Hoje temos uma balbúrdia legislativa na área eleitoral. O que é sistematizado, o Código Eleitoral de 1965, está muito defasado. E o que tem de mais novo, toda legislação pós Constituição de 1988, está distribuído em previsões legais assistemáticas. Esse desarranjo tem efeitos colaterais graves, com inevitável redução do índice de legitimidade da nossa democracia.
Não era e não é mais possível seguir promovendo apenas reformas circunstanciais, sem nenhum compromisso com um concerto sistêmico. É de democracia que estamos falando, afinal.
O arranjo de tudo isso começou muito bem com a Sistematização das Normais Eleitorais pelo TSE. Coordenado pelo Ministro Fachin, um time muito qualificado fez um diagnóstico preciso. No entanto, o TSE não pode avançar para além das suas Resoluções. A necessidade maior do arranjo está na legislação. Por isso a importância decisiva do Grupo de Trabalho criado pelo Presidente Arthur Lira e sob Relatoria de Margarete Coelho, uma deputada de sólida formação acadêmica na área eleitoral. Ligar o trabalho do TSE com o "Grupo da Margarete" é a chave para avançar.
A ideia central é separar o que há de melhor, descartar o que não serve e criar regras novas, reunindo tudo em um novo Código Eleitoral moderno, de fácil compreensão e sem gargalos sistêmicos. Margarete conseguiu envolver todas as entidades que atuam na área e mais de cem professores e pesquisadores da Academia Brasileira de Direito Eleitoral - a ABRADEP. É uma chance de ouro para darmos um enorme salto de qualidade na segurança jurídica das regras eleitorais brasileiras.
Diante da atual balbúrdia, é importante reconhecer que o TSE avançou excessivamente no seu poder regulamentar. Paradoxalmente, há certo consenso em reconhecer que sem as Resoluções do TSE não é possível realizar eleições no Brasil. O TSE não está confortável em ter que editar múltiplas resoluções analíticas a cada eleição, invadindo áreas de reserva legal, por expressa disposição do art. 22, inciso I, da Constituição Federal. A ideia é promover uma importação crítica de muitos pontos das Resoluções para o novo Código Eleitoral. Com isso, desidratamos o excessivo poder regulamentar do TSE e entregamos à democracia brasileira mais segurança jurídica, com a estabilização das regras.
Além do concerto sistêmico, será possível avançar em temas importantes.
Sobre as mudanças, é importante compreender que há uma distinção, nem sempre muito nítida, entre o que é reforma política e o que é aprimoramento da legislação eleitoral. A reforma política quase sempre pressupõe a necessidade de emenda constitucional, com quórum alto e enorme controvérsia política. É muito difícil fazer reforma política; desde Clístenes, na Grécia, como nos conta o inglês Roger Osborne. Mudanças no sistema eleitoral e partidário não são neutras e, por isso, mobilizam os políticos que temem não sobreviver nos modelos novos. É natural. Mesmo sem uma reforma política é possível avançar em temas sensíveis que estão a demandar aprimoramento. Menciono aqui, como exemplo, o sistema de inelegibilidades, o financiamento de campanha e a propaganda eleitoral, além de toda a área do contencioso eleitoral.
Começando pela propaganda, a verdade é que o Brasil tem o sistema mais regulado de campanha eleitoral do mundo. É algo esquizofrênico. No início da onda de restrições à propaganda, lá em 2006, estava a ideia de controlar gastos. Depois nós evoluímos com o teto de gastos, inclusive item a item, o que dispensaria a super regulamentação da propaganda. Mas não dispensamos. Definir o tamanho de adesivo para bicicleta, para citar um exemplo exótico da Lei Eleitoral, é uma vergonha. Temos que higienizar e desidratar a disciplina da propaganda eleitoral, dando mais espaço para os candidatos. Há bons estudos mostrando déficit de informação do eleitor em razão da hiper-regulamentação. Na essência, basta o teto de gastos.
No tema do financiamento, a decisão do STF de barrar indiscriminadamente as doações de pessoas jurídicas, em clássico exemplo de indesejado ativismo, merece "revisão". A minirreforma eleitoral de 2015, com a proibição do financiamento de empresas, foi embalada pela decisão do STF. Temos que achar um meio termo aí, conciliando financiamento pelas empresas, com limites rígidos de tetos nominais. O atual sistema põe toda energia dos partidos na eleição de deputados federais, responsáveis por definir o pedaço do rateio do financiamento público (partidário e de campanha). Isso está gerando uma enorme distorção. Muitos partidos não querem mais disputar os cargos majoritários. O ponto é sensível, mas dá para avançar.
Uma década depois, é fundamental revisitar a Lei da Ficha Limpa. A ideia não é restabelecer o desenho anterior das inelegibilidades - que era ruim -, mas aprimorar o atual, concebido às pressas e para aplacar uma fúria moralista um tanto quanto irracional. Não há sentido no prazo único de oito anos para todas as inelegibilidades, para citar um exemplo óbvio. Espero que o Congresso aprimore, mas a matéria é bem controvertida, reconheço.
O importante é organizar tudo e, além disso, fazer reformas incrementais. A Deputada Margarete vai saber calibrar a dimensão do avanço que cabe no ambiente político do Congresso. A democracia brasileira pode dar um belo salto de qualidade. A chance é única.
*Luiz Fernando Casagrande Pereira tem mestrado e doutorado pela UFPR. No mês de março, foi eleito coordenador-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, a ABRADEP. Recentemente, foi escolhido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, para integrar um grupo de quatro professores que darão consultoria na reforma da legislação eleitoral