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Opinião|A independência do STF e as pretensões do Congresso


Por José Eduardo Faria*
Atualização:

Dois pontos desmentem os fundamentos das críticas feitas ao Supremo Tribunal Federal pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, acusando a corte de extrapolar sua atuação, de invadir o campo de ação dos demais Poderes, de judicializar políticas públicas e de classificar como inconstitucionais decisões do governo e de parlamentares. Ambos os pontos não constituem novidade, uma vez que estão no texto da Constituição que foi promulgada há 35 anos.

José Eduardo Faria  Foto: Felipe Rau/Estadão

O primeiro ponto diz respeito ao crescente protagonismo do Poder Judiciário. Os críticos do Supremo se esquecem de que, por um lado, a Constituição de 1988 aumentou significativamente as funções do Ministério Público Federal, inclusive para além da esfera penal. Ela também determinou a criação de Defensorias Públicas em cada unidade da Federação e da Defensoria Pública da União, ampliando assim o acesso aos tribunais por quem não dispunha de condições materiais para defender seus interesses e direitos. Por outro lado, o texto constitucional também permitiu a partidos, associações nacionais e entidades como a OAB a proporem ações de constitucionalidade, o que até então era prerrogativa do Procurador-Geral da República. Esses novos instrumentos processuais incluem ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, ações diretas de inconstitucionalidade por omissão e arguições de descumprimento de preceito fundamental.

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Concebidas para fortalecer a democracia após duas décadas de ditadura militar, todas elas ampliaram as reivindicações por justiça substantiva e reconhecimento de direitos por grupos minoritários e identitários, causando com isso uma sobrecarga quantitativa nas diferentes instâncias judiciais – inclusive no Supremo. Somente nas duas primeiras décadas após a promulgação da Constituição, foram propostas perante o STF mais de 4 mil ações diretas de inconstitucionalidade. E, entre 1990 e 2012, o número de novos processos ajuizados apenas nesses dois exercícios na primeira instância das Justiças Estaduais, da Justiça Federal e da Justiça trabalhista passou de 5,1 milhões para 28,2 milhões. Números como esses levaram os apressados críticos do STF a banalizar a expressão “ativismo”, desprezando o fato de que foi a sociedade que recorreu aos tribunais e de que a magistratura apenas cumpriu suas funções judicantes.

O segundo ponto diz respeito à estratégia retórica utilizada pelos Constituintes, com o objetivo de definir as normas disciplinadoras de uma sociedade complexa, desigual e cambiante. Independentemente de suas divergências partidárias e ideológicas, os constituintes decidiram que, nos casos em que houvesse consenso e que envolvessem práticas sociais homogêneas e expectativas comuns por parte da sociedade, a norma constitucional teria a forma de regras. Já no que não fosse passível de consenso e não tivesse por base costumes, rotinas e comportamentos sedimentos na sociedade, as normas constitucionais teriam a forma de normas programáticas ou principiológicas.

A diferença entre esses dois tipos de normas é de caráter lógico. Por se expressarem por meio de conceitos objetivos e precisos, as regras têm um campo de abrangência limitado e um número definido de hipóteses em que podem ser aplicadas, o que significa que elas são aplicáveis na base do tudo ou nada. Diante dos fatos que uma regra estipula, ela ou se aplica (e, portanto, suas determinações têm de ser seguidas); ou, então, não se aplica (por ser inválida). Já os princípios, por se expressarem por meio de conceitos mais indeterminados e polissêmicos, como “função social da propriedade”, “dignidade do homem livre” e “moralidade pública”, têm um campo indefinido de hipóteses. Ou seja, seu um campo de abrangência é maior do que o das regras, exigindo ima interpretação “ponderadora” por parte da magistratura.

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Além do mais, como são mais maleáveis ou dúcteis do que as regras, os princípios contribuem para que a magistratura possa tomar decisões que equilibrem estabilidade e mudança na vida social. Seus conceitos polissêmicos ajudam a lei a permanecer estável, ao mesmo tempo em que permitem que os intérpretes a acomodem às novas situações. Assim, no âmbito de sociedades pluralistas e cambiantes, os princípios apontam caminhos para e propiciam o ajuste das decisões tomadas pelos juízes com relação às especificidades de cada caso concreto ao contexto social, econômico e cultural que o circunscreve. Quando os princípios se chocam, os juízes têm de levar em conta a força relativa de cada um. Na prática, isso exige um balanceamento - a “ponderação” a que os juristas se referem - de valores. Ainda que alguns poucos magistrados tenham exorbitado ou venham exorbitando, valendo-se desse aumento de discricionariedade seja para ingressar na vida política e parlamentar seja comportando-se em alguns momentos nos tribunais superiores como falastrões, a maioria esmagadora da magistratura brasileira sempre foi consequente e responsável.

Em síntese, os princípios implicam uma abertura para valores de ordem moral, da parte dos juízes que têm de aplicá-los a cada caso que têm de julgar. Na prática, como quanto mais complexa é a sociedade, menos ela conseguiria ser disciplinada por regras precisas, o texto constitucional promulgado em 1988 alargou a discricionariedade da magistratura. E foi isso que gerou críticas de que seus membros estariam substituindo regras jurídicas por valores ideológicos, ampliando ainda mais o argumento dos políticos de que o campo de ação do Judiciário deveria ser reduzido, em nome da preservação da democracia.

Contudo, ainda que nas configurações dos tribunais superiores exista este ou aquele ministro sem envergadura intelectual e consistência doutrinária para integrá-los, essas crítica não procedem. Elas revelam despreparo – ou, então, intimidação, oportunismo e até má-fé - dos parlamentares descontentes com as recentes decisões do Supremo relativas à descriminalização do aborto, marco temporal, porte de drogas e imposto sindical. Como o Supremo têm - por cláusula pétrea - a prerrogativa de declarar a inconstitucionalidade de normas derivadas do poder constituinte derivado, as ameaças de limitar seu campo de ação vindas do Executivo e do Legislativo não têm como ser concretizadas. Se há uma instituição que tenta romper o equilíbrio dos Poderes, avocando para si a prerrogativa de derrubar decisões judiciais que “extrapõem os limites constitucionais” e de impor um regimento interno a uma corte constitucional, essa é onde pululam finas flores do lodo germinadas pelas sementes da política de cabresto, da fisiologia franciscana, da parolagem bíblica e de quem defende golpes e repete palavras-de-ordem fascistas.

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*José Eduardo Faria é professor titular e decano da Faculdade de Direito da USP

Dois pontos desmentem os fundamentos das críticas feitas ao Supremo Tribunal Federal pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, acusando a corte de extrapolar sua atuação, de invadir o campo de ação dos demais Poderes, de judicializar políticas públicas e de classificar como inconstitucionais decisões do governo e de parlamentares. Ambos os pontos não constituem novidade, uma vez que estão no texto da Constituição que foi promulgada há 35 anos.

José Eduardo Faria  Foto: Felipe Rau/Estadão

O primeiro ponto diz respeito ao crescente protagonismo do Poder Judiciário. Os críticos do Supremo se esquecem de que, por um lado, a Constituição de 1988 aumentou significativamente as funções do Ministério Público Federal, inclusive para além da esfera penal. Ela também determinou a criação de Defensorias Públicas em cada unidade da Federação e da Defensoria Pública da União, ampliando assim o acesso aos tribunais por quem não dispunha de condições materiais para defender seus interesses e direitos. Por outro lado, o texto constitucional também permitiu a partidos, associações nacionais e entidades como a OAB a proporem ações de constitucionalidade, o que até então era prerrogativa do Procurador-Geral da República. Esses novos instrumentos processuais incluem ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, ações diretas de inconstitucionalidade por omissão e arguições de descumprimento de preceito fundamental.

Concebidas para fortalecer a democracia após duas décadas de ditadura militar, todas elas ampliaram as reivindicações por justiça substantiva e reconhecimento de direitos por grupos minoritários e identitários, causando com isso uma sobrecarga quantitativa nas diferentes instâncias judiciais – inclusive no Supremo. Somente nas duas primeiras décadas após a promulgação da Constituição, foram propostas perante o STF mais de 4 mil ações diretas de inconstitucionalidade. E, entre 1990 e 2012, o número de novos processos ajuizados apenas nesses dois exercícios na primeira instância das Justiças Estaduais, da Justiça Federal e da Justiça trabalhista passou de 5,1 milhões para 28,2 milhões. Números como esses levaram os apressados críticos do STF a banalizar a expressão “ativismo”, desprezando o fato de que foi a sociedade que recorreu aos tribunais e de que a magistratura apenas cumpriu suas funções judicantes.

O segundo ponto diz respeito à estratégia retórica utilizada pelos Constituintes, com o objetivo de definir as normas disciplinadoras de uma sociedade complexa, desigual e cambiante. Independentemente de suas divergências partidárias e ideológicas, os constituintes decidiram que, nos casos em que houvesse consenso e que envolvessem práticas sociais homogêneas e expectativas comuns por parte da sociedade, a norma constitucional teria a forma de regras. Já no que não fosse passível de consenso e não tivesse por base costumes, rotinas e comportamentos sedimentos na sociedade, as normas constitucionais teriam a forma de normas programáticas ou principiológicas.

A diferença entre esses dois tipos de normas é de caráter lógico. Por se expressarem por meio de conceitos objetivos e precisos, as regras têm um campo de abrangência limitado e um número definido de hipóteses em que podem ser aplicadas, o que significa que elas são aplicáveis na base do tudo ou nada. Diante dos fatos que uma regra estipula, ela ou se aplica (e, portanto, suas determinações têm de ser seguidas); ou, então, não se aplica (por ser inválida). Já os princípios, por se expressarem por meio de conceitos mais indeterminados e polissêmicos, como “função social da propriedade”, “dignidade do homem livre” e “moralidade pública”, têm um campo indefinido de hipóteses. Ou seja, seu um campo de abrangência é maior do que o das regras, exigindo ima interpretação “ponderadora” por parte da magistratura.

Além do mais, como são mais maleáveis ou dúcteis do que as regras, os princípios contribuem para que a magistratura possa tomar decisões que equilibrem estabilidade e mudança na vida social. Seus conceitos polissêmicos ajudam a lei a permanecer estável, ao mesmo tempo em que permitem que os intérpretes a acomodem às novas situações. Assim, no âmbito de sociedades pluralistas e cambiantes, os princípios apontam caminhos para e propiciam o ajuste das decisões tomadas pelos juízes com relação às especificidades de cada caso concreto ao contexto social, econômico e cultural que o circunscreve. Quando os princípios se chocam, os juízes têm de levar em conta a força relativa de cada um. Na prática, isso exige um balanceamento - a “ponderação” a que os juristas se referem - de valores. Ainda que alguns poucos magistrados tenham exorbitado ou venham exorbitando, valendo-se desse aumento de discricionariedade seja para ingressar na vida política e parlamentar seja comportando-se em alguns momentos nos tribunais superiores como falastrões, a maioria esmagadora da magistratura brasileira sempre foi consequente e responsável.

Em síntese, os princípios implicam uma abertura para valores de ordem moral, da parte dos juízes que têm de aplicá-los a cada caso que têm de julgar. Na prática, como quanto mais complexa é a sociedade, menos ela conseguiria ser disciplinada por regras precisas, o texto constitucional promulgado em 1988 alargou a discricionariedade da magistratura. E foi isso que gerou críticas de que seus membros estariam substituindo regras jurídicas por valores ideológicos, ampliando ainda mais o argumento dos políticos de que o campo de ação do Judiciário deveria ser reduzido, em nome da preservação da democracia.

Contudo, ainda que nas configurações dos tribunais superiores exista este ou aquele ministro sem envergadura intelectual e consistência doutrinária para integrá-los, essas crítica não procedem. Elas revelam despreparo – ou, então, intimidação, oportunismo e até má-fé - dos parlamentares descontentes com as recentes decisões do Supremo relativas à descriminalização do aborto, marco temporal, porte de drogas e imposto sindical. Como o Supremo têm - por cláusula pétrea - a prerrogativa de declarar a inconstitucionalidade de normas derivadas do poder constituinte derivado, as ameaças de limitar seu campo de ação vindas do Executivo e do Legislativo não têm como ser concretizadas. Se há uma instituição que tenta romper o equilíbrio dos Poderes, avocando para si a prerrogativa de derrubar decisões judiciais que “extrapõem os limites constitucionais” e de impor um regimento interno a uma corte constitucional, essa é onde pululam finas flores do lodo germinadas pelas sementes da política de cabresto, da fisiologia franciscana, da parolagem bíblica e de quem defende golpes e repete palavras-de-ordem fascistas.

*José Eduardo Faria é professor titular e decano da Faculdade de Direito da USP

Dois pontos desmentem os fundamentos das críticas feitas ao Supremo Tribunal Federal pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, acusando a corte de extrapolar sua atuação, de invadir o campo de ação dos demais Poderes, de judicializar políticas públicas e de classificar como inconstitucionais decisões do governo e de parlamentares. Ambos os pontos não constituem novidade, uma vez que estão no texto da Constituição que foi promulgada há 35 anos.

José Eduardo Faria  Foto: Felipe Rau/Estadão

O primeiro ponto diz respeito ao crescente protagonismo do Poder Judiciário. Os críticos do Supremo se esquecem de que, por um lado, a Constituição de 1988 aumentou significativamente as funções do Ministério Público Federal, inclusive para além da esfera penal. Ela também determinou a criação de Defensorias Públicas em cada unidade da Federação e da Defensoria Pública da União, ampliando assim o acesso aos tribunais por quem não dispunha de condições materiais para defender seus interesses e direitos. Por outro lado, o texto constitucional também permitiu a partidos, associações nacionais e entidades como a OAB a proporem ações de constitucionalidade, o que até então era prerrogativa do Procurador-Geral da República. Esses novos instrumentos processuais incluem ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, ações diretas de inconstitucionalidade por omissão e arguições de descumprimento de preceito fundamental.

Concebidas para fortalecer a democracia após duas décadas de ditadura militar, todas elas ampliaram as reivindicações por justiça substantiva e reconhecimento de direitos por grupos minoritários e identitários, causando com isso uma sobrecarga quantitativa nas diferentes instâncias judiciais – inclusive no Supremo. Somente nas duas primeiras décadas após a promulgação da Constituição, foram propostas perante o STF mais de 4 mil ações diretas de inconstitucionalidade. E, entre 1990 e 2012, o número de novos processos ajuizados apenas nesses dois exercícios na primeira instância das Justiças Estaduais, da Justiça Federal e da Justiça trabalhista passou de 5,1 milhões para 28,2 milhões. Números como esses levaram os apressados críticos do STF a banalizar a expressão “ativismo”, desprezando o fato de que foi a sociedade que recorreu aos tribunais e de que a magistratura apenas cumpriu suas funções judicantes.

O segundo ponto diz respeito à estratégia retórica utilizada pelos Constituintes, com o objetivo de definir as normas disciplinadoras de uma sociedade complexa, desigual e cambiante. Independentemente de suas divergências partidárias e ideológicas, os constituintes decidiram que, nos casos em que houvesse consenso e que envolvessem práticas sociais homogêneas e expectativas comuns por parte da sociedade, a norma constitucional teria a forma de regras. Já no que não fosse passível de consenso e não tivesse por base costumes, rotinas e comportamentos sedimentos na sociedade, as normas constitucionais teriam a forma de normas programáticas ou principiológicas.

A diferença entre esses dois tipos de normas é de caráter lógico. Por se expressarem por meio de conceitos objetivos e precisos, as regras têm um campo de abrangência limitado e um número definido de hipóteses em que podem ser aplicadas, o que significa que elas são aplicáveis na base do tudo ou nada. Diante dos fatos que uma regra estipula, ela ou se aplica (e, portanto, suas determinações têm de ser seguidas); ou, então, não se aplica (por ser inválida). Já os princípios, por se expressarem por meio de conceitos mais indeterminados e polissêmicos, como “função social da propriedade”, “dignidade do homem livre” e “moralidade pública”, têm um campo indefinido de hipóteses. Ou seja, seu um campo de abrangência é maior do que o das regras, exigindo ima interpretação “ponderadora” por parte da magistratura.

Além do mais, como são mais maleáveis ou dúcteis do que as regras, os princípios contribuem para que a magistratura possa tomar decisões que equilibrem estabilidade e mudança na vida social. Seus conceitos polissêmicos ajudam a lei a permanecer estável, ao mesmo tempo em que permitem que os intérpretes a acomodem às novas situações. Assim, no âmbito de sociedades pluralistas e cambiantes, os princípios apontam caminhos para e propiciam o ajuste das decisões tomadas pelos juízes com relação às especificidades de cada caso concreto ao contexto social, econômico e cultural que o circunscreve. Quando os princípios se chocam, os juízes têm de levar em conta a força relativa de cada um. Na prática, isso exige um balanceamento - a “ponderação” a que os juristas se referem - de valores. Ainda que alguns poucos magistrados tenham exorbitado ou venham exorbitando, valendo-se desse aumento de discricionariedade seja para ingressar na vida política e parlamentar seja comportando-se em alguns momentos nos tribunais superiores como falastrões, a maioria esmagadora da magistratura brasileira sempre foi consequente e responsável.

Em síntese, os princípios implicam uma abertura para valores de ordem moral, da parte dos juízes que têm de aplicá-los a cada caso que têm de julgar. Na prática, como quanto mais complexa é a sociedade, menos ela conseguiria ser disciplinada por regras precisas, o texto constitucional promulgado em 1988 alargou a discricionariedade da magistratura. E foi isso que gerou críticas de que seus membros estariam substituindo regras jurídicas por valores ideológicos, ampliando ainda mais o argumento dos políticos de que o campo de ação do Judiciário deveria ser reduzido, em nome da preservação da democracia.

Contudo, ainda que nas configurações dos tribunais superiores exista este ou aquele ministro sem envergadura intelectual e consistência doutrinária para integrá-los, essas crítica não procedem. Elas revelam despreparo – ou, então, intimidação, oportunismo e até má-fé - dos parlamentares descontentes com as recentes decisões do Supremo relativas à descriminalização do aborto, marco temporal, porte de drogas e imposto sindical. Como o Supremo têm - por cláusula pétrea - a prerrogativa de declarar a inconstitucionalidade de normas derivadas do poder constituinte derivado, as ameaças de limitar seu campo de ação vindas do Executivo e do Legislativo não têm como ser concretizadas. Se há uma instituição que tenta romper o equilíbrio dos Poderes, avocando para si a prerrogativa de derrubar decisões judiciais que “extrapõem os limites constitucionais” e de impor um regimento interno a uma corte constitucional, essa é onde pululam finas flores do lodo germinadas pelas sementes da política de cabresto, da fisiologia franciscana, da parolagem bíblica e de quem defende golpes e repete palavras-de-ordem fascistas.

*José Eduardo Faria é professor titular e decano da Faculdade de Direito da USP

Dois pontos desmentem os fundamentos das críticas feitas ao Supremo Tribunal Federal pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, acusando a corte de extrapolar sua atuação, de invadir o campo de ação dos demais Poderes, de judicializar políticas públicas e de classificar como inconstitucionais decisões do governo e de parlamentares. Ambos os pontos não constituem novidade, uma vez que estão no texto da Constituição que foi promulgada há 35 anos.

José Eduardo Faria  Foto: Felipe Rau/Estadão

O primeiro ponto diz respeito ao crescente protagonismo do Poder Judiciário. Os críticos do Supremo se esquecem de que, por um lado, a Constituição de 1988 aumentou significativamente as funções do Ministério Público Federal, inclusive para além da esfera penal. Ela também determinou a criação de Defensorias Públicas em cada unidade da Federação e da Defensoria Pública da União, ampliando assim o acesso aos tribunais por quem não dispunha de condições materiais para defender seus interesses e direitos. Por outro lado, o texto constitucional também permitiu a partidos, associações nacionais e entidades como a OAB a proporem ações de constitucionalidade, o que até então era prerrogativa do Procurador-Geral da República. Esses novos instrumentos processuais incluem ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, ações diretas de inconstitucionalidade por omissão e arguições de descumprimento de preceito fundamental.

Concebidas para fortalecer a democracia após duas décadas de ditadura militar, todas elas ampliaram as reivindicações por justiça substantiva e reconhecimento de direitos por grupos minoritários e identitários, causando com isso uma sobrecarga quantitativa nas diferentes instâncias judiciais – inclusive no Supremo. Somente nas duas primeiras décadas após a promulgação da Constituição, foram propostas perante o STF mais de 4 mil ações diretas de inconstitucionalidade. E, entre 1990 e 2012, o número de novos processos ajuizados apenas nesses dois exercícios na primeira instância das Justiças Estaduais, da Justiça Federal e da Justiça trabalhista passou de 5,1 milhões para 28,2 milhões. Números como esses levaram os apressados críticos do STF a banalizar a expressão “ativismo”, desprezando o fato de que foi a sociedade que recorreu aos tribunais e de que a magistratura apenas cumpriu suas funções judicantes.

O segundo ponto diz respeito à estratégia retórica utilizada pelos Constituintes, com o objetivo de definir as normas disciplinadoras de uma sociedade complexa, desigual e cambiante. Independentemente de suas divergências partidárias e ideológicas, os constituintes decidiram que, nos casos em que houvesse consenso e que envolvessem práticas sociais homogêneas e expectativas comuns por parte da sociedade, a norma constitucional teria a forma de regras. Já no que não fosse passível de consenso e não tivesse por base costumes, rotinas e comportamentos sedimentos na sociedade, as normas constitucionais teriam a forma de normas programáticas ou principiológicas.

A diferença entre esses dois tipos de normas é de caráter lógico. Por se expressarem por meio de conceitos objetivos e precisos, as regras têm um campo de abrangência limitado e um número definido de hipóteses em que podem ser aplicadas, o que significa que elas são aplicáveis na base do tudo ou nada. Diante dos fatos que uma regra estipula, ela ou se aplica (e, portanto, suas determinações têm de ser seguidas); ou, então, não se aplica (por ser inválida). Já os princípios, por se expressarem por meio de conceitos mais indeterminados e polissêmicos, como “função social da propriedade”, “dignidade do homem livre” e “moralidade pública”, têm um campo indefinido de hipóteses. Ou seja, seu um campo de abrangência é maior do que o das regras, exigindo ima interpretação “ponderadora” por parte da magistratura.

Além do mais, como são mais maleáveis ou dúcteis do que as regras, os princípios contribuem para que a magistratura possa tomar decisões que equilibrem estabilidade e mudança na vida social. Seus conceitos polissêmicos ajudam a lei a permanecer estável, ao mesmo tempo em que permitem que os intérpretes a acomodem às novas situações. Assim, no âmbito de sociedades pluralistas e cambiantes, os princípios apontam caminhos para e propiciam o ajuste das decisões tomadas pelos juízes com relação às especificidades de cada caso concreto ao contexto social, econômico e cultural que o circunscreve. Quando os princípios se chocam, os juízes têm de levar em conta a força relativa de cada um. Na prática, isso exige um balanceamento - a “ponderação” a que os juristas se referem - de valores. Ainda que alguns poucos magistrados tenham exorbitado ou venham exorbitando, valendo-se desse aumento de discricionariedade seja para ingressar na vida política e parlamentar seja comportando-se em alguns momentos nos tribunais superiores como falastrões, a maioria esmagadora da magistratura brasileira sempre foi consequente e responsável.

Em síntese, os princípios implicam uma abertura para valores de ordem moral, da parte dos juízes que têm de aplicá-los a cada caso que têm de julgar. Na prática, como quanto mais complexa é a sociedade, menos ela conseguiria ser disciplinada por regras precisas, o texto constitucional promulgado em 1988 alargou a discricionariedade da magistratura. E foi isso que gerou críticas de que seus membros estariam substituindo regras jurídicas por valores ideológicos, ampliando ainda mais o argumento dos políticos de que o campo de ação do Judiciário deveria ser reduzido, em nome da preservação da democracia.

Contudo, ainda que nas configurações dos tribunais superiores exista este ou aquele ministro sem envergadura intelectual e consistência doutrinária para integrá-los, essas crítica não procedem. Elas revelam despreparo – ou, então, intimidação, oportunismo e até má-fé - dos parlamentares descontentes com as recentes decisões do Supremo relativas à descriminalização do aborto, marco temporal, porte de drogas e imposto sindical. Como o Supremo têm - por cláusula pétrea - a prerrogativa de declarar a inconstitucionalidade de normas derivadas do poder constituinte derivado, as ameaças de limitar seu campo de ação vindas do Executivo e do Legislativo não têm como ser concretizadas. Se há uma instituição que tenta romper o equilíbrio dos Poderes, avocando para si a prerrogativa de derrubar decisões judiciais que “extrapõem os limites constitucionais” e de impor um regimento interno a uma corte constitucional, essa é onde pululam finas flores do lodo germinadas pelas sementes da política de cabresto, da fisiologia franciscana, da parolagem bíblica e de quem defende golpes e repete palavras-de-ordem fascistas.

*José Eduardo Faria é professor titular e decano da Faculdade de Direito da USP

Dois pontos desmentem os fundamentos das críticas feitas ao Supremo Tribunal Federal pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, acusando a corte de extrapolar sua atuação, de invadir o campo de ação dos demais Poderes, de judicializar políticas públicas e de classificar como inconstitucionais decisões do governo e de parlamentares. Ambos os pontos não constituem novidade, uma vez que estão no texto da Constituição que foi promulgada há 35 anos.

José Eduardo Faria  Foto: Felipe Rau/Estadão

O primeiro ponto diz respeito ao crescente protagonismo do Poder Judiciário. Os críticos do Supremo se esquecem de que, por um lado, a Constituição de 1988 aumentou significativamente as funções do Ministério Público Federal, inclusive para além da esfera penal. Ela também determinou a criação de Defensorias Públicas em cada unidade da Federação e da Defensoria Pública da União, ampliando assim o acesso aos tribunais por quem não dispunha de condições materiais para defender seus interesses e direitos. Por outro lado, o texto constitucional também permitiu a partidos, associações nacionais e entidades como a OAB a proporem ações de constitucionalidade, o que até então era prerrogativa do Procurador-Geral da República. Esses novos instrumentos processuais incluem ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, ações diretas de inconstitucionalidade por omissão e arguições de descumprimento de preceito fundamental.

Concebidas para fortalecer a democracia após duas décadas de ditadura militar, todas elas ampliaram as reivindicações por justiça substantiva e reconhecimento de direitos por grupos minoritários e identitários, causando com isso uma sobrecarga quantitativa nas diferentes instâncias judiciais – inclusive no Supremo. Somente nas duas primeiras décadas após a promulgação da Constituição, foram propostas perante o STF mais de 4 mil ações diretas de inconstitucionalidade. E, entre 1990 e 2012, o número de novos processos ajuizados apenas nesses dois exercícios na primeira instância das Justiças Estaduais, da Justiça Federal e da Justiça trabalhista passou de 5,1 milhões para 28,2 milhões. Números como esses levaram os apressados críticos do STF a banalizar a expressão “ativismo”, desprezando o fato de que foi a sociedade que recorreu aos tribunais e de que a magistratura apenas cumpriu suas funções judicantes.

O segundo ponto diz respeito à estratégia retórica utilizada pelos Constituintes, com o objetivo de definir as normas disciplinadoras de uma sociedade complexa, desigual e cambiante. Independentemente de suas divergências partidárias e ideológicas, os constituintes decidiram que, nos casos em que houvesse consenso e que envolvessem práticas sociais homogêneas e expectativas comuns por parte da sociedade, a norma constitucional teria a forma de regras. Já no que não fosse passível de consenso e não tivesse por base costumes, rotinas e comportamentos sedimentos na sociedade, as normas constitucionais teriam a forma de normas programáticas ou principiológicas.

A diferença entre esses dois tipos de normas é de caráter lógico. Por se expressarem por meio de conceitos objetivos e precisos, as regras têm um campo de abrangência limitado e um número definido de hipóteses em que podem ser aplicadas, o que significa que elas são aplicáveis na base do tudo ou nada. Diante dos fatos que uma regra estipula, ela ou se aplica (e, portanto, suas determinações têm de ser seguidas); ou, então, não se aplica (por ser inválida). Já os princípios, por se expressarem por meio de conceitos mais indeterminados e polissêmicos, como “função social da propriedade”, “dignidade do homem livre” e “moralidade pública”, têm um campo indefinido de hipóteses. Ou seja, seu um campo de abrangência é maior do que o das regras, exigindo ima interpretação “ponderadora” por parte da magistratura.

Além do mais, como são mais maleáveis ou dúcteis do que as regras, os princípios contribuem para que a magistratura possa tomar decisões que equilibrem estabilidade e mudança na vida social. Seus conceitos polissêmicos ajudam a lei a permanecer estável, ao mesmo tempo em que permitem que os intérpretes a acomodem às novas situações. Assim, no âmbito de sociedades pluralistas e cambiantes, os princípios apontam caminhos para e propiciam o ajuste das decisões tomadas pelos juízes com relação às especificidades de cada caso concreto ao contexto social, econômico e cultural que o circunscreve. Quando os princípios se chocam, os juízes têm de levar em conta a força relativa de cada um. Na prática, isso exige um balanceamento - a “ponderação” a que os juristas se referem - de valores. Ainda que alguns poucos magistrados tenham exorbitado ou venham exorbitando, valendo-se desse aumento de discricionariedade seja para ingressar na vida política e parlamentar seja comportando-se em alguns momentos nos tribunais superiores como falastrões, a maioria esmagadora da magistratura brasileira sempre foi consequente e responsável.

Em síntese, os princípios implicam uma abertura para valores de ordem moral, da parte dos juízes que têm de aplicá-los a cada caso que têm de julgar. Na prática, como quanto mais complexa é a sociedade, menos ela conseguiria ser disciplinada por regras precisas, o texto constitucional promulgado em 1988 alargou a discricionariedade da magistratura. E foi isso que gerou críticas de que seus membros estariam substituindo regras jurídicas por valores ideológicos, ampliando ainda mais o argumento dos políticos de que o campo de ação do Judiciário deveria ser reduzido, em nome da preservação da democracia.

Contudo, ainda que nas configurações dos tribunais superiores exista este ou aquele ministro sem envergadura intelectual e consistência doutrinária para integrá-los, essas crítica não procedem. Elas revelam despreparo – ou, então, intimidação, oportunismo e até má-fé - dos parlamentares descontentes com as recentes decisões do Supremo relativas à descriminalização do aborto, marco temporal, porte de drogas e imposto sindical. Como o Supremo têm - por cláusula pétrea - a prerrogativa de declarar a inconstitucionalidade de normas derivadas do poder constituinte derivado, as ameaças de limitar seu campo de ação vindas do Executivo e do Legislativo não têm como ser concretizadas. Se há uma instituição que tenta romper o equilíbrio dos Poderes, avocando para si a prerrogativa de derrubar decisões judiciais que “extrapõem os limites constitucionais” e de impor um regimento interno a uma corte constitucional, essa é onde pululam finas flores do lodo germinadas pelas sementes da política de cabresto, da fisiologia franciscana, da parolagem bíblica e de quem defende golpes e repete palavras-de-ordem fascistas.

*José Eduardo Faria é professor titular e decano da Faculdade de Direito da USP

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