Na posse do Ministro Barroso, na semana passada, o Presidente do Conselho Federal da OAB, Beto Simonetti, advertiu: Jamais abriremos mão das prerrogativas da advocacia; são tão importantes quanto a independência judicial. As violações são de vários tipos, como a negativa de uma (...) sustentação oral presencial. E concluiu: Cabe ao Supremo Tribunal Federal dar o exemplo.
Simonetti certamente estava se referindo à forma ordinária de julgamento das ações penais originárias dos acusados de 8/1, com a modalidade virtual. Nesse script, os advogados não sustentam no plenário, de forma presencial, com possibilidade de suscitar questões de fato, mas apenas enviam previamente uma sustentação oral gravada. Como está no título: é o podcast da sustentação oral.
Para o STF, haveria permissão irrestrita para a adoção do procedimento (art. 21-B, do RI-STF), sugerindo ainda que haveria urgência a permitir o procedimento (art. 21-B, § 4º, do RI-STF, que na realidade trata de excepcional urgência, duvidosa no caso). E que diante do procedimento a ser adotado (envio de sustentação oral gravada, cf. art. 21-B, § 2º, do RI-STF), a ampla defesa (art. 5º, LV, da CR) estaria preservada. Não, a ampla defesa não está preservada nesse fast track excepcional no processo penal brasileiro.
Os casos de 8/1 talvez representem o julgamento mais importante em matéria criminal dos últimos anos do STF e, justamente por tal razão, tendem a fixar importantes precedentes a serem seguidos pelo Poder Judiciário. Está-se a decidir se e como um ataque ao Estado Democrático de Direito deve ser punido, com lições que tendem a permear gerações. Para o bem e para o mal.
Afinal, quando o STF acerta em seu papel de garante, os Tribunais tendem a resistir, mas, quando erra, os Tribunais tendem a seguir isso de forma imediata, replicando e amplificando o erro. Não por outra razão, no mesmo discurso, Simonetti alertou: qual referência terão os demais órgãos e instâncias do Judiciário? Será possível generalizar o julgamento virtual e o podcast em matéria penal? Esses acusados, não custa lembrar, estão sendo julgados em instância única.
Não há dúvida que se trata de um equívoco negar-se o direito à sustentação oral, utilizando-se o RI-STF contra e lei e a CR. O RI do STF pode muito, mas não pode tudo.
É verdade que o RI-STF permite em seu art. 21-B que todos os julgamentos sejam realizados na modalidade virtual, bem como que os regimentos internos dos tribunais se equiparam à lei, na curiosa formulação do Min. Paulo Brossard (ADI 1.105). Contudo, ninguém duvida que no conflito entre a lei (aprovada pelo Parlamento) e o regimento interno, deva prevalecer a primeira, tanto quanto não se questiona a própria supremacia da Constituição.
O problema, no caso, é que nem a Lei, nem as Convenções das quais o Brasil é signatário, tampouco a Constituição, amparam o fast track do STF.
Para começar, está-se diante de uma ação penal originária (APO), onde não se tem instância revisional, garantia prevista no art. 5º, LV, da CR (recursos) art. 8º, item 2, h, da CIDH (direito de recorrer da sentença a um tribunal superior).
O duplo grau de jurisdição não poderia ceder sequer no caso de processos penais de competência originária, ainda que previstos em Constituição e isso certamente daria uma boa discussão perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, até pela força integrativa do art. 5º, § 2º, da CR. Basta conferir a decisão da CorteIDH no caso “Barreto Leiva vs. Venezuela”.
O STF, na APO, é instância única, podendo errar sem revisão num caso importantíssimo, sendo esse um argumento de natureza moral, além daquele de natureza constitucional e convencional. Só isso já justificaria a sustentação oral.
O Supremo não teria tempo para todos esses julgamentos presenciais, argumentam alguns. Até pode ser verdade, mas aí é preciso lembrar que essa competência foi fixada pelo próprio STF por critérios a la Sergio Moro. Como já alertou o Conselho da OAB-PR, ao referendar parecer de Comissão presidida por Rodrigo Kanayama, esses inquéritos do STF não devem permanecer em funcionamento ad aeternum.
Há mais, no entanto.
A previsão do devido processo legal e da ampla defesa na CR (art. 5º, LIV e LV), em conjunto com seu art. 133 (indispensabilidade do advogado), levou à previsão constante do art. 7º, IX, da Lei 8.906/94, no sentido de que o advogado tem o direito de sustentar oralmente nas sessões de julgamento, sendo a garantia materializada no art. 234, § 1º, do RI-STF, conferindo-se o tempo de uma hora para o ato (art. 245, V, do RI-STF).
A sustentação oral, na hipótese, encontra-se dentro do direito de que toda pessoa tem direito de ser ouvida, com as devidas garantias, por um Tribunal competente (art. 8º, item 1, da CIDH, também prevista no art. 6º, da Convenção Europeia de Direitos Humanos, bem como nos arts. 10 e 11, da Declaração Universal dos Direitos Humanos). Em recente audiência com o Ministro Alexandre de Moraes, nossa presidente Marilena Winter lembrou que a sustentação oral é imprescindível para a garantia da ampla defesa e do contraditório. Tanto pior em ações penas de instância única.
Assim, entre o conflito entre a CR/Lei nº 8.906/94 e o RI-STF, parece evidente que nem o Min. Brossard ousaria dizer ter havido revogação das regras e garantias, sendo certo que prevalecem as primeiras sobre o último. O RI do STF pode muito, mas não pode tudo.
Ora, parece evidente que num caso importantíssimo como esse (um hard case), todo cuidado é pouco para não se fazer um precedente de potenciais repercussões inimagináveis, não se admitindo que um podcast seja apto a atender ao requisito legal e constitucional de ser verdadeiramente ouvido pelo Tribunal.
E é também necessário retomar os contornos dados pelo julgamento da ADPF 572 – que referendou os inquéritos do STF –, inclusive a bela passagem do Ministro Fachin: “Ao Supremo Tribunal Federal, as suas próprias prescrições”. O podcast ainda não estava em pauta, mas a ADPF assegurou respeito às prerrogativas dos advogados.
Equívocos ocorrem, é claro. Mas também são passíveis de correção, sem que se gerem mais prejuízos aos direitos e garantias que o STF tem como missão constitucional garantir, mesmo que de forma contramajoritária.
Há quem esteja a relativizar a defesa das prerrogativas nesses casos do STF, em “nome da defesa da democracia”. É um erro. A ampla defesa deve ser garantida especialmente em casos nos quais os réus possam ser tidos como os piores cidadãos da República, não se podendo negar a eles justamente o que queriam ter negado a todos os outros, demonstrando o atual marco civilizatório da nossa República. Não há defesa da democracia fora dos limites do Estado Democrático de Direito.
Ainda há tempo.
*Luiz Fernando Casagrande Pereira, doutor em Direito pelo UFPR e advogado
*Edward Carvalho, sócio da Miranda Coutinho, Carvalho Advogados, mestre (UFPR)