Desejemos a chegada dos céticos, se eles puderem extinguir o fanatismo – Raymond Aron
Em entrevista ao jornalista Antonio Polito, o historiador Eric Hobsbawm admitiu, com certo constrangimento, a opção por ter se silenciado após as denúncias ocorridas em 1956, quando a União Soviética massacrou o movimento revolucionário na Hungria. Ao assumir que sua militância política naquela época tendeu para um “preconceito favorável ao avanço da causa pela qual lutamos”, Hobsbwam reconheceu que: “embora espere não ter dito ou escrito nada sobre a União Soviética de que me deva me sentir culpado, procurei evitar tratar desse tema diretamente, pois sabia que, se o fizesse, teria escrito coisas que seriam difíceis para um comunista dizer sem afetar sua atividade política e os sentimentos de seus companheiros”.
Essa posição chegou a influenciar o próprio tema de estudo do autor. Ao ser perguntado acerca da relação entre o que ocorreu em 1956 e sua ênfase no estudo do capitalismo, Hobsbawm respondeu: “Para ser sincero, sim. Também é por isso que escolhi me dedicar ao estudo do século XIX, em vez do século XX. Porque eu via que tudo o que era produzido pelo Partido Comunista soviético em termos de história contemporânea era inaceitável”. Em relação à sua permanência, o historiador britânico relatou: “Por que permaneci por tanto tempo após a crise de 1956? Creio que por lealdade a uma grande causa e a todos aqueles que por ela sacrificaram suas vidas. [...] Se eu me arrependo? Não, não creio. Tenho plena consciência de que a causa que abracei revelou-se infrutífera. Talvez não devesse seguir por esse caminho. Mas, por outro lado, se os homens não cultivam o ideal de um mundo melhor, eles perdem algo”.
Por fim, reconhecendo a instrumentalização da História como um fator político, o historiador inglês também admitiu que seu silenciamento em relação aos crimes cometidos pelo stalinismo fazia parte de um projeto maior em torno de interesses específicos e programáticos.
O pano de fundo desse processo de corromper a História em torno de um ideal, que justifique a utilização instrumentalizada de conceitos em prol de uma perspectiva revolucionária, ganhou capilaridade com os caminhos trilhados pela Revolução Francesa, bem como daqueles que a interpretaram como um novo projeto social de humanidade. Em seu livro “Tolos, fraudes e militantes”, o filósofo Roger Scruton apresenta um cenário de cooptação dos conceitos de liberdade, alienação, sujeito e objeto, realizado pelo filósofo Alexandre Kojève através das leituras e interpretações das obras de Hegel. Eclipsando as conclusões mais conservadoras do pensador alemão, Kojève criou uma verdadeira escola relativista em torno dos sentidos da História.
Intelectuais centrais na formação do pensamento filosófico ocidental do pós-Segunda Guerra, como Bataille, Lacan, Sartre, Simone de Beauvoir, Lévinas e Merleau-Ponty, participaram dos cursos de Kojève. Muitos deles também optaram por eclipsar barbáries cometidas nas Revoluções Cubana, Chinesa, Vietnamita, Iraniana, entre outras, a fim de produzir uma nova hagiografia na História, composta por uma redenção conceitual revolucionária e uma queda processual do que venha a ser sociedade burguesa.
O impacto desse movimento cultural em diversas universidades americanas, do Brasil aos EUA, consolidou-se a partir de 1968. De lá pra cá, a busca pela verdade foi substituída pela dialética da vontade. A metodologia científica e a horizontalidade do pensar foram sendo substituídas pelo engajamento e empoderameto do saber. Jornalistas, professores, advogados e artistas passaram a dedicar suas obras, ficcionais e não ficcionais, em nome de um projeto hagiográfico que vê no objeto burguês uma etapa a ser superada, questionada, problematizada em função de um novo homem revolucionário, posteriormente uma nova mulher, e, agora, tendo como referência uma revolução de gêneros.
Subjaz dessas escolhas a demonização caricata de uma cultura política “hétero, branca e burguesa”, ameaçadora e totalitária, que põe à prova o caos enquanto “novo normal”. Sendo assim, os ditadores fascistas dos anos 1970-1980, foram transformados em neoliberais nos anos 1990 e novamente fascistas no mundo pós-Crise de 2008. O que não compõe o projeto progressista de emancipação da sociedade é acusado de extremo sem qualquer rigor metodológico. A lógica é corromper os conceitos para que eles sejam enquadrados dentro de um programa específico, delineado em diversos cursos acadêmicos.
O impacto da pós-verdade reflete na relativização das decisões políticas e judiciais no ordenamento jurídico-social da própria sociedade civil. Nota-se esse movimento, quando um esquema de corrupção como o “Petrolão” é totalmente desmantelado em algumas canetadas, a despeito de todas suas provas e sentenças aferidas por diversos juízes em diversas instâncias, enquanto que vândalos são prontamente caracterizados como terroristas antes mesmo de um julgamento formal acerca de suas práticas excrescentes, porém, equiparadas a qualquer depredação de um espaço público.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica