Há aproximadamente 14 anos, o Supremo Tribunal Federal se debruçava sobre a Lei de Imprensa que, promulgada durante a ditadura, apresentava importantes reflexos na liberdade de expressão, especialmente à liberdade de imprensa, garantida na ordem constitucional de 1988.
A pluralidade de pensamento e a liberdade no ato de manifestação vocal, escrita, foram as escolhas do Constituinte de 1988. A regra trazida pela Constituição Federal é da absoluta liberdade, e os limites impostos igualmente encontram-se no Texto Maior.
O célebre julgamento da ADPF nº 130, que declarou inconstitucional a Lei de Imprensa, teve a relatoria do sempre Ministro Carlos Ayres Britto.
A imprensa - e aqui o termo é empregado em sentido amplo, incluindo órgãos comunicacionais que trabalhem com mídias sociais e afins -, pela leitura dada pela ADPF 130, encontra seu limite na Constituição da República, sendo implacável ao asseverar que a Carta da República não poderia conviver - por ser democrática - com a lei promulgada em período ditatorial, e que os critérios de defesa da liberdade de imprensa e expressão estariam todos refletidos na Constituição Federal.
Vejo com muita preocupação os ataques a órgãos de imprensa, em razão de sua linha editorial, e o alargamento da interpretação de princípios sensíveis da Constituição Federal para sufocar posições contrárias. A Constituição vive para abarcar justamente a pluralidade; a existência de um sistema democrático que tem o Direito como centro e pautado na proteção do direito das pessoas exprimirem suas opiniões. Desde que tal conteúdo não caiba reprimenda legal, por vedação expressa.
Recentemente o Ministério Público Federal pediu a intervenção judicial por meio de ação civil pública para punir emissora de radiodifusão que estaria "praticando atos graves, abuso de outorgas de serviço público e desvirtuando os princípios e as finalidades sociais que lhe dão lastro". Há ainda no pedido a afirmação que teria o órgão de imprensa promovido "desinformação em larga escala" com potencial de incitação à violência e à ruptura democrática.
O que se pretende é punir órgão de imprensa pela opinião expressa por pessoas - que muitas vezes já enfrentam a reprimenda judicial - e com a reprimenda de cassação de seu direito de concessão para funcionar.
A petição inicial, que traz em sua integralidade 204 páginas, encontraria facilmente espaço em um período nefasto de ditadura que já vivemos e esquecemos, ou deveríamos esquecer - em que pese nosso respeito aos Ilustres Procuradores da República.
(In)Felizmente a liberdade tem dissabores. Conviver com informações que reputamos exageradas, erradas, direcionadas, inflamadas exige exercício de resiliência só existente em democracias.
Ainda que respeite opiniões em contrário, não há que se achar normal tentar calar qualquer que seja o órgão de imprensa. O próprio artigo 220 da Constituição é categórico neste sentido. Vale situar que tal artigo está fixado no capítulo da comunicação social. Traz a reluzente redação: "a manifestação do pensamento, criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão restrição, observado o disposto nessa Constituição."
O artigo 221 da Constituição segue dando cores à forma com que se organizará sobre as empresas de rádio e televisão, sempre primando pela liberdade, com conceitos principiológicos abertos e não trazendo qualquer penalidade pela expressão de opinião.
Vale dizer: se a lei infraconstitucional que regula a matéria previsse - não prevê - qualquer linha editorial a ser seguida, seria inconstitucional. Valendo destacar que igualmente a Lei de Imprensa é anterior à Carta da República. A finalidade pública precípua do serviço de comunicar é o respeito à liberdade de quem o faz.
A própria livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV da CF) e livre concorrência (artigo 170 IV da CF) atuam em favor de uma imprensa livre e plural. Ainda o artigo 220 traz gravado - não à toa - o signo de proteção à liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação.
Um dos ensinamentos trazidos pela ADPF 130, no voto do Relator Ministro Carlos Ayres Britto, é de que se diferencia os órgãos de imprensa entre "instituição-ideia e instituição-entidade", evidenciando que a proteção dos pensamentos, concordamos ou não, é parte da existência da liberdade de expressão como gênese de direito individual em âmbito constitucional.
Ainda no voto condutor da ADPF 130 é citada aula a nós concedida pela brilhante mente do Professor Norberto Bobbio: "Norma constitucional de concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das sociedades autenticamente democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude democrática da respeitosa convivência dos contrários (o necessário consenso é apenas quanto às regras do jogo, conforme enuncia Norberto Bobbio em seu clássico livro "O futuro da democracia".
O flerte em fazer justiça após as eleições não deu certo no passado e não dará doravante. É mão única para caminharmos para um Estado autoritário. Imprensa livre é medida de rigor à existência do Estado Democrático de Direito.
E, se ainda há dúvida de que é necessário revistarmos a ADPF 130 no momento em que vivemos, basta verificar-se a Reclamação Constitucional 59.337, da Relatoria do Ministro Edson Fachin, que trata da proibição do documentário: "Justiça Contaminada: O teatro Lavajatista da Operação Calvário na Paraíba" em que foi concedida liminar para cassar decisão que proibia a veiculação do documentário.
O Ministro Edson Fachin concedeu liminar para desobstruir a veiculação de documentário - sem que este esteja livre de eventuais ações de reparação de quem eventualmente sentir-se atingido. Tal decisão de 26 de abril de 2023 traz como cerne a ADPF 130, e de forma muitíssimo acertada.
De frente a um momento decisivo, é compreensível que algumas medidas extraordinárias de limitações à liberdade de expressão tenham sido tomadas, especialmente em período eleitoral e com respeito à preservação da igualdade de chances entre candidatos. Mas a supressão, o tolhimento, e a tentativa de intimidação da liberdade de expressão, inclusive a órgãos de comunicação, nunca será regra em um Estado Democrático de Direito.
O Supremo Tribunal Federal sempre agiu de forma a manter a liberdade de expressão como direito individual, e a comunicação social pela imprensa como extensão de tal direito. Que assim permaneça.
É necessário em casos emblemáticos a reafirmação de uma Constituição Viva - conceito tão bem desenvolvido pelo Professor da Universidade de Gênova Roberto Guastini -, que nada mais é do que a efetivação concreta da interpretação política expressa na Constituição Federal; e ver/virmos os direitos concretamente protegidos pela extensão vocal da Carta Magna dada pela Suprema Corte Brasileira.
*Aílton Soares de Oliveira, advogado da área de contencioso estratégico e constitucional, sócio-fundador do escritório A. Soares de Oliveira Advogadas e Advogados