Um dos belos textos de Lygia Fagundes Telles fala dos jovens poetas que morreram jovens. Castro Alves, Casimiro de Abreu, Fagundes Varella e Álvares de Azevedo. Este último é o tema de um primoroso livro de Luiz Haroldo Gomes de Soutello, cujo título é “Os dois fantasmas de Álvares de Azevedo” e como subtítulo, “Recordações do Largo de São Francisco”.
O prefácio de Antonio Penteado Mendonça, Presidente da Academia Paulista de Letras, já enfatiza o exitoso propósito do autor: ele “vive, respira e dá a dimensão do seu amor pela primeira Faculdade de Direito do Brasil, velha de quase dois séculos, desde sempre instalada num dos cantos do Triângulo onde brotou a Cidade de São Paulo”.
Luiz Haroldo é um historiador. Por isso integra a Academia Paulista de História. Todavia, não é aquele repetidor de datas e fatos cronológicos, de aridez que, não raro, desestimula a pesquisa e o interesse pelo resgate do encadeamento existencial do passado. Ele sabe prender a atenção do leitor, ao temperar o relato com bem dosado e fino humor. Entremeia episódios que vivenciou com estirpes familiares, desvenda a genealogia dos troncos tradicionais de Piratininga e fornece detalhes não explorados pelos manuais de aprendizado.
Seu convívio com Miguel Reale Júnior e com Chico Buarque de Holanda foi circunstância que disparou substanciosa análise do maior jusfilósofo que o Brasil já conheceu, o gigantesco Miguel Reale. Convivi com o pai na Academia Paulista de Letras, e hoje convivo com o filho. Ebe Reale, também citada, me honrou permitindo prefaciasse um livro dela.
Não tive o privilégio de cursar o Bacharelado nas Arcadas, sou aluno da também gloriosa PUC-Campinas, mas a pós-graduação foi no Largo de São Francisco. Daí o meu encanto ao reencontrar o Professor Joaquim Canuto Mendes de Almeida, cujas aulas de Direito Processual Penal me instigaram. Ele dizia: “Não é adequado chamar a possibilidade de entrar em juízo de “direito de ação”. Na verdade, é “ônus de ação”, tamanho o calvário que a parte precisa percorrer, até ver reconhecido o seu direito!”. Isso, em 1970, há meio século! Se ele visse hoje esta Justiça de quatro instâncias e de caótico sistema recursal, o que diria?
Ler algo sobre meu orientador, o Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o “Maneco”, responsável por meu Mestrado e Doutorado e propiciador de minha experiência na França, onde me abriu as portas para a biblioteca da Rue Cujas e me apresentou a mestres seus amigos, como Didier Mauss, Maurice Duverger, Antoine Garapon, Isabelle Jegouzo e outros, é um presente indescritível. Há muito mais coisas sobre Maneco, que acaba de completar noventa anos e continua lúcido, sagaz, perspicaz e detentor daquela fina ironia e de um charmoso humor. Talvez assunto para um outro livro.
Senti falta – (quem sou eu para cobrar?) – das lendas de Herculano de Freitas, que foi Diretor da São Francisco, genro de Francisco Glicério e uma personalidade singular, tamanho o seu “savoir faire”. O que se fala dele, do folclore herculanístico, daria um outro livro. Outra boa ideia para Luiz Haroldo.
Na verdade, Luiz Haroldo é um fidalgo. Não é de mentira. Neto do Visconde de Soutello. Sua convivência é com a nobreza do Império, cujos nomes e laços matrimoniais domina, pois são os de sua grei. Daí conhecer a família Porchat, os Vicente de Azevedo e tantos outros. Mas não é esnobe. Ao contrário, sua verve e talento fazem da crônica de costumes um texto sedutor, daqueles que não se quer que acabem.
Prolífico e original, ele já escreveu inúmeros livros e é sempre um deleite mergulhar em suas estórias, aqui prenhes de verdadeira História de São Paulo. Chega a convencer o leitor de que Álvares de Azevedo, o poeta da “Lira dos Vinte Anos”, foi apaixonado por uma das filhas de Pedro I, que se casou com outro e o deixou amargurado.
Mas o bom mesmo é ler “Os dois fantasmas de Álvares de Azevedo”, que não pode ser resumido nestas linhas de quem o devorou de madrugada, sem conseguir parar de ler, tamanho o enleio que o acometeu, diante da delícia contida em cada página.
Dessa fonte inesgotável, espera-se continuidade. É preciso que o Brasil saiba que tem História e que tem motivos para se orgulhar de seu passado. Luiz Haroldo consegue esse milagre: fazer com que leitores atentos se enterneçam com fatos reais, que ele sabe colorir com sua notável capacidade de contar causos reais de tamanho interesse, que parecem ficção.