A Lei 13.874/19 ("Lei da Liberdade Econômica") entrou em vigor em 20 de setembro de 2019, com a finalidade de trazer, dentre outros pontos, a desburocratização aos negócios, visando dar maior liberdade, especialmente ao pequeno e médio empresário. Dentre as várias mudanças trazidas pela lei, destacam-se a inclusão do artigo 49-A e a alteração no artigo 50 do Código Civil, que tornaram mais claro e específico o conceito da desconsideração da personalidade jurídica, visando trazer maior segurança jurídica e maior proteção ao empresário.
A limitação da responsabilidade dos sócios ou acionistas é uma das principais características dos dois tipos societários mais usuais no Brasil (sociedades limitadas e sociedades anônimas), sendo, em regra, a própria pessoa jurídica responsável civil e administrativamente por seus passivos e obrigações. Tal conceito foi inclusive reafirmado no novo artigo 49-A do Código Civil, que prevê que a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular o empreendedorismo. Contudo, mediante requerimento do credor ou do Ministério Público, pode o juízo competente instituir a desconsideração da personalidade jurídica, desde que comprovado o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, fazendo então com que os sócios e/ou administradores da sociedade respondam pessoalmente pelos passivos da sociedade.
Como forma de assegurar a proteção da limitação de responsabilidade dos sócios e administradores de empresas, o Código de Processo Civil de 2015 já havia incluído a necessidade da prévia citação dos sócios e dos administradores, a fim de lhes assegurar o direito à ampla defesa. Porém, até o advento da Lei da Liberdade Econômica, ainda não existia uma definição legal dos conceitos de "desvio de finalidade" e "confusão patrimonial" mencionados no artigo 50 do Código Civil. Essa ausência conceitual trazia insegurança jurídica, já que cabia ao judiciário definir, caso a caso, tais conceitos. Com isso, esses conceitos não eram consolidados para alguns aspectos, como, por exemplo, no caso de encerramento irregular de pessoa jurídica.[1]
De acordo com as definições trazidas pela nova lei, o desvio de finalidade representa a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores ou para praticar atos ilícitos de qualquer natureza, enquanto a confusão patrimonial seria entendida pela ausência de separação, de fato, entre os patrimônios, caracterizada pelo cumprimento repetitivo, pela sociedade, de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa (como por exemplo o pagamento de contas pessoais do sócio ou do administrador pela sociedade ou vice-versa), ou, ainda, pela transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contrapartidas, exceto os de valor proporcionalmente insignificante.
Tais definições trouxeram maior harmonia e segurança ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, buscando oferecer mais esclarecimentos às controvérsias por ele incitadas, além de oferecer proteção às sociedades pertencentes a grupos econômicos. Porém, é importante ressaltar que a nova lei ainda manteve alguns conceitos de forma ampla e sem detalhes, como, por exemplo, ao incluir que "outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial" podem refletir na confusão patrimonial, e ao não definir, com relação à transferência de ativos ou passivos, o que seria um "valor proporcionalmente insignificante", deixando margem a interpretações pelo judiciário.
Com relação ao conceito de grupo econômico, ou grupo de sociedades, o fato de uma sociedade fazer parte de um grupo, seja como controlada ou como controladora, não modifica sua personalidade e patrimônio, que continuam sendo autônomos e independentes em relação aos demais integrantes do grupo[2]. Essa caracterização é muito importante quando tratamos de dívidas tributárias, por exemplo, já que o fisco tende a atribuir responsabilidade por tais dívidas a sociedades distintas simplesmente por integrarem o mesmo grupo econômico.
Em termos processuais, a desconsideração da personalidade jurídica deve seguir o procedimento previsto no Art. 133 do Código de Processo Civil, o qual prevê que o "IDPJ", ou seja, o incidente da desconsideração da personalidade jurídica, será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.No caso de execuções fiscais, por exemplo, uma vez instaurado o IDPJ, a cobrança da execução fiscal é suspensa, protegendo a possibilidade do contraditório e a ampla defesa.
Quanto a este ponto, recentemente, a 1ª Seção do STJ manteve decisão favorável à necessidade prévia do IDPJ para o redirecionamento de execuções fiscais para empresas integrantes de um mesmo grupo econômico[3]. Porém não ficou resolvida a divergência sobre caber ou não IDPJ na execução fiscal, pois o julgamento não tratou do mérito da questão.
Em todo caso, a intenção da Lei da Liberdade Econômica de diminuir a burocracia do aparato estatal e de aproximar o ambiente de negócios no Brasil ao dos países desenvolvidos representa evolução no sistema jurídico brasileiro, marcado historicamente pela burocratização que, por vezes, sinaliza as arbitrariedades a ele inerentes. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica, previamente aos esclarecimentos trazidos pela Lei, era uma expressão de tal arbitrariedade. Assim, muito embora ainda exista margem para interpretação pelo judiciário, a inclusão do artigo 49-A e a nova redação atribuída ao artigo 50 do Código Civil, particularmente a definição do desvio de finalidade e da confusão patrimonial, garantem maior segurança jurídica e proteção às sociedades e às pessoas físicas nelas envolvidas, princípios vitais ao sucesso do empreendedorismo no Brasil.
* Melissa Kanô, Patrícia Braga e Gabriela Callari são especialistas da área de Direito Societário e M&A do KLA Advogados
[1] Vide julgados: Fonte eletrônica:
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=13554207&cdForo=0. Acesso em 25 de maio de 2020, às 10:30h.
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=13518865&cdForo=0. Acesso em 25 de maio de 2020 às 10:30h.
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?conversationId=&cdAcordao=13515477&cdForo=0&uuidCaptcha=sajcaptcha_c16eb51f6bd74758a5a6a7ed5b309111&g-recaptcha-response=03AGdBq26XKZ_5IqbQsiumxTXkvYI98-V0mfZb5VsuJFLknMWSLNUs0klf0aVtLiIO_ev-4ed6gNl2kQ_8mRpZgfuGUbZbsg-qfyHk4P2pPzUSr4yEKr0lq5b5YKz9tRVS_nMjBCafI5iiPZlb5z-5LknwrCAKoROpCRhVSBEShscORywvYbFEmQLJP2A-CkTFxm2BUL4PYWpZGLcGZoLBhksl_y_9l5ypftb6DvAMWtCf040t9xtI6_qV-S-SSax1Q3GzAQucT8UFmTfAHWXuwQtxUlZVuNRuTYCNW99xAAec_oTuG8RmgwT6_UzX9HVqeJX6WFKtHrmYZN5q5w6gI8fAztJ1pq90cNmo2fbMB4-qdMGvcMvj2hhaVXP2BvuG4ItnT40mm7Ud0IwiO-om0NPGJKNXM-5CeQ. Acesso em 25 de maio de 2020 às 10:30h.
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=8649709&cdForo=0. Acesso em 25 de maio de 2020 às 10:30h.
[2] CARVALHOSA, Modesto; KUYVEN, Fernando. Grupo de sociedades. In: CARVALHOSA, Modesto (Org.). Tratado de Direito Empresarial: sociedades anônimas. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. 3 v. Cap. 18.
[3] Fonte eletrônica: https://ww2.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=91&documento_sequencial=107750323®istro_numero=201802809059&peticao_numero=202000013846&publicacao_data=20200414&formato=PDF. Acesso em 25 de maio de 2020 às 11:00h.