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A PEC 09/2023: mais do que anistia aos partidos, uma violência contra as mulheres na política


Por Gabriela Shizue Soares de Araujo
Gabriela Shizue Soares de Araujo. Foto: Divulgação

A violência política contra a mulher é definida, nos termos da Lei nº 14.192, de 04 de agosto de 2021, como toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher.

Contudo, a supramencionada Lei nº 14.192/2021, cujo objetivo precípuo seria, em tese, prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, deixou de observar que dois dos principais responsáveis por impedir e restringir os direitos políticos das mulheres são justamente os partidos políticos e o próprio Congresso Nacional.

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Enquanto boa parte dos partidos políticos vêm, ao longo de décadas, descumprindo reiteradamente com as poucas cotas e políticas afirmativas implementadas por lei e jurisprudência para incrementar a participação de mulheres na política, o Congresso Nacional estimula tal conduta, aprovando verdadeiras anistias que proíbem a Justiça Eleitoral de aplicar sanções aos partidos infratores.

Em 2009, a Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) foi alterada para incluir em sua redação um dispositivo que garante que pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos públicos do Fundo Partidário recebidos pelos partidos políticos sejam utilizados na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, administrados por suas respectivas Secretarias de Mulheres ou órgãos equivalentes nas instâncias partidárias.

Entretanto, nos dez anos seguintes à criação dessa política afirmativa, a maioria dos partidos políticos vinham sofrendo sanções aplicadas pela Justiça Eleitoral[1], como aplicação de multas e reprovação das prestações de contas anuais, em razão de não terem cumprido com o mínimo legal, que parece bastante irrisório se considerarmos que eles disponibilizam dos demais 95% (noventa e cinco por cento) dos recursos para gastarem com o que quiserem.

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Tais sanções, lamentavelmente, não foram educativas. Ao invés de se comprometerem com a inclusão de mulheres nas esferas de deliberação e construção intrapartidárias, de investirem em capacitação e formação política de mulheres, os partidos infratores, cujas direções são majoritariamente masculinas, viram uma saída mais fácil no Congresso Nacional, também dominado pelos mesmos padrões masculinos: a autoanistia.

Primeiramente, foi promulgada a Lei nº 13.831, de 17 de maio de 2019, que estabeleceu que os partidos que não tivessem destinado pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos recebidos de Fundo Partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, nos exercícios anteriores a 2019, não poderiam ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade eventualmente aplicada pela Justiça Eleitoral.

Três anos depois da promulgação dessa lei, uma nova anistia foi aprovada, e desta vez, pasmem, por Emenda Constitucional. Tantas matérias de suma relevância dependendo de deliberação do nosso Poder Legislativo, mas as duas casas conseguiram se reunir em dois turnos cada uma e aprovar, por maioria qualificada, a impunidade dos partidos políticos que desviaram recursos que deveriam ser destinados às mulheres na política.

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Trata-se da Emenda Constitucional nº 117, de 5 de abril de 2022, que, em seu artigo 2º, impôs vedação expressa à Justiça Eleitoral de condenar ou aplicar qualquer tipo de sanção aos partidos políticos que não tivessem destinado recursos aos programas de promoção e difusão da participação política das mulheres até a promulgação da referida emenda.

Apesar dessa e de outra anistia concedida àqueles que desrespeitaram os direitos políticos das mulheres - e que vamos tratar um pouco mais adiante neste artigo - na época, referida Emenda Constitucional foi anunciada pelos parlamentares como uma suposta conquista das mulheres, posto que o seu primeiro artigo coloca de forma expressa no texto formal da Constituição Federal direitos que já estavam consolidados na lei e na jurisprudência, por meio da inclusão dos §§7º e 8º ao artigo 17 da Carta Magna.

Foi incluído o §7º ao artigo 17 da Constituição, para replicar o que já estava previsto na Lei dos Partidos Políticos desde 2009, ou seja, a obrigatoriedade de as legendas aplicarem no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do Fundo Partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres.

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Já o §8º, também adicionado ao artigo 17 por meio da Emenda Constitucional nº 117/2022, em tese serviria para reduzir a texto direitos já adquiridos pelas mulheres em decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, garantindo que os recursos públicos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do Fundo Partidário, e o tempo de propaganda no rádio e TV, a serem utilizados em campanhas eleitorais pelos partidos políticos, sejam destinados às mulheres candidatas na mesma proporção de suas candidaturas, partindo-se do mínimo de 30% (trinta por cento).

Ocorre que, como já mencionado anteriormente, desde 2018, o Supremo Tribunal Federal (ADI 5617/DF) e o Tribunal Superior Eleitoral (Consulta TSE nº 0600252-18/DF) já haviam consolidado jurisprudência no sentido de que as mulheres teriam direito a cotas de financiamento nas Eleições e visibilidade em propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV. E mais, desde 2020, ambas as Cortes Superiores haviam decidido que tais cotas deveriam também ser distribuídas para pessoas negras, à razão da proporção de suas candidaturas (ADPF 738/DF e Consulta TSE n° 0600306-47/DF).

Todavia, o Congresso Nacional deliberadamente optou por deixar as cotas raciais de fora da redação do §8º do artigo 17 da Constituição Federal. Na hora de incluir no texto constitucional os mesmos direitos que tanto mulheres, como pessoas negras, conquistaram igualmente, via jurisprudência, não houve consenso entre os parlamentares - a maioria esmagadora de homens brancos. Mas, para retirar direitos, aí sim as pessoas negras foram muito bem lembradas.

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Isso porque, a mesma Emenda Constitucional nº 117/2022, em seu artigo 3º - e aqui vem a segunda anistia -, estabelece que "não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça" em eleições ocorridas antes da promulgação da referida emenda.

Note que a Emenda Constitucional nº 117/2022 nada mais foi do que uma cilada. Dos seus três artigos, dois foram para anistiar partidos políticos que há anos violam, restringem, obstaculizam os direitos políticos das mulheres.

A Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, nada mais é do que uma tentativa de prorrogar os efeitos da supramencionada Emenda Constitucional nº 117/2022, para que a anistia seja válida também para os partidos que descumpriram com as cotas de raça e gênero nas Eleições de 2022.

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Caso a PEC nº 09/2023 seja aprovada, estaremos, na verdade, diante da perpetuação da impunidade dos partidos, com o conluio do Congresso Nacional, por meio de atos de violência política institucionalizada contra mulheres e pessoas negras: para que servem leis de cotas e políticas afirmativas, se não são cumpridas e a Justiça Eleitoral ainda é proibida de aplicar sanções?

Não é à toa que somente 91 (noventa e uma) deputadas foram eleitas para ocupar um dos 513 (quinhentos e treze) assentos da Câmara dos Deputados, menos de 18% do total, embora as mulheres hoje representem mais de 52% do eleitorado apto a votar. Com relação às pessoas negras, os índices também são extremamente baixos, se considerarmos que são a maioria da população brasileira: foram 27 pessoas pretas e 107 pessoas pardas eleitas deputadas federais, mantendo a Câmara com um percentual de 72% de pessoas brancas[2].

Esse cenário coloca o Brasil muito abaixo dos parâmetros de representação feminina nos parlamentos das Américas, cuja média hoje é de quase 35%, e demonstra um déficit democrático também no aspecto da equidade racial.

Eis porque é necessário que a sociedade civil se mobilize contra a Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, que poderia receber três codinomes, todos apropriados: PEC da Anistia, PEC da Impunidade ou PEC da Violência Política contra Mulheres e Negros.

*Gabriela Shizue Soares de Araujo, doutora e mestra em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professora da Faculdade de Direito da PUC/SP. Autora da obra Mulheres na Política Brasileira: desafios rumo à democracia paritária participativa. Advogada

[1] Segundo notícia publicada no site do TSE por ocasião da abertura do ano Judiciário de 2019, o Plenário do TSE havia aplicado sanções a quase duas dezenas de legendas, quando julgou as prestações de contas dos diretórios nacionais dessas siglas referentes ao exercício financeiro de 2012, por terem descumprido com a exigência de destinar no mínimo 5% do Fundo Partidário para a inclusão de mulheres na política. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2019/Marco/decisoes-do-tse-reforcam-iniciativas-de-incentivo-a-participacao-feminina-na-politica?SearchableText=5%%20mulheres%20presta%C3%A7%C3%B5es%20de%20contas Acesso em 14 de maio de 2023.

[2] Dados disponíveis no site da Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/noticias/911743-numero-de-deputados-pretos-e-pardos-aumenta-894-mas-e-menor-que-o-esperado/ Acesso em 14 de maio de 2023.

Gabriela Shizue Soares de Araujo. Foto: Divulgação

A violência política contra a mulher é definida, nos termos da Lei nº 14.192, de 04 de agosto de 2021, como toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher.

Contudo, a supramencionada Lei nº 14.192/2021, cujo objetivo precípuo seria, em tese, prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, deixou de observar que dois dos principais responsáveis por impedir e restringir os direitos políticos das mulheres são justamente os partidos políticos e o próprio Congresso Nacional.

Enquanto boa parte dos partidos políticos vêm, ao longo de décadas, descumprindo reiteradamente com as poucas cotas e políticas afirmativas implementadas por lei e jurisprudência para incrementar a participação de mulheres na política, o Congresso Nacional estimula tal conduta, aprovando verdadeiras anistias que proíbem a Justiça Eleitoral de aplicar sanções aos partidos infratores.

Em 2009, a Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) foi alterada para incluir em sua redação um dispositivo que garante que pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos públicos do Fundo Partidário recebidos pelos partidos políticos sejam utilizados na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, administrados por suas respectivas Secretarias de Mulheres ou órgãos equivalentes nas instâncias partidárias.

Entretanto, nos dez anos seguintes à criação dessa política afirmativa, a maioria dos partidos políticos vinham sofrendo sanções aplicadas pela Justiça Eleitoral[1], como aplicação de multas e reprovação das prestações de contas anuais, em razão de não terem cumprido com o mínimo legal, que parece bastante irrisório se considerarmos que eles disponibilizam dos demais 95% (noventa e cinco por cento) dos recursos para gastarem com o que quiserem.

Tais sanções, lamentavelmente, não foram educativas. Ao invés de se comprometerem com a inclusão de mulheres nas esferas de deliberação e construção intrapartidárias, de investirem em capacitação e formação política de mulheres, os partidos infratores, cujas direções são majoritariamente masculinas, viram uma saída mais fácil no Congresso Nacional, também dominado pelos mesmos padrões masculinos: a autoanistia.

Primeiramente, foi promulgada a Lei nº 13.831, de 17 de maio de 2019, que estabeleceu que os partidos que não tivessem destinado pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos recebidos de Fundo Partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, nos exercícios anteriores a 2019, não poderiam ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade eventualmente aplicada pela Justiça Eleitoral.

Três anos depois da promulgação dessa lei, uma nova anistia foi aprovada, e desta vez, pasmem, por Emenda Constitucional. Tantas matérias de suma relevância dependendo de deliberação do nosso Poder Legislativo, mas as duas casas conseguiram se reunir em dois turnos cada uma e aprovar, por maioria qualificada, a impunidade dos partidos políticos que desviaram recursos que deveriam ser destinados às mulheres na política.

Trata-se da Emenda Constitucional nº 117, de 5 de abril de 2022, que, em seu artigo 2º, impôs vedação expressa à Justiça Eleitoral de condenar ou aplicar qualquer tipo de sanção aos partidos políticos que não tivessem destinado recursos aos programas de promoção e difusão da participação política das mulheres até a promulgação da referida emenda.

Apesar dessa e de outra anistia concedida àqueles que desrespeitaram os direitos políticos das mulheres - e que vamos tratar um pouco mais adiante neste artigo - na época, referida Emenda Constitucional foi anunciada pelos parlamentares como uma suposta conquista das mulheres, posto que o seu primeiro artigo coloca de forma expressa no texto formal da Constituição Federal direitos que já estavam consolidados na lei e na jurisprudência, por meio da inclusão dos §§7º e 8º ao artigo 17 da Carta Magna.

Foi incluído o §7º ao artigo 17 da Constituição, para replicar o que já estava previsto na Lei dos Partidos Políticos desde 2009, ou seja, a obrigatoriedade de as legendas aplicarem no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do Fundo Partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres.

Já o §8º, também adicionado ao artigo 17 por meio da Emenda Constitucional nº 117/2022, em tese serviria para reduzir a texto direitos já adquiridos pelas mulheres em decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, garantindo que os recursos públicos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do Fundo Partidário, e o tempo de propaganda no rádio e TV, a serem utilizados em campanhas eleitorais pelos partidos políticos, sejam destinados às mulheres candidatas na mesma proporção de suas candidaturas, partindo-se do mínimo de 30% (trinta por cento).

Ocorre que, como já mencionado anteriormente, desde 2018, o Supremo Tribunal Federal (ADI 5617/DF) e o Tribunal Superior Eleitoral (Consulta TSE nº 0600252-18/DF) já haviam consolidado jurisprudência no sentido de que as mulheres teriam direito a cotas de financiamento nas Eleições e visibilidade em propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV. E mais, desde 2020, ambas as Cortes Superiores haviam decidido que tais cotas deveriam também ser distribuídas para pessoas negras, à razão da proporção de suas candidaturas (ADPF 738/DF e Consulta TSE n° 0600306-47/DF).

Todavia, o Congresso Nacional deliberadamente optou por deixar as cotas raciais de fora da redação do §8º do artigo 17 da Constituição Federal. Na hora de incluir no texto constitucional os mesmos direitos que tanto mulheres, como pessoas negras, conquistaram igualmente, via jurisprudência, não houve consenso entre os parlamentares - a maioria esmagadora de homens brancos. Mas, para retirar direitos, aí sim as pessoas negras foram muito bem lembradas.

Isso porque, a mesma Emenda Constitucional nº 117/2022, em seu artigo 3º - e aqui vem a segunda anistia -, estabelece que "não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça" em eleições ocorridas antes da promulgação da referida emenda.

Note que a Emenda Constitucional nº 117/2022 nada mais foi do que uma cilada. Dos seus três artigos, dois foram para anistiar partidos políticos que há anos violam, restringem, obstaculizam os direitos políticos das mulheres.

A Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, nada mais é do que uma tentativa de prorrogar os efeitos da supramencionada Emenda Constitucional nº 117/2022, para que a anistia seja válida também para os partidos que descumpriram com as cotas de raça e gênero nas Eleições de 2022.

Caso a PEC nº 09/2023 seja aprovada, estaremos, na verdade, diante da perpetuação da impunidade dos partidos, com o conluio do Congresso Nacional, por meio de atos de violência política institucionalizada contra mulheres e pessoas negras: para que servem leis de cotas e políticas afirmativas, se não são cumpridas e a Justiça Eleitoral ainda é proibida de aplicar sanções?

Não é à toa que somente 91 (noventa e uma) deputadas foram eleitas para ocupar um dos 513 (quinhentos e treze) assentos da Câmara dos Deputados, menos de 18% do total, embora as mulheres hoje representem mais de 52% do eleitorado apto a votar. Com relação às pessoas negras, os índices também são extremamente baixos, se considerarmos que são a maioria da população brasileira: foram 27 pessoas pretas e 107 pessoas pardas eleitas deputadas federais, mantendo a Câmara com um percentual de 72% de pessoas brancas[2].

Esse cenário coloca o Brasil muito abaixo dos parâmetros de representação feminina nos parlamentos das Américas, cuja média hoje é de quase 35%, e demonstra um déficit democrático também no aspecto da equidade racial.

Eis porque é necessário que a sociedade civil se mobilize contra a Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, que poderia receber três codinomes, todos apropriados: PEC da Anistia, PEC da Impunidade ou PEC da Violência Política contra Mulheres e Negros.

*Gabriela Shizue Soares de Araujo, doutora e mestra em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professora da Faculdade de Direito da PUC/SP. Autora da obra Mulheres na Política Brasileira: desafios rumo à democracia paritária participativa. Advogada

[1] Segundo notícia publicada no site do TSE por ocasião da abertura do ano Judiciário de 2019, o Plenário do TSE havia aplicado sanções a quase duas dezenas de legendas, quando julgou as prestações de contas dos diretórios nacionais dessas siglas referentes ao exercício financeiro de 2012, por terem descumprido com a exigência de destinar no mínimo 5% do Fundo Partidário para a inclusão de mulheres na política. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2019/Marco/decisoes-do-tse-reforcam-iniciativas-de-incentivo-a-participacao-feminina-na-politica?SearchableText=5%%20mulheres%20presta%C3%A7%C3%B5es%20de%20contas Acesso em 14 de maio de 2023.

[2] Dados disponíveis no site da Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/noticias/911743-numero-de-deputados-pretos-e-pardos-aumenta-894-mas-e-menor-que-o-esperado/ Acesso em 14 de maio de 2023.

Gabriela Shizue Soares de Araujo. Foto: Divulgação

A violência política contra a mulher é definida, nos termos da Lei nº 14.192, de 04 de agosto de 2021, como toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher.

Contudo, a supramencionada Lei nº 14.192/2021, cujo objetivo precípuo seria, em tese, prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, deixou de observar que dois dos principais responsáveis por impedir e restringir os direitos políticos das mulheres são justamente os partidos políticos e o próprio Congresso Nacional.

Enquanto boa parte dos partidos políticos vêm, ao longo de décadas, descumprindo reiteradamente com as poucas cotas e políticas afirmativas implementadas por lei e jurisprudência para incrementar a participação de mulheres na política, o Congresso Nacional estimula tal conduta, aprovando verdadeiras anistias que proíbem a Justiça Eleitoral de aplicar sanções aos partidos infratores.

Em 2009, a Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) foi alterada para incluir em sua redação um dispositivo que garante que pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos públicos do Fundo Partidário recebidos pelos partidos políticos sejam utilizados na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, administrados por suas respectivas Secretarias de Mulheres ou órgãos equivalentes nas instâncias partidárias.

Entretanto, nos dez anos seguintes à criação dessa política afirmativa, a maioria dos partidos políticos vinham sofrendo sanções aplicadas pela Justiça Eleitoral[1], como aplicação de multas e reprovação das prestações de contas anuais, em razão de não terem cumprido com o mínimo legal, que parece bastante irrisório se considerarmos que eles disponibilizam dos demais 95% (noventa e cinco por cento) dos recursos para gastarem com o que quiserem.

Tais sanções, lamentavelmente, não foram educativas. Ao invés de se comprometerem com a inclusão de mulheres nas esferas de deliberação e construção intrapartidárias, de investirem em capacitação e formação política de mulheres, os partidos infratores, cujas direções são majoritariamente masculinas, viram uma saída mais fácil no Congresso Nacional, também dominado pelos mesmos padrões masculinos: a autoanistia.

Primeiramente, foi promulgada a Lei nº 13.831, de 17 de maio de 2019, que estabeleceu que os partidos que não tivessem destinado pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos recebidos de Fundo Partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, nos exercícios anteriores a 2019, não poderiam ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade eventualmente aplicada pela Justiça Eleitoral.

Três anos depois da promulgação dessa lei, uma nova anistia foi aprovada, e desta vez, pasmem, por Emenda Constitucional. Tantas matérias de suma relevância dependendo de deliberação do nosso Poder Legislativo, mas as duas casas conseguiram se reunir em dois turnos cada uma e aprovar, por maioria qualificada, a impunidade dos partidos políticos que desviaram recursos que deveriam ser destinados às mulheres na política.

Trata-se da Emenda Constitucional nº 117, de 5 de abril de 2022, que, em seu artigo 2º, impôs vedação expressa à Justiça Eleitoral de condenar ou aplicar qualquer tipo de sanção aos partidos políticos que não tivessem destinado recursos aos programas de promoção e difusão da participação política das mulheres até a promulgação da referida emenda.

Apesar dessa e de outra anistia concedida àqueles que desrespeitaram os direitos políticos das mulheres - e que vamos tratar um pouco mais adiante neste artigo - na época, referida Emenda Constitucional foi anunciada pelos parlamentares como uma suposta conquista das mulheres, posto que o seu primeiro artigo coloca de forma expressa no texto formal da Constituição Federal direitos que já estavam consolidados na lei e na jurisprudência, por meio da inclusão dos §§7º e 8º ao artigo 17 da Carta Magna.

Foi incluído o §7º ao artigo 17 da Constituição, para replicar o que já estava previsto na Lei dos Partidos Políticos desde 2009, ou seja, a obrigatoriedade de as legendas aplicarem no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do Fundo Partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres.

Já o §8º, também adicionado ao artigo 17 por meio da Emenda Constitucional nº 117/2022, em tese serviria para reduzir a texto direitos já adquiridos pelas mulheres em decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, garantindo que os recursos públicos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do Fundo Partidário, e o tempo de propaganda no rádio e TV, a serem utilizados em campanhas eleitorais pelos partidos políticos, sejam destinados às mulheres candidatas na mesma proporção de suas candidaturas, partindo-se do mínimo de 30% (trinta por cento).

Ocorre que, como já mencionado anteriormente, desde 2018, o Supremo Tribunal Federal (ADI 5617/DF) e o Tribunal Superior Eleitoral (Consulta TSE nº 0600252-18/DF) já haviam consolidado jurisprudência no sentido de que as mulheres teriam direito a cotas de financiamento nas Eleições e visibilidade em propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV. E mais, desde 2020, ambas as Cortes Superiores haviam decidido que tais cotas deveriam também ser distribuídas para pessoas negras, à razão da proporção de suas candidaturas (ADPF 738/DF e Consulta TSE n° 0600306-47/DF).

Todavia, o Congresso Nacional deliberadamente optou por deixar as cotas raciais de fora da redação do §8º do artigo 17 da Constituição Federal. Na hora de incluir no texto constitucional os mesmos direitos que tanto mulheres, como pessoas negras, conquistaram igualmente, via jurisprudência, não houve consenso entre os parlamentares - a maioria esmagadora de homens brancos. Mas, para retirar direitos, aí sim as pessoas negras foram muito bem lembradas.

Isso porque, a mesma Emenda Constitucional nº 117/2022, em seu artigo 3º - e aqui vem a segunda anistia -, estabelece que "não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça" em eleições ocorridas antes da promulgação da referida emenda.

Note que a Emenda Constitucional nº 117/2022 nada mais foi do que uma cilada. Dos seus três artigos, dois foram para anistiar partidos políticos que há anos violam, restringem, obstaculizam os direitos políticos das mulheres.

A Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, nada mais é do que uma tentativa de prorrogar os efeitos da supramencionada Emenda Constitucional nº 117/2022, para que a anistia seja válida também para os partidos que descumpriram com as cotas de raça e gênero nas Eleições de 2022.

Caso a PEC nº 09/2023 seja aprovada, estaremos, na verdade, diante da perpetuação da impunidade dos partidos, com o conluio do Congresso Nacional, por meio de atos de violência política institucionalizada contra mulheres e pessoas negras: para que servem leis de cotas e políticas afirmativas, se não são cumpridas e a Justiça Eleitoral ainda é proibida de aplicar sanções?

Não é à toa que somente 91 (noventa e uma) deputadas foram eleitas para ocupar um dos 513 (quinhentos e treze) assentos da Câmara dos Deputados, menos de 18% do total, embora as mulheres hoje representem mais de 52% do eleitorado apto a votar. Com relação às pessoas negras, os índices também são extremamente baixos, se considerarmos que são a maioria da população brasileira: foram 27 pessoas pretas e 107 pessoas pardas eleitas deputadas federais, mantendo a Câmara com um percentual de 72% de pessoas brancas[2].

Esse cenário coloca o Brasil muito abaixo dos parâmetros de representação feminina nos parlamentos das Américas, cuja média hoje é de quase 35%, e demonstra um déficit democrático também no aspecto da equidade racial.

Eis porque é necessário que a sociedade civil se mobilize contra a Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, que poderia receber três codinomes, todos apropriados: PEC da Anistia, PEC da Impunidade ou PEC da Violência Política contra Mulheres e Negros.

*Gabriela Shizue Soares de Araujo, doutora e mestra em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professora da Faculdade de Direito da PUC/SP. Autora da obra Mulheres na Política Brasileira: desafios rumo à democracia paritária participativa. Advogada

[1] Segundo notícia publicada no site do TSE por ocasião da abertura do ano Judiciário de 2019, o Plenário do TSE havia aplicado sanções a quase duas dezenas de legendas, quando julgou as prestações de contas dos diretórios nacionais dessas siglas referentes ao exercício financeiro de 2012, por terem descumprido com a exigência de destinar no mínimo 5% do Fundo Partidário para a inclusão de mulheres na política. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2019/Marco/decisoes-do-tse-reforcam-iniciativas-de-incentivo-a-participacao-feminina-na-politica?SearchableText=5%%20mulheres%20presta%C3%A7%C3%B5es%20de%20contas Acesso em 14 de maio de 2023.

[2] Dados disponíveis no site da Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/noticias/911743-numero-de-deputados-pretos-e-pardos-aumenta-894-mas-e-menor-que-o-esperado/ Acesso em 14 de maio de 2023.

Gabriela Shizue Soares de Araujo. Foto: Divulgação

A violência política contra a mulher é definida, nos termos da Lei nº 14.192, de 04 de agosto de 2021, como toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher.

Contudo, a supramencionada Lei nº 14.192/2021, cujo objetivo precípuo seria, em tese, prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, deixou de observar que dois dos principais responsáveis por impedir e restringir os direitos políticos das mulheres são justamente os partidos políticos e o próprio Congresso Nacional.

Enquanto boa parte dos partidos políticos vêm, ao longo de décadas, descumprindo reiteradamente com as poucas cotas e políticas afirmativas implementadas por lei e jurisprudência para incrementar a participação de mulheres na política, o Congresso Nacional estimula tal conduta, aprovando verdadeiras anistias que proíbem a Justiça Eleitoral de aplicar sanções aos partidos infratores.

Em 2009, a Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) foi alterada para incluir em sua redação um dispositivo que garante que pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos públicos do Fundo Partidário recebidos pelos partidos políticos sejam utilizados na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, administrados por suas respectivas Secretarias de Mulheres ou órgãos equivalentes nas instâncias partidárias.

Entretanto, nos dez anos seguintes à criação dessa política afirmativa, a maioria dos partidos políticos vinham sofrendo sanções aplicadas pela Justiça Eleitoral[1], como aplicação de multas e reprovação das prestações de contas anuais, em razão de não terem cumprido com o mínimo legal, que parece bastante irrisório se considerarmos que eles disponibilizam dos demais 95% (noventa e cinco por cento) dos recursos para gastarem com o que quiserem.

Tais sanções, lamentavelmente, não foram educativas. Ao invés de se comprometerem com a inclusão de mulheres nas esferas de deliberação e construção intrapartidárias, de investirem em capacitação e formação política de mulheres, os partidos infratores, cujas direções são majoritariamente masculinas, viram uma saída mais fácil no Congresso Nacional, também dominado pelos mesmos padrões masculinos: a autoanistia.

Primeiramente, foi promulgada a Lei nº 13.831, de 17 de maio de 2019, que estabeleceu que os partidos que não tivessem destinado pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos recebidos de Fundo Partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, nos exercícios anteriores a 2019, não poderiam ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade eventualmente aplicada pela Justiça Eleitoral.

Três anos depois da promulgação dessa lei, uma nova anistia foi aprovada, e desta vez, pasmem, por Emenda Constitucional. Tantas matérias de suma relevância dependendo de deliberação do nosso Poder Legislativo, mas as duas casas conseguiram se reunir em dois turnos cada uma e aprovar, por maioria qualificada, a impunidade dos partidos políticos que desviaram recursos que deveriam ser destinados às mulheres na política.

Trata-se da Emenda Constitucional nº 117, de 5 de abril de 2022, que, em seu artigo 2º, impôs vedação expressa à Justiça Eleitoral de condenar ou aplicar qualquer tipo de sanção aos partidos políticos que não tivessem destinado recursos aos programas de promoção e difusão da participação política das mulheres até a promulgação da referida emenda.

Apesar dessa e de outra anistia concedida àqueles que desrespeitaram os direitos políticos das mulheres - e que vamos tratar um pouco mais adiante neste artigo - na época, referida Emenda Constitucional foi anunciada pelos parlamentares como uma suposta conquista das mulheres, posto que o seu primeiro artigo coloca de forma expressa no texto formal da Constituição Federal direitos que já estavam consolidados na lei e na jurisprudência, por meio da inclusão dos §§7º e 8º ao artigo 17 da Carta Magna.

Foi incluído o §7º ao artigo 17 da Constituição, para replicar o que já estava previsto na Lei dos Partidos Políticos desde 2009, ou seja, a obrigatoriedade de as legendas aplicarem no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do Fundo Partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres.

Já o §8º, também adicionado ao artigo 17 por meio da Emenda Constitucional nº 117/2022, em tese serviria para reduzir a texto direitos já adquiridos pelas mulheres em decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, garantindo que os recursos públicos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do Fundo Partidário, e o tempo de propaganda no rádio e TV, a serem utilizados em campanhas eleitorais pelos partidos políticos, sejam destinados às mulheres candidatas na mesma proporção de suas candidaturas, partindo-se do mínimo de 30% (trinta por cento).

Ocorre que, como já mencionado anteriormente, desde 2018, o Supremo Tribunal Federal (ADI 5617/DF) e o Tribunal Superior Eleitoral (Consulta TSE nº 0600252-18/DF) já haviam consolidado jurisprudência no sentido de que as mulheres teriam direito a cotas de financiamento nas Eleições e visibilidade em propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV. E mais, desde 2020, ambas as Cortes Superiores haviam decidido que tais cotas deveriam também ser distribuídas para pessoas negras, à razão da proporção de suas candidaturas (ADPF 738/DF e Consulta TSE n° 0600306-47/DF).

Todavia, o Congresso Nacional deliberadamente optou por deixar as cotas raciais de fora da redação do §8º do artigo 17 da Constituição Federal. Na hora de incluir no texto constitucional os mesmos direitos que tanto mulheres, como pessoas negras, conquistaram igualmente, via jurisprudência, não houve consenso entre os parlamentares - a maioria esmagadora de homens brancos. Mas, para retirar direitos, aí sim as pessoas negras foram muito bem lembradas.

Isso porque, a mesma Emenda Constitucional nº 117/2022, em seu artigo 3º - e aqui vem a segunda anistia -, estabelece que "não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça" em eleições ocorridas antes da promulgação da referida emenda.

Note que a Emenda Constitucional nº 117/2022 nada mais foi do que uma cilada. Dos seus três artigos, dois foram para anistiar partidos políticos que há anos violam, restringem, obstaculizam os direitos políticos das mulheres.

A Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, nada mais é do que uma tentativa de prorrogar os efeitos da supramencionada Emenda Constitucional nº 117/2022, para que a anistia seja válida também para os partidos que descumpriram com as cotas de raça e gênero nas Eleições de 2022.

Caso a PEC nº 09/2023 seja aprovada, estaremos, na verdade, diante da perpetuação da impunidade dos partidos, com o conluio do Congresso Nacional, por meio de atos de violência política institucionalizada contra mulheres e pessoas negras: para que servem leis de cotas e políticas afirmativas, se não são cumpridas e a Justiça Eleitoral ainda é proibida de aplicar sanções?

Não é à toa que somente 91 (noventa e uma) deputadas foram eleitas para ocupar um dos 513 (quinhentos e treze) assentos da Câmara dos Deputados, menos de 18% do total, embora as mulheres hoje representem mais de 52% do eleitorado apto a votar. Com relação às pessoas negras, os índices também são extremamente baixos, se considerarmos que são a maioria da população brasileira: foram 27 pessoas pretas e 107 pessoas pardas eleitas deputadas federais, mantendo a Câmara com um percentual de 72% de pessoas brancas[2].

Esse cenário coloca o Brasil muito abaixo dos parâmetros de representação feminina nos parlamentos das Américas, cuja média hoje é de quase 35%, e demonstra um déficit democrático também no aspecto da equidade racial.

Eis porque é necessário que a sociedade civil se mobilize contra a Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, que poderia receber três codinomes, todos apropriados: PEC da Anistia, PEC da Impunidade ou PEC da Violência Política contra Mulheres e Negros.

*Gabriela Shizue Soares de Araujo, doutora e mestra em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professora da Faculdade de Direito da PUC/SP. Autora da obra Mulheres na Política Brasileira: desafios rumo à democracia paritária participativa. Advogada

[1] Segundo notícia publicada no site do TSE por ocasião da abertura do ano Judiciário de 2019, o Plenário do TSE havia aplicado sanções a quase duas dezenas de legendas, quando julgou as prestações de contas dos diretórios nacionais dessas siglas referentes ao exercício financeiro de 2012, por terem descumprido com a exigência de destinar no mínimo 5% do Fundo Partidário para a inclusão de mulheres na política. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2019/Marco/decisoes-do-tse-reforcam-iniciativas-de-incentivo-a-participacao-feminina-na-politica?SearchableText=5%%20mulheres%20presta%C3%A7%C3%B5es%20de%20contas Acesso em 14 de maio de 2023.

[2] Dados disponíveis no site da Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/noticias/911743-numero-de-deputados-pretos-e-pardos-aumenta-894-mas-e-menor-que-o-esperado/ Acesso em 14 de maio de 2023.

Gabriela Shizue Soares de Araujo. Foto: Divulgação

A violência política contra a mulher é definida, nos termos da Lei nº 14.192, de 04 de agosto de 2021, como toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher.

Contudo, a supramencionada Lei nº 14.192/2021, cujo objetivo precípuo seria, em tese, prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, deixou de observar que dois dos principais responsáveis por impedir e restringir os direitos políticos das mulheres são justamente os partidos políticos e o próprio Congresso Nacional.

Enquanto boa parte dos partidos políticos vêm, ao longo de décadas, descumprindo reiteradamente com as poucas cotas e políticas afirmativas implementadas por lei e jurisprudência para incrementar a participação de mulheres na política, o Congresso Nacional estimula tal conduta, aprovando verdadeiras anistias que proíbem a Justiça Eleitoral de aplicar sanções aos partidos infratores.

Em 2009, a Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) foi alterada para incluir em sua redação um dispositivo que garante que pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos públicos do Fundo Partidário recebidos pelos partidos políticos sejam utilizados na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, administrados por suas respectivas Secretarias de Mulheres ou órgãos equivalentes nas instâncias partidárias.

Entretanto, nos dez anos seguintes à criação dessa política afirmativa, a maioria dos partidos políticos vinham sofrendo sanções aplicadas pela Justiça Eleitoral[1], como aplicação de multas e reprovação das prestações de contas anuais, em razão de não terem cumprido com o mínimo legal, que parece bastante irrisório se considerarmos que eles disponibilizam dos demais 95% (noventa e cinco por cento) dos recursos para gastarem com o que quiserem.

Tais sanções, lamentavelmente, não foram educativas. Ao invés de se comprometerem com a inclusão de mulheres nas esferas de deliberação e construção intrapartidárias, de investirem em capacitação e formação política de mulheres, os partidos infratores, cujas direções são majoritariamente masculinas, viram uma saída mais fácil no Congresso Nacional, também dominado pelos mesmos padrões masculinos: a autoanistia.

Primeiramente, foi promulgada a Lei nº 13.831, de 17 de maio de 2019, que estabeleceu que os partidos que não tivessem destinado pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos recebidos de Fundo Partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, nos exercícios anteriores a 2019, não poderiam ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade eventualmente aplicada pela Justiça Eleitoral.

Três anos depois da promulgação dessa lei, uma nova anistia foi aprovada, e desta vez, pasmem, por Emenda Constitucional. Tantas matérias de suma relevância dependendo de deliberação do nosso Poder Legislativo, mas as duas casas conseguiram se reunir em dois turnos cada uma e aprovar, por maioria qualificada, a impunidade dos partidos políticos que desviaram recursos que deveriam ser destinados às mulheres na política.

Trata-se da Emenda Constitucional nº 117, de 5 de abril de 2022, que, em seu artigo 2º, impôs vedação expressa à Justiça Eleitoral de condenar ou aplicar qualquer tipo de sanção aos partidos políticos que não tivessem destinado recursos aos programas de promoção e difusão da participação política das mulheres até a promulgação da referida emenda.

Apesar dessa e de outra anistia concedida àqueles que desrespeitaram os direitos políticos das mulheres - e que vamos tratar um pouco mais adiante neste artigo - na época, referida Emenda Constitucional foi anunciada pelos parlamentares como uma suposta conquista das mulheres, posto que o seu primeiro artigo coloca de forma expressa no texto formal da Constituição Federal direitos que já estavam consolidados na lei e na jurisprudência, por meio da inclusão dos §§7º e 8º ao artigo 17 da Carta Magna.

Foi incluído o §7º ao artigo 17 da Constituição, para replicar o que já estava previsto na Lei dos Partidos Políticos desde 2009, ou seja, a obrigatoriedade de as legendas aplicarem no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do Fundo Partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres.

Já o §8º, também adicionado ao artigo 17 por meio da Emenda Constitucional nº 117/2022, em tese serviria para reduzir a texto direitos já adquiridos pelas mulheres em decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, garantindo que os recursos públicos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do Fundo Partidário, e o tempo de propaganda no rádio e TV, a serem utilizados em campanhas eleitorais pelos partidos políticos, sejam destinados às mulheres candidatas na mesma proporção de suas candidaturas, partindo-se do mínimo de 30% (trinta por cento).

Ocorre que, como já mencionado anteriormente, desde 2018, o Supremo Tribunal Federal (ADI 5617/DF) e o Tribunal Superior Eleitoral (Consulta TSE nº 0600252-18/DF) já haviam consolidado jurisprudência no sentido de que as mulheres teriam direito a cotas de financiamento nas Eleições e visibilidade em propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV. E mais, desde 2020, ambas as Cortes Superiores haviam decidido que tais cotas deveriam também ser distribuídas para pessoas negras, à razão da proporção de suas candidaturas (ADPF 738/DF e Consulta TSE n° 0600306-47/DF).

Todavia, o Congresso Nacional deliberadamente optou por deixar as cotas raciais de fora da redação do §8º do artigo 17 da Constituição Federal. Na hora de incluir no texto constitucional os mesmos direitos que tanto mulheres, como pessoas negras, conquistaram igualmente, via jurisprudência, não houve consenso entre os parlamentares - a maioria esmagadora de homens brancos. Mas, para retirar direitos, aí sim as pessoas negras foram muito bem lembradas.

Isso porque, a mesma Emenda Constitucional nº 117/2022, em seu artigo 3º - e aqui vem a segunda anistia -, estabelece que "não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça" em eleições ocorridas antes da promulgação da referida emenda.

Note que a Emenda Constitucional nº 117/2022 nada mais foi do que uma cilada. Dos seus três artigos, dois foram para anistiar partidos políticos que há anos violam, restringem, obstaculizam os direitos políticos das mulheres.

A Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, nada mais é do que uma tentativa de prorrogar os efeitos da supramencionada Emenda Constitucional nº 117/2022, para que a anistia seja válida também para os partidos que descumpriram com as cotas de raça e gênero nas Eleições de 2022.

Caso a PEC nº 09/2023 seja aprovada, estaremos, na verdade, diante da perpetuação da impunidade dos partidos, com o conluio do Congresso Nacional, por meio de atos de violência política institucionalizada contra mulheres e pessoas negras: para que servem leis de cotas e políticas afirmativas, se não são cumpridas e a Justiça Eleitoral ainda é proibida de aplicar sanções?

Não é à toa que somente 91 (noventa e uma) deputadas foram eleitas para ocupar um dos 513 (quinhentos e treze) assentos da Câmara dos Deputados, menos de 18% do total, embora as mulheres hoje representem mais de 52% do eleitorado apto a votar. Com relação às pessoas negras, os índices também são extremamente baixos, se considerarmos que são a maioria da população brasileira: foram 27 pessoas pretas e 107 pessoas pardas eleitas deputadas federais, mantendo a Câmara com um percentual de 72% de pessoas brancas[2].

Esse cenário coloca o Brasil muito abaixo dos parâmetros de representação feminina nos parlamentos das Américas, cuja média hoje é de quase 35%, e demonstra um déficit democrático também no aspecto da equidade racial.

Eis porque é necessário que a sociedade civil se mobilize contra a Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, que poderia receber três codinomes, todos apropriados: PEC da Anistia, PEC da Impunidade ou PEC da Violência Política contra Mulheres e Negros.

*Gabriela Shizue Soares de Araujo, doutora e mestra em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professora da Faculdade de Direito da PUC/SP. Autora da obra Mulheres na Política Brasileira: desafios rumo à democracia paritária participativa. Advogada

[1] Segundo notícia publicada no site do TSE por ocasião da abertura do ano Judiciário de 2019, o Plenário do TSE havia aplicado sanções a quase duas dezenas de legendas, quando julgou as prestações de contas dos diretórios nacionais dessas siglas referentes ao exercício financeiro de 2012, por terem descumprido com a exigência de destinar no mínimo 5% do Fundo Partidário para a inclusão de mulheres na política. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2019/Marco/decisoes-do-tse-reforcam-iniciativas-de-incentivo-a-participacao-feminina-na-politica?SearchableText=5%%20mulheres%20presta%C3%A7%C3%B5es%20de%20contas Acesso em 14 de maio de 2023.

[2] Dados disponíveis no site da Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/noticias/911743-numero-de-deputados-pretos-e-pardos-aumenta-894-mas-e-menor-que-o-esperado/ Acesso em 14 de maio de 2023.

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