Foi por volta de 1975 – portanto, há meio século. Eu era professor iniciante da Faculdade de Direito da USP, preparava uma tese sobre poder e legitimidade em países em desenvolvimento e era repórter do Jornal da Tarde, quando recebi de meu chefe, o jornalista e professor Rolf Kuntz, da Faculdade de Filosofia da USP, a ordem para ir à Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, e cobrir uma palestra do economista sueco Gunnar Myrdal.
Ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1974, ele o dividira com o filósofo austríaco Friedrich von Hayek. Se este tinha uma obra conservadora no campo da interdependência entre os fenômenos sociais e econômicos e as instituições políticas, Myrdal se destacava por uma formação social-democrata, com ênfase à desigualdade regional e social. Ao chegar na sede da FGV, no bairro de Botafogo, o que me veio à cabeça foi tentar entender por que essa instituição - onde a ditadura havia recrutado alguns de seus ministros - convidara não um conservador como Hayek, mas um antípoda, como Myrdal, para fazer uma conferência. Afinal, aquele era um período em que as áreas de ensino e pesquisa eram marcadas por guerras palacianas decorrentes de razões ideológicas - e o papel do Estado no desenvolvimento estava no centro das discussões.
Já havia assistido uma palestra de Hayek, um pensador idolatrado no Jornal da Tarde e no Estadão, onde suas idéias fundamentavam editoriais contra a presença do Estado na economia de mercado, e o achei antipático e arrogante. Com Myrdal, deu-se justamente o oposto. Perante aquele público em grande parte conservador, no Rio de Janeiro, revelou-se um expositor competente, persuasivo e respeitoso. Uma das razões de sua fama decorria do conceito de “causação circular cumulativa”, que estava na base de sua teoria do desenvolvimento.
Por meio dele, Myrdal descreve o processo pelo qual, quando as forças do mercado atuam livremente, os ricos se tornam mais ricos e os pobres ficam mais pobres. Myrdal desenvolveu esse conceito ao estudar o negro na democracia americana na década de 1940. Depois, ele o utilizou nos anos 1950, durante o debate entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Na década de 1960, lançou o olhar para outros continentes - inclusive a América Latina - e, incomodado com a constatação da existência de um grande número de países pobres em relação a um pequeno número de países ricos, disse que o livre jogo de forças de mercado jamais reduziria as desigualdades sociais e regionais.
Se as forças de mercado não fossem controladas, as atividades da economia do desenvolvimento – inclusive a ciência, a cultura, a educação e até mesmo a ciência do direito – proporcionariam uma remuneração maior do que a média em alguns poucos países, deixando os demais estagnados – afirmou Myrdal. Era justamente o que vinha ocorrendo na América Latina e, dentro dela, em países com fortes desigualdades regionais e sociais, como o Brasil e o México. Só um Estado social-democrático poderia romper o círculo vicioso do empobrecimento, concluiu. Ao terminar a palestra, respondeu perguntas feitas por economistas ortodoxos que, apesar de suas divergências, reconheceram a autoridade intelectual e a solidez das explicações de Myrdal. Lembro-me quando um respeitado docente pediu a palavra e afirmou que a Academia Sueca de Ciência justificou a escolha de Myrdal para o Nobel em razão de seu modo original de oferecer perguntas e respostas originais em sua obra. Myrdal agradeceu, enfatizando a importância dos eventos acadêmicos. Sem debates como o que travara, a(s) ciência(s) não se legitimaria(m) perante a sociedade – concluiu.
Aquela conferência me marcou e, ao retornar a São Paulo, eu a divulguei entre meus alunos na Faculdade de Direito da USP. Eu voltei a me lembrar dela no final de 2024, quando, no VIII Simpósio organizado pelo Comitê de Inovação e Pesquisa da FGV, presidi o debate sobre os dilemas éticos do avanço e da disseminação da ciência nos dias de hoje. Formado por jovens pesquisadores com idade entre 22 e 27 anos, em segundos o público compreendeu a importância daquela frase. E, aí, entendeu por que debates como os de 1975 e de 2024 evidenciam a imbricação da história da FGV com a própria história econômica, política e jurídica do país, nestas últimas 8 décadas.