O Decreto nº 12.341, de 2024, surge como uma importante regulamentação no cenário da segurança pública, estabelecendo diretrizes claras para o uso da força e de instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais da área. Num contexto em que a segurança e os direitos humanos frequentemente se encontram em um delicado equilíbrio, o decreto busca harmonizar a atuação dos agentes de segurança com os princípios fundamentais da dignidade humana e da legalidade. Ao definir parâmetros para a atuação policial, o decreto visa não apenas proteger a integridade de cidadãos e policiais, mas também promover a confiança pública nas instituições de segurança.
O documento estabelece normas para o uso diferenciado da força por profissionais de segurança pública, visando a minimizar riscos e promover uma atuação mais segura e responsável. O uso da força deve ser proporcional à ameaça, priorizando a comunicação e a negociação para evitar a escalada da violência, sendo o uso de armas de fogo um último recurso. Armas de fogo não podem ser usadas contra pessoas desarmadas em fuga ou veículos que desrespeitem bloqueios policiais, a menos que representem risco iminente. A capacitação dos agentes é obrigatória e deve ocorrer anualmente, abordando o uso adequado de diferentes tipos de armas e instrumentos de menor potencial ofensivo. Além disso, é essencial que apenas profissionais habilitados façam uso de tais equipamentos, e que relatórios detalhados sejam elaborados sempre que o uso da força resultar em ferimentos ou mortes.
Para implementar essas diretrizes, o Ministério da Justiça e Segurança Pública é responsável por financiar ações, formular políticas e promover a capacitação e conscientização sobre o uso da força. Os órgãos de segurança pública devem seguir diretrizes que incluem a atualização de normas, o registro e publicação de dados sobre o uso da força, e a oferta de equipamentos de proteção e instrumentos menos letais. Também se destaca a importância do suporte à saúde mental dos agentes e da normatização de procedimentos em situações de alto risco. Mecanismos de controle são estabelecidos para garantir transparência e acesso a informações, com a criação de canais de denúncia e a atuação de corregedorias e ouvidorias. Um Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força será instituído para avaliar a implementação dessas políticas, com participação da sociedade civil, visando a redução da letalidade policial e a vitimização de agentes de segurança. O repasse de recursos para ações que envolvam o uso da força está condicionado ao cumprimento das normas estabelecidas no decreto e na legislação vigente.
O decreto segue o Protocolo da ONU sobre o uso da força e armas de fogo pelos responsáveis pela aplicação da lei, de 1990. De acordo com o protocolo, os governos devem criar normas que regulem o uso da força, priorizando métodos não violentos e desenvolvendo tecnologias de armas não-letais para minimizar danos. O uso de armas de fogo é restrito a situações de legítima defesa ou quando outras medidas não são eficazes. Há uma ênfase na formação contínua dos agentes, abordando ética, direitos humanos e alternativas ao uso da força. O Protocolo também destaca a importância de relatar e revisar incidentes de uso da força, garantindo responsabilização e transparência, além de proteger agentes que se recusam a cumprir ordens ilegítimas.
É importante realçar que, ao contrário do que alguns Governadores ou Parlamentares têm argumentado, o Decreto resulta de mandamento legal previsto na Lei 13.060/2013 que, no artigo 7º, determina que o Poder Executivo deverá regulamentar, classificar e disciplinar o uso de armas não letais.
Ademais, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), trata da atuação das forças de segurança pública em operações policiais no Rio de Janeiro, especialmente em comunidades vulneráveis. O STF determinou que, durante a pandemia de COVID-19, as operações policiais nessas áreas deveriam ser limitadas apenas a casos excepcionais, justificando-se de forma clara e objetiva. A decisão busca proteger os direitos fundamentais dos moradores, assegurar que ações policiais sejam realizadas de maneira responsável e transparente, e minimizar impactos negativos em áreas vulneráveis. Ou seja, o STF nunca proibiu operações policiais, apenas determinou que estas sejam minimamente planejadas.
Em acréscimo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pelo caso Honorato vs. Brasil, em que policiais militares do extinto grupo GRADI, durante a operação “Castelinho”, em 2002, executaram 12 pessoas na Rodovia Castelo Branco. A Corte destacou que houve uso desproporcional da força e violação do direito à vida. Além disso, a sentença critica a falta de uma investigação adequada e destaca a necessidade de reparações, como assistência psicológica às famílias das vítimas, reconhecimento público das responsabilidades e ajustes nas políticas de segurança para reduzir a letalidade policial. O país também deve adotar medidas para monitorar operações policiais, garantir investigações imparciais e dar suporte ao Ministério Público para investigar mortes causadas por policiais.
Recentemente, o caso de Juliana Leite Rangel, que foi gravemente ferida após ser atingida por um tiro na cabeça durante uma ação da Polícia Rodoviária Federal na Rodovia Washington Luís, ilustra a urgente necessidade de regulamentação do uso da força policial pelo Estado. Juliana, que estava a caminho de passar o Natal com a família, foi vítima de disparos efetuados por agentes da PRF, resultando em estado de saúde gravíssimo após uma cirurgia. O incidente também deixou seu pai ferido e levantou questões sobre o uso da força policial e a saúde mental dos agentes.
Registre-se, por fim, que não se cuidou de ato construído sem o indispensável diálogo, na medida em que a norma foi elaborada no âmbito de um grupo do trabalho instituído em fevereiro de 2024, composto pelos Conselhos de Secretários Nacionais de Segurança Pública, de Comandantes Gerais de Polícias Militares, de Chefes de Polícia Civil, das Guardas Civis, do Conselho Nacional do Ministério Público, bem como da sociedade civil organizada, representada pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes no Brasil, Delegação Regional para Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Instituto Sou da Paz e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
É evidente que a regulamentação do uso da força policial é uma questão essencial e urgente para garantir a proteção da vida e dos direitos humanos, gerando um protocolo mais seguro que levará à proteção também da vida do policial e a um sistema de segurança pública mais eficiente. Não se está a proibir a atuação mais enérgica das polícias, e sim a reduzir os riscos de pessoas perderem suas vidas por equívocos evitáveis. Numa democracia, Segurança Pública e Direitos Humanos não são conceitos excludentes, mas complementares.