devem atuar dentro dos limites estabelecidos pela Constituição Federal. Assim, se uma nova lei é promulgada pelo Legislativo adotando o marco temporal, isso implicaria uma mudança nas regras para a demarcação de terras indígenas, estabelecendo limites temporais para o reconhecimento dessas terras. No entanto, ao mesmo tempo, isso não anula as decisões do STF que tenham reconhecido direitos territoriais dos povos indígenas com base em outros critérios, uma vez rejeitada a tese do marco temporal.

Surgindo um conflito de interpretação e aplicação da lei entre os tribunais e o legislador, o STF, como guardião da Constituição, tem a responsabilidade de analisar a constitucionalidade dessa nova lei e decidir se essa está em conformidade com os princípios constitucionais, incluindo aqueles relacionados aos direitos fundamentais dos povos indígenas.

Caso haja discordância entre o STF e o Legislativo sobre a validade da lei, a questão pode ser objeto de nova análise pela Suprema Corte. Essa dinâmica é inerente ao sistema de freios e contrapesos das democracias constitucionais, e a resolução dependerá do funcionamento do sistema jurídico e das instituições do país.

É certo que a recente decisão do STF sinaliza, em princípio, uma tendência de manutenção do entendimento sobre a inconstitucionalidade da tese do marco temporal. Tal posicionamento parece decorrer de uma preocupação da Suprema Corte em preservar os direitos fundamentais dos povos indígenas, considerando não apenas a data da promulgação da Constituição vigente, mas também a complexidade histórica e social das relações entre essas comunidades e o território.

Nesse contexto, a dinâmica entre os Poderes Legislativo e Judiciário desempenhará um papel crucial na definição do panorama jurídico sobre os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil. Neste novo capítulo de fortes tensões relativas à questão da demarcação das terras indígenas, a busca por um equilíbrio entre a proteção desses direitos, a promoção do desenvolvimento sustentável e a preservação da ordem constitucional continuará a desafiar a sociedade brasileira, colocando em evidência a necessidade de um diálogo construtivo e embasado em princípios democráticos e humanitários. Do contrário, o ciclo relativo a essa (não) definição jamais terá fim.

*Luísa Dresch, advogada das áreas de contencioso cível estratégico e ambiental do escritório Silveiro Advogados, é Mestre em Direito com ênfase em Direito Civil e Empresarial pela UFRGS e pós-graduanda em Direito Ambiental e Gestão Estratégica da Sustentabilidade pela PUCSP

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