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Opinião|A falência do enfrentamento ao crime organizado pela sua infiltração no Estado


Falta o Estado ser depurado do mal da corrupção para que possa efetivar, com base na estrutura que já possuímos, um enfrentamento sério e contundente ao problema do crime organizado. Padecemos de problema similar ao que o México enfrenta, que é a infiltração de instituições essenciais do Estado pelo crime organizado

Por Disney Rosseti
Atualização:

De tempos em tempos somos brindados com alguma produção cinematográfica que explora a temática do crime organizado de forma séria ainda que no campo da ficção. Seja no formato de filmes, minisséries ou documentários, seja por produções hollywoodianas ou independentes, nacionais ou estrangeiras, essas estórias impressionam a todos pelos enredos permeados de violência, traição, busca do poder absoluto, riqueza e ostentação banhados a sangue, relações de família com resolução de questões através de assassinatos, sequestros e todos os elementos possíveis e imagináveis de um roteiro avassalador, invariavelmente baseado em fatos reais.

Difícil quem não tenha assistido ou ao menos ouvido falar da famosa saga da família Corleone, baseada no livro de Mario Puzzo, de 1969, imortalizada no cinema pela obra-prima dirigida por Francis Ford Copolla intitulada “O Poderoso Chefão”, uma trilogia que narra a estória fictícia de uma família mafiosa de Nova Yorque, explorando os ritos, métodos e regras familiares da máfia italiana, sendo o protagonista Vito Corleone inspirado no chefão real da máfia Frank Costello. E assim também em “Gomorra”, inspirada no livro de Roberto Saviano, condenado a morte pelo clã Casalesi em razão de sua obra, narrando estórias da máfia napolitana. E tantos outros exemplos, inclusive de organizações criminosas da América do Sul, como a série “Narcos”, que explora a estória quase surreal do narcotraficante colombiano Pablo Escobar, e séries e filmes nacionais, como as grandes produções “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”.

Mais recentemente foi lançada a série documental “Vale o Escrito”, que narra a história das principais famílias do jogo do bicho na cidade do Rio de Janeiro. Esta série tem uma peculiaridade: as personagens que narram a história e suas versões dos fatos são personagens reais, os próprios banqueiros do jogo do bicho, suas esposas, filhos e parentes, além de policiais, membros do Ministério Público, jornalistas e outras pessoas com conhecimento do assunto. Poucas vezes se conseguiu uma visão tão precisa, realista e com base na versão dos protagonistas reais daquilo que se pretendia contar. Uma narrativa que está no mesmo patamar de relatos das principais máfias do mundo, sem dever absolutamente nada para outras narrativas mafiosas conhecidas, para nossa tristeza e pesar enquanto brasileiros.

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É impactante a constatação da quantidade de mortos em atentados a plena luz do dia, com armamento pesado e até explosivos, que permeia essa história desde os anos 1970. A narrativa de como se organizaram numa “Cúpula”, dividindo territórios e controlando o negócio, e a ligação umbilical com o carnaval do Rio de Janeiro proporcionando glamour e aproximação com comunidades é digno das relações da Cosa Nostra e outras máfias com comunidades e regiões da Itália, gerando admiração de muitos e uma áurea de elemento até mesmo cultural do Rio de Janeiro, por assim dizer.

Dentro deste enredo o que mais chama a atenção é que os seus protagonistas foram presos e soltos inúmeras vezes, acumulam-se os processos criminais e tudo continua da forma como vem ocorrendo há décadas: persiste o crime organizado. Pior ainda é a quantidade de policiais e outras autoridades envolvidas com o crime, trabalhando efetivamente para as organizações criminosas, muitos dos quais acabam mortos e outros tantos presos. Exemplos mais recentes são os ex-policiais envolvidos inclusive na morte de Marielle Franco.

Essa relação promíscua de agentes e autoridades do Estado com o crime organizado e a perpetuação no tempo de figuras criminosas proeminentes não é privilégio de nossa realidade. Situações similares constituíam a realidade de países como Itália, Estados Unidos e Colômbia, onde a corrupção e omissão do Estado era essencial para a própria existência das máfias e cartéis que exploram o tráfico drogas, extorsão e tantos outros crimes. Porém, nesses países houve uma mudança de postura por parte do Estado, precedida de uma depuração de muitas de suas estruturas e instituições policiais, sendo a situação enfrentada e levando a um maior controle por parte do Estado da situação como um todo. Longe de terem resolvido por completo o problema do crime organizado, que continua a existir, observar o que é a Colômbia hoje e o que era nos tempos de Pablo Escobar, o que são os EUA hoje e o que foi vivenciado nos EUA nos tempos de ouro da máfia, e o que é a Itália hoje em vista do que era a Itália dominada pelos capi e famiglias até o início dos anos 1990, leva inevitavelmente a conclusão de que esses governos conseguiram dar uma resposta razoável ao problema. Vale dizer, a par de continuar existindo o crime organizado nesses países, não se tem mais aquela situação quase que de descontrole total, com atentados a autoridades, execuções em vias públicas e líderes de organizações desfilando livremente, e da sensação que existia de violência e impunidade ante a impotência do Estado.

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Neste ponto vem a grande preocupação com esse tema do crime organizado no Rio de Janeiro: ainda não conseguimos dar a virada contra o crime organizado. O Estado não conseguiu, a exemplo dos países citados, tomar de vez as rédeas do enfrentamento a esse problema, e se perpetuam as organizações e suas lideranças ligadas ao jogo do bicho e outros crimes. E esse problema está longe de ser exclusivo do Estado do Rio de Janeiro.

O enfrentamento do crime organizado é algo complexo, que demanda um conjunto de ações de várias áreas. Evidentemente que necessita de uma legislação específica para o tema, vez que se trata de tipo de criminalidade diverso daquela denominada criminalidade comum, demanda treinamento, capacitação e investimento nas instituições policiais para que tenham estrutura adequada para enfrentar o crime organizado, exigindo o mesmo para o Ministério Público e em relação a Magistratura órgãos de jurisdição especializados, dotados de garantias adicionais para o exercício específico de suas funções em processos envolvendo organizações criminosas, inclusive resguardando a segurança física das autoridades, além de estruturação do sistema penitenciário para evitar que o crime continue vigorando e mandando de dentro de cadeias.

Em nosso país já temos implantados muitos desses requisitos mínimos para o enfrentamento ao crime organizado. Leis existem sobre o tema, mesmo que possam ser melhoradas, investimentos nas Polícias e Ministério Público foram e são feitos, ainda que insuficientes, a Magistratura tem suas garantias, embora possam ser aperfeiçoadas quando se trata de crime organizado. O que falta então? Essa é a pergunta que naturalmente advém desse quadro. A resposta: falta o Estado ser depurado do mal da corrupção para que possa efetivar, com base na estrutura que já possuímos, um enfrentamento sério e contundente ao problema do crime organizado. Padecemos de problema similar ao que o México enfrenta, que é a infiltração de instituições essenciais do Estado pelo crime organizado. Não por acaso no México o problema só se agrava ao longo das últimas décadas, assim como no Brasil.

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Enquanto o Estado estiver infiltrado pelo crime organizado não existe possibilidade de ser realizado um enfrentamento sistemático e eficiente, que comece a reverter o quadro existente. Como disse o Magistrado Federal Flávio Lucas a conexão direta ou indireta com o Estado é, sem dúvida, a principal característica do Crime Organizado, e, pode-se dizer sem exagero, é o principal modo de operacionalizar a sua atuação, já que somente infiltrando-se nos governos, nos parlamentos, nas administrações policiais e nos palácios de justiça, de modo a paralisar o braço que teoricamente deveria golpeá-lo, é que o Crime Organizado adquirirá real impunidade[1].

Sem que o Estado esteja com suas instituições livres da influência financeira e política do crime organizado, sem que a corrupção das instituições seja previamente enfrentada, não há possibilidade de êxito no enfrentamento as organizações criminosas.

Até que haja uma depuração das estruturas do Estado, “Vale o Escrito” para as organizações criminosas, que tem suas regras escritas a sangue e impostas pela violência e corrupção, restando para o Estado e a sociedade a valia de parte daquilo que está escrito nas Leis e na Constituição.

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[1] Organizações Criminosas e Poder Judiciário, 2007. https://www.scielo.br/j/ea/a/g74f4wYNFN73T7ZbWnfdkfb/?format=pdf

De tempos em tempos somos brindados com alguma produção cinematográfica que explora a temática do crime organizado de forma séria ainda que no campo da ficção. Seja no formato de filmes, minisséries ou documentários, seja por produções hollywoodianas ou independentes, nacionais ou estrangeiras, essas estórias impressionam a todos pelos enredos permeados de violência, traição, busca do poder absoluto, riqueza e ostentação banhados a sangue, relações de família com resolução de questões através de assassinatos, sequestros e todos os elementos possíveis e imagináveis de um roteiro avassalador, invariavelmente baseado em fatos reais.

Difícil quem não tenha assistido ou ao menos ouvido falar da famosa saga da família Corleone, baseada no livro de Mario Puzzo, de 1969, imortalizada no cinema pela obra-prima dirigida por Francis Ford Copolla intitulada “O Poderoso Chefão”, uma trilogia que narra a estória fictícia de uma família mafiosa de Nova Yorque, explorando os ritos, métodos e regras familiares da máfia italiana, sendo o protagonista Vito Corleone inspirado no chefão real da máfia Frank Costello. E assim também em “Gomorra”, inspirada no livro de Roberto Saviano, condenado a morte pelo clã Casalesi em razão de sua obra, narrando estórias da máfia napolitana. E tantos outros exemplos, inclusive de organizações criminosas da América do Sul, como a série “Narcos”, que explora a estória quase surreal do narcotraficante colombiano Pablo Escobar, e séries e filmes nacionais, como as grandes produções “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”.

Mais recentemente foi lançada a série documental “Vale o Escrito”, que narra a história das principais famílias do jogo do bicho na cidade do Rio de Janeiro. Esta série tem uma peculiaridade: as personagens que narram a história e suas versões dos fatos são personagens reais, os próprios banqueiros do jogo do bicho, suas esposas, filhos e parentes, além de policiais, membros do Ministério Público, jornalistas e outras pessoas com conhecimento do assunto. Poucas vezes se conseguiu uma visão tão precisa, realista e com base na versão dos protagonistas reais daquilo que se pretendia contar. Uma narrativa que está no mesmo patamar de relatos das principais máfias do mundo, sem dever absolutamente nada para outras narrativas mafiosas conhecidas, para nossa tristeza e pesar enquanto brasileiros.

É impactante a constatação da quantidade de mortos em atentados a plena luz do dia, com armamento pesado e até explosivos, que permeia essa história desde os anos 1970. A narrativa de como se organizaram numa “Cúpula”, dividindo territórios e controlando o negócio, e a ligação umbilical com o carnaval do Rio de Janeiro proporcionando glamour e aproximação com comunidades é digno das relações da Cosa Nostra e outras máfias com comunidades e regiões da Itália, gerando admiração de muitos e uma áurea de elemento até mesmo cultural do Rio de Janeiro, por assim dizer.

Dentro deste enredo o que mais chama a atenção é que os seus protagonistas foram presos e soltos inúmeras vezes, acumulam-se os processos criminais e tudo continua da forma como vem ocorrendo há décadas: persiste o crime organizado. Pior ainda é a quantidade de policiais e outras autoridades envolvidas com o crime, trabalhando efetivamente para as organizações criminosas, muitos dos quais acabam mortos e outros tantos presos. Exemplos mais recentes são os ex-policiais envolvidos inclusive na morte de Marielle Franco.

Essa relação promíscua de agentes e autoridades do Estado com o crime organizado e a perpetuação no tempo de figuras criminosas proeminentes não é privilégio de nossa realidade. Situações similares constituíam a realidade de países como Itália, Estados Unidos e Colômbia, onde a corrupção e omissão do Estado era essencial para a própria existência das máfias e cartéis que exploram o tráfico drogas, extorsão e tantos outros crimes. Porém, nesses países houve uma mudança de postura por parte do Estado, precedida de uma depuração de muitas de suas estruturas e instituições policiais, sendo a situação enfrentada e levando a um maior controle por parte do Estado da situação como um todo. Longe de terem resolvido por completo o problema do crime organizado, que continua a existir, observar o que é a Colômbia hoje e o que era nos tempos de Pablo Escobar, o que são os EUA hoje e o que foi vivenciado nos EUA nos tempos de ouro da máfia, e o que é a Itália hoje em vista do que era a Itália dominada pelos capi e famiglias até o início dos anos 1990, leva inevitavelmente a conclusão de que esses governos conseguiram dar uma resposta razoável ao problema. Vale dizer, a par de continuar existindo o crime organizado nesses países, não se tem mais aquela situação quase que de descontrole total, com atentados a autoridades, execuções em vias públicas e líderes de organizações desfilando livremente, e da sensação que existia de violência e impunidade ante a impotência do Estado.

Neste ponto vem a grande preocupação com esse tema do crime organizado no Rio de Janeiro: ainda não conseguimos dar a virada contra o crime organizado. O Estado não conseguiu, a exemplo dos países citados, tomar de vez as rédeas do enfrentamento a esse problema, e se perpetuam as organizações e suas lideranças ligadas ao jogo do bicho e outros crimes. E esse problema está longe de ser exclusivo do Estado do Rio de Janeiro.

O enfrentamento do crime organizado é algo complexo, que demanda um conjunto de ações de várias áreas. Evidentemente que necessita de uma legislação específica para o tema, vez que se trata de tipo de criminalidade diverso daquela denominada criminalidade comum, demanda treinamento, capacitação e investimento nas instituições policiais para que tenham estrutura adequada para enfrentar o crime organizado, exigindo o mesmo para o Ministério Público e em relação a Magistratura órgãos de jurisdição especializados, dotados de garantias adicionais para o exercício específico de suas funções em processos envolvendo organizações criminosas, inclusive resguardando a segurança física das autoridades, além de estruturação do sistema penitenciário para evitar que o crime continue vigorando e mandando de dentro de cadeias.

Em nosso país já temos implantados muitos desses requisitos mínimos para o enfrentamento ao crime organizado. Leis existem sobre o tema, mesmo que possam ser melhoradas, investimentos nas Polícias e Ministério Público foram e são feitos, ainda que insuficientes, a Magistratura tem suas garantias, embora possam ser aperfeiçoadas quando se trata de crime organizado. O que falta então? Essa é a pergunta que naturalmente advém desse quadro. A resposta: falta o Estado ser depurado do mal da corrupção para que possa efetivar, com base na estrutura que já possuímos, um enfrentamento sério e contundente ao problema do crime organizado. Padecemos de problema similar ao que o México enfrenta, que é a infiltração de instituições essenciais do Estado pelo crime organizado. Não por acaso no México o problema só se agrava ao longo das últimas décadas, assim como no Brasil.

Enquanto o Estado estiver infiltrado pelo crime organizado não existe possibilidade de ser realizado um enfrentamento sistemático e eficiente, que comece a reverter o quadro existente. Como disse o Magistrado Federal Flávio Lucas a conexão direta ou indireta com o Estado é, sem dúvida, a principal característica do Crime Organizado, e, pode-se dizer sem exagero, é o principal modo de operacionalizar a sua atuação, já que somente infiltrando-se nos governos, nos parlamentos, nas administrações policiais e nos palácios de justiça, de modo a paralisar o braço que teoricamente deveria golpeá-lo, é que o Crime Organizado adquirirá real impunidade[1].

Sem que o Estado esteja com suas instituições livres da influência financeira e política do crime organizado, sem que a corrupção das instituições seja previamente enfrentada, não há possibilidade de êxito no enfrentamento as organizações criminosas.

Até que haja uma depuração das estruturas do Estado, “Vale o Escrito” para as organizações criminosas, que tem suas regras escritas a sangue e impostas pela violência e corrupção, restando para o Estado e a sociedade a valia de parte daquilo que está escrito nas Leis e na Constituição.

[1] Organizações Criminosas e Poder Judiciário, 2007. https://www.scielo.br/j/ea/a/g74f4wYNFN73T7ZbWnfdkfb/?format=pdf

De tempos em tempos somos brindados com alguma produção cinematográfica que explora a temática do crime organizado de forma séria ainda que no campo da ficção. Seja no formato de filmes, minisséries ou documentários, seja por produções hollywoodianas ou independentes, nacionais ou estrangeiras, essas estórias impressionam a todos pelos enredos permeados de violência, traição, busca do poder absoluto, riqueza e ostentação banhados a sangue, relações de família com resolução de questões através de assassinatos, sequestros e todos os elementos possíveis e imagináveis de um roteiro avassalador, invariavelmente baseado em fatos reais.

Difícil quem não tenha assistido ou ao menos ouvido falar da famosa saga da família Corleone, baseada no livro de Mario Puzzo, de 1969, imortalizada no cinema pela obra-prima dirigida por Francis Ford Copolla intitulada “O Poderoso Chefão”, uma trilogia que narra a estória fictícia de uma família mafiosa de Nova Yorque, explorando os ritos, métodos e regras familiares da máfia italiana, sendo o protagonista Vito Corleone inspirado no chefão real da máfia Frank Costello. E assim também em “Gomorra”, inspirada no livro de Roberto Saviano, condenado a morte pelo clã Casalesi em razão de sua obra, narrando estórias da máfia napolitana. E tantos outros exemplos, inclusive de organizações criminosas da América do Sul, como a série “Narcos”, que explora a estória quase surreal do narcotraficante colombiano Pablo Escobar, e séries e filmes nacionais, como as grandes produções “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”.

Mais recentemente foi lançada a série documental “Vale o Escrito”, que narra a história das principais famílias do jogo do bicho na cidade do Rio de Janeiro. Esta série tem uma peculiaridade: as personagens que narram a história e suas versões dos fatos são personagens reais, os próprios banqueiros do jogo do bicho, suas esposas, filhos e parentes, além de policiais, membros do Ministério Público, jornalistas e outras pessoas com conhecimento do assunto. Poucas vezes se conseguiu uma visão tão precisa, realista e com base na versão dos protagonistas reais daquilo que se pretendia contar. Uma narrativa que está no mesmo patamar de relatos das principais máfias do mundo, sem dever absolutamente nada para outras narrativas mafiosas conhecidas, para nossa tristeza e pesar enquanto brasileiros.

É impactante a constatação da quantidade de mortos em atentados a plena luz do dia, com armamento pesado e até explosivos, que permeia essa história desde os anos 1970. A narrativa de como se organizaram numa “Cúpula”, dividindo territórios e controlando o negócio, e a ligação umbilical com o carnaval do Rio de Janeiro proporcionando glamour e aproximação com comunidades é digno das relações da Cosa Nostra e outras máfias com comunidades e regiões da Itália, gerando admiração de muitos e uma áurea de elemento até mesmo cultural do Rio de Janeiro, por assim dizer.

Dentro deste enredo o que mais chama a atenção é que os seus protagonistas foram presos e soltos inúmeras vezes, acumulam-se os processos criminais e tudo continua da forma como vem ocorrendo há décadas: persiste o crime organizado. Pior ainda é a quantidade de policiais e outras autoridades envolvidas com o crime, trabalhando efetivamente para as organizações criminosas, muitos dos quais acabam mortos e outros tantos presos. Exemplos mais recentes são os ex-policiais envolvidos inclusive na morte de Marielle Franco.

Essa relação promíscua de agentes e autoridades do Estado com o crime organizado e a perpetuação no tempo de figuras criminosas proeminentes não é privilégio de nossa realidade. Situações similares constituíam a realidade de países como Itália, Estados Unidos e Colômbia, onde a corrupção e omissão do Estado era essencial para a própria existência das máfias e cartéis que exploram o tráfico drogas, extorsão e tantos outros crimes. Porém, nesses países houve uma mudança de postura por parte do Estado, precedida de uma depuração de muitas de suas estruturas e instituições policiais, sendo a situação enfrentada e levando a um maior controle por parte do Estado da situação como um todo. Longe de terem resolvido por completo o problema do crime organizado, que continua a existir, observar o que é a Colômbia hoje e o que era nos tempos de Pablo Escobar, o que são os EUA hoje e o que foi vivenciado nos EUA nos tempos de ouro da máfia, e o que é a Itália hoje em vista do que era a Itália dominada pelos capi e famiglias até o início dos anos 1990, leva inevitavelmente a conclusão de que esses governos conseguiram dar uma resposta razoável ao problema. Vale dizer, a par de continuar existindo o crime organizado nesses países, não se tem mais aquela situação quase que de descontrole total, com atentados a autoridades, execuções em vias públicas e líderes de organizações desfilando livremente, e da sensação que existia de violência e impunidade ante a impotência do Estado.

Neste ponto vem a grande preocupação com esse tema do crime organizado no Rio de Janeiro: ainda não conseguimos dar a virada contra o crime organizado. O Estado não conseguiu, a exemplo dos países citados, tomar de vez as rédeas do enfrentamento a esse problema, e se perpetuam as organizações e suas lideranças ligadas ao jogo do bicho e outros crimes. E esse problema está longe de ser exclusivo do Estado do Rio de Janeiro.

O enfrentamento do crime organizado é algo complexo, que demanda um conjunto de ações de várias áreas. Evidentemente que necessita de uma legislação específica para o tema, vez que se trata de tipo de criminalidade diverso daquela denominada criminalidade comum, demanda treinamento, capacitação e investimento nas instituições policiais para que tenham estrutura adequada para enfrentar o crime organizado, exigindo o mesmo para o Ministério Público e em relação a Magistratura órgãos de jurisdição especializados, dotados de garantias adicionais para o exercício específico de suas funções em processos envolvendo organizações criminosas, inclusive resguardando a segurança física das autoridades, além de estruturação do sistema penitenciário para evitar que o crime continue vigorando e mandando de dentro de cadeias.

Em nosso país já temos implantados muitos desses requisitos mínimos para o enfrentamento ao crime organizado. Leis existem sobre o tema, mesmo que possam ser melhoradas, investimentos nas Polícias e Ministério Público foram e são feitos, ainda que insuficientes, a Magistratura tem suas garantias, embora possam ser aperfeiçoadas quando se trata de crime organizado. O que falta então? Essa é a pergunta que naturalmente advém desse quadro. A resposta: falta o Estado ser depurado do mal da corrupção para que possa efetivar, com base na estrutura que já possuímos, um enfrentamento sério e contundente ao problema do crime organizado. Padecemos de problema similar ao que o México enfrenta, que é a infiltração de instituições essenciais do Estado pelo crime organizado. Não por acaso no México o problema só se agrava ao longo das últimas décadas, assim como no Brasil.

Enquanto o Estado estiver infiltrado pelo crime organizado não existe possibilidade de ser realizado um enfrentamento sistemático e eficiente, que comece a reverter o quadro existente. Como disse o Magistrado Federal Flávio Lucas a conexão direta ou indireta com o Estado é, sem dúvida, a principal característica do Crime Organizado, e, pode-se dizer sem exagero, é o principal modo de operacionalizar a sua atuação, já que somente infiltrando-se nos governos, nos parlamentos, nas administrações policiais e nos palácios de justiça, de modo a paralisar o braço que teoricamente deveria golpeá-lo, é que o Crime Organizado adquirirá real impunidade[1].

Sem que o Estado esteja com suas instituições livres da influência financeira e política do crime organizado, sem que a corrupção das instituições seja previamente enfrentada, não há possibilidade de êxito no enfrentamento as organizações criminosas.

Até que haja uma depuração das estruturas do Estado, “Vale o Escrito” para as organizações criminosas, que tem suas regras escritas a sangue e impostas pela violência e corrupção, restando para o Estado e a sociedade a valia de parte daquilo que está escrito nas Leis e na Constituição.

[1] Organizações Criminosas e Poder Judiciário, 2007. https://www.scielo.br/j/ea/a/g74f4wYNFN73T7ZbWnfdkfb/?format=pdf

Opinião por Disney Rosseti

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