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A politização de Tribunais de Contas: instrumento de controle neutralizado por interesses não republicanos


Por Juliana Sakai
Atualização:
Juliana Sakai. Foto: Inac/Divulgação

Em uma democracia, espera-se que órgãos públicos sejam livres de interferências do poderoso da vez, em respeito aos princípios de impessoalidade e moralidade. Assim, não há riscos de que a administração pública sirva a interesses meramente pessoais, familiares ou político-eleitorais.

O cumprimento dessa premissa é ainda mais relevante em órgãos de controle externo como Tribunais de Contas, diante de sua importante missão de avaliar tecnicamente as contas governamentais e promover a integridade pública.

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Entretanto, as vagas de conselheiros nesses órgãos são, há muito, moeda corrente entre deputados e governadores, que as usam para premiar algum aliado político ou até mesmo parente com um dos cargos vitalícios. A Transparência Brasil já quantificou (veja documento) o fenômeno em 2016: àquela época, 80% dos conselheiros de Tribunais de Contas tinham carreira política, sendo principalmente ex-deputados. 31% deles tinham parentes na política.

Quem são os conselheiros dos Tribunais de Contas?Documento

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Sete anos depois, quase nada mudou. Jhonatan de Jesus, o mais recente indicado para vaga de ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), é ex-deputado federal e filho do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR). Mecias é alvo de investigação sigilosa do Ministério Público Federal (MPF), suspeito de agir para favorecer a contratação da Táxi Aéreo Piquiatuba pelo governo federal para atuar com transporte em terras indígenas.

Houve apenas o acréscimo de um novo verniz de legitimidade às nomeações familiares: o discurso do aumento de representatividade feminina, que foi indevidamente apropriado para justificar a chuva recente de nomeações de cônjuges de ministros e até de governadores para os cargos. A serviço de quem essas conselheiras ocupam tais espaços torna-se um mero detalhe.

Um dos casos mais absurdos é o de Daniela Barbalho, primeira-dama do Pará, nomeada para o Tribunal de Contas do Estado a tempo de julgar as contas da gestão do próprio marido, Helder Barbalho (MDB). Pelo menos outras quatro ex-primeiras-damas assumiram recentemente a função de fiscalizar as contas em estados onde seus maridos foram governadores por oito anos.

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Há elementos concretos que apontam a nocividade histórica de tais nomeações. No levantamento citado anteriormente, a Transparência Brasil verificou que 27% dos conselheiros que tinham carreira política respondiam a processos, já haviam sido condenados na Justiça ou tiveram contas reprovadas nos próprios Tribunais de Contas - a despeito da exigência constitucional de idoneidade moral e de reputação ilibada para os nomeados.

Não são raros os casos envolvendo corrupção dentro do que deveriam ser órgãos de controle. Ainda em 2016, quatro conselheiros do Tribunal de Contas do Amapá estavam afastados, denunciados na Operação Mãos Limpas. À mesma época, os TCEs do Ceará, Espírito Santo e São Paulo tinham também um conselheiro afastado cada um por peculato, e enriquecimento ilícito.

Robson Marinho ficou mais de sete anos afastado do TCE-SP e retomou seu cargo de conselheiro em 2022 com as investigações sobre sua conta secreta na Suíça ainda em curso. O Ministério Público do estado o acusa de ter lavado dinheiro no exterior, acumulando R$ 3 milhões, quantia que segue bloqueada mesmo com sua volta à Corte paulistana.

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No Rio de Janeiro, cinco dos sete conselheiros do TCE foram presos em 2017 em um desdobramento da Operação Lava Jato. Entre eles, está Marco Antônio Barbosa de Alencar, filho do ex-governador fluminense Marcello Alencar. Foi deputado estadual por dois mandatos antes de ser indicado pelo pai e eleito para a Corte em 1997.

Em processo que completou seis anos em tramitação no último mês de março, o MPF os acusa de receber propina para ignorar desvios dos cofres públicos feitos pelo ex-governador do Rio Sérgio Cabral. Todos seguem recebendo salário e benefícios, mesmo estando afastados do exercício do Tribunal e sob investigação de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Nos últimos dias, o holofote está sobre o Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP). A aposentadoria do conselheiro Maurício Faria desencadeou uma disputa política entre o presidente da Câmara Municipal Milton Leite (União Brasil) e o prefeito Ricardo Nunes (MDB).

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O vereador pressiona Nunes pela indicação de um de seus filhos à vaga da Corte, mas os nomes cotados pelo prefeito incluem seus aliados políticos que já ocupam cargos na administração municipal. Ricardo Menezes, diretor jurídico da SP Obras, empresa municipal vinculada à Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras e que executa projetos designados pela Prefeitura, está entre eles. De um lado e do outro, o caso ilustra precisamente os apontamentos da TB já em 2016.

Ao assumir a cadeira, o indicado político enfrentará um de dois cenários: julgará contas de aliados ou julgará contas de seus opositores. Tal conflito de interesses vem enfraquecendo sistematicamente o trabalho técnico de auditores concursados que instruem cada processo e, portanto, comprometendo o controle de contas.

Num contexto de grande fragilidade democrática, é urgente recuperar a credibilidade das instituições. Isso passa por fortalecer a capacidade de controle dos tribunais de contas, despolitizando-os. É necessária uma emenda constitucional para blindar os órgãos de controle de nomeações flagrantemente políticas. Uma proposta já em tramitação no Senado é um bom ponto de partida para a discussão.

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Como a aprovação de tal alteração nos critérios de nomeação depende dos próprios congressistas cujos interesses são incompatíveis com o aperfeiçoamento, é necessária intensa mobilização social para que uma reforma como essa seja aprovada. Infelizmente, parece ser necessário haver algum escândalo ainda maior do que o fato de uma esposa ocupar a posição de julgar as contas do próprio marido para que essa pressão seja grande o suficiente.

*Juliana Sakai é diretora executiva da Transparência Brasil. Formada em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e mestre em Ciência Política pela Leuphana Universität, em Lüneburg (Alemanha). Atuou no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Timor-Leste e à Transparency International

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica

COM A PALAVRA, O GOVERNO DO PARÁ

“Daniela Barbalho não está entre os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE/PA) que julgam as contas do governador.”

Juliana Sakai. Foto: Inac/Divulgação

Em uma democracia, espera-se que órgãos públicos sejam livres de interferências do poderoso da vez, em respeito aos princípios de impessoalidade e moralidade. Assim, não há riscos de que a administração pública sirva a interesses meramente pessoais, familiares ou político-eleitorais.

O cumprimento dessa premissa é ainda mais relevante em órgãos de controle externo como Tribunais de Contas, diante de sua importante missão de avaliar tecnicamente as contas governamentais e promover a integridade pública.

Entretanto, as vagas de conselheiros nesses órgãos são, há muito, moeda corrente entre deputados e governadores, que as usam para premiar algum aliado político ou até mesmo parente com um dos cargos vitalícios. A Transparência Brasil já quantificou (veja documento) o fenômeno em 2016: àquela época, 80% dos conselheiros de Tribunais de Contas tinham carreira política, sendo principalmente ex-deputados. 31% deles tinham parentes na política.

Quem são os conselheiros dos Tribunais de Contas?Documento

Sete anos depois, quase nada mudou. Jhonatan de Jesus, o mais recente indicado para vaga de ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), é ex-deputado federal e filho do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR). Mecias é alvo de investigação sigilosa do Ministério Público Federal (MPF), suspeito de agir para favorecer a contratação da Táxi Aéreo Piquiatuba pelo governo federal para atuar com transporte em terras indígenas.

Houve apenas o acréscimo de um novo verniz de legitimidade às nomeações familiares: o discurso do aumento de representatividade feminina, que foi indevidamente apropriado para justificar a chuva recente de nomeações de cônjuges de ministros e até de governadores para os cargos. A serviço de quem essas conselheiras ocupam tais espaços torna-se um mero detalhe.

Um dos casos mais absurdos é o de Daniela Barbalho, primeira-dama do Pará, nomeada para o Tribunal de Contas do Estado a tempo de julgar as contas da gestão do próprio marido, Helder Barbalho (MDB). Pelo menos outras quatro ex-primeiras-damas assumiram recentemente a função de fiscalizar as contas em estados onde seus maridos foram governadores por oito anos.

Há elementos concretos que apontam a nocividade histórica de tais nomeações. No levantamento citado anteriormente, a Transparência Brasil verificou que 27% dos conselheiros que tinham carreira política respondiam a processos, já haviam sido condenados na Justiça ou tiveram contas reprovadas nos próprios Tribunais de Contas - a despeito da exigência constitucional de idoneidade moral e de reputação ilibada para os nomeados.

Não são raros os casos envolvendo corrupção dentro do que deveriam ser órgãos de controle. Ainda em 2016, quatro conselheiros do Tribunal de Contas do Amapá estavam afastados, denunciados na Operação Mãos Limpas. À mesma época, os TCEs do Ceará, Espírito Santo e São Paulo tinham também um conselheiro afastado cada um por peculato, e enriquecimento ilícito.

Robson Marinho ficou mais de sete anos afastado do TCE-SP e retomou seu cargo de conselheiro em 2022 com as investigações sobre sua conta secreta na Suíça ainda em curso. O Ministério Público do estado o acusa de ter lavado dinheiro no exterior, acumulando R$ 3 milhões, quantia que segue bloqueada mesmo com sua volta à Corte paulistana.

No Rio de Janeiro, cinco dos sete conselheiros do TCE foram presos em 2017 em um desdobramento da Operação Lava Jato. Entre eles, está Marco Antônio Barbosa de Alencar, filho do ex-governador fluminense Marcello Alencar. Foi deputado estadual por dois mandatos antes de ser indicado pelo pai e eleito para a Corte em 1997.

Em processo que completou seis anos em tramitação no último mês de março, o MPF os acusa de receber propina para ignorar desvios dos cofres públicos feitos pelo ex-governador do Rio Sérgio Cabral. Todos seguem recebendo salário e benefícios, mesmo estando afastados do exercício do Tribunal e sob investigação de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Nos últimos dias, o holofote está sobre o Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP). A aposentadoria do conselheiro Maurício Faria desencadeou uma disputa política entre o presidente da Câmara Municipal Milton Leite (União Brasil) e o prefeito Ricardo Nunes (MDB).

O vereador pressiona Nunes pela indicação de um de seus filhos à vaga da Corte, mas os nomes cotados pelo prefeito incluem seus aliados políticos que já ocupam cargos na administração municipal. Ricardo Menezes, diretor jurídico da SP Obras, empresa municipal vinculada à Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras e que executa projetos designados pela Prefeitura, está entre eles. De um lado e do outro, o caso ilustra precisamente os apontamentos da TB já em 2016.

Ao assumir a cadeira, o indicado político enfrentará um de dois cenários: julgará contas de aliados ou julgará contas de seus opositores. Tal conflito de interesses vem enfraquecendo sistematicamente o trabalho técnico de auditores concursados que instruem cada processo e, portanto, comprometendo o controle de contas.

Num contexto de grande fragilidade democrática, é urgente recuperar a credibilidade das instituições. Isso passa por fortalecer a capacidade de controle dos tribunais de contas, despolitizando-os. É necessária uma emenda constitucional para blindar os órgãos de controle de nomeações flagrantemente políticas. Uma proposta já em tramitação no Senado é um bom ponto de partida para a discussão.

Como a aprovação de tal alteração nos critérios de nomeação depende dos próprios congressistas cujos interesses são incompatíveis com o aperfeiçoamento, é necessária intensa mobilização social para que uma reforma como essa seja aprovada. Infelizmente, parece ser necessário haver algum escândalo ainda maior do que o fato de uma esposa ocupar a posição de julgar as contas do próprio marido para que essa pressão seja grande o suficiente.

*Juliana Sakai é diretora executiva da Transparência Brasil. Formada em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e mestre em Ciência Política pela Leuphana Universität, em Lüneburg (Alemanha). Atuou no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Timor-Leste e à Transparency International

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

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COM A PALAVRA, O GOVERNO DO PARÁ

“Daniela Barbalho não está entre os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE/PA) que julgam as contas do governador.”

Juliana Sakai. Foto: Inac/Divulgação

Em uma democracia, espera-se que órgãos públicos sejam livres de interferências do poderoso da vez, em respeito aos princípios de impessoalidade e moralidade. Assim, não há riscos de que a administração pública sirva a interesses meramente pessoais, familiares ou político-eleitorais.

O cumprimento dessa premissa é ainda mais relevante em órgãos de controle externo como Tribunais de Contas, diante de sua importante missão de avaliar tecnicamente as contas governamentais e promover a integridade pública.

Entretanto, as vagas de conselheiros nesses órgãos são, há muito, moeda corrente entre deputados e governadores, que as usam para premiar algum aliado político ou até mesmo parente com um dos cargos vitalícios. A Transparência Brasil já quantificou (veja documento) o fenômeno em 2016: àquela época, 80% dos conselheiros de Tribunais de Contas tinham carreira política, sendo principalmente ex-deputados. 31% deles tinham parentes na política.

Quem são os conselheiros dos Tribunais de Contas?Documento

Sete anos depois, quase nada mudou. Jhonatan de Jesus, o mais recente indicado para vaga de ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), é ex-deputado federal e filho do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR). Mecias é alvo de investigação sigilosa do Ministério Público Federal (MPF), suspeito de agir para favorecer a contratação da Táxi Aéreo Piquiatuba pelo governo federal para atuar com transporte em terras indígenas.

Houve apenas o acréscimo de um novo verniz de legitimidade às nomeações familiares: o discurso do aumento de representatividade feminina, que foi indevidamente apropriado para justificar a chuva recente de nomeações de cônjuges de ministros e até de governadores para os cargos. A serviço de quem essas conselheiras ocupam tais espaços torna-se um mero detalhe.

Um dos casos mais absurdos é o de Daniela Barbalho, primeira-dama do Pará, nomeada para o Tribunal de Contas do Estado a tempo de julgar as contas da gestão do próprio marido, Helder Barbalho (MDB). Pelo menos outras quatro ex-primeiras-damas assumiram recentemente a função de fiscalizar as contas em estados onde seus maridos foram governadores por oito anos.

Há elementos concretos que apontam a nocividade histórica de tais nomeações. No levantamento citado anteriormente, a Transparência Brasil verificou que 27% dos conselheiros que tinham carreira política respondiam a processos, já haviam sido condenados na Justiça ou tiveram contas reprovadas nos próprios Tribunais de Contas - a despeito da exigência constitucional de idoneidade moral e de reputação ilibada para os nomeados.

Não são raros os casos envolvendo corrupção dentro do que deveriam ser órgãos de controle. Ainda em 2016, quatro conselheiros do Tribunal de Contas do Amapá estavam afastados, denunciados na Operação Mãos Limpas. À mesma época, os TCEs do Ceará, Espírito Santo e São Paulo tinham também um conselheiro afastado cada um por peculato, e enriquecimento ilícito.

Robson Marinho ficou mais de sete anos afastado do TCE-SP e retomou seu cargo de conselheiro em 2022 com as investigações sobre sua conta secreta na Suíça ainda em curso. O Ministério Público do estado o acusa de ter lavado dinheiro no exterior, acumulando R$ 3 milhões, quantia que segue bloqueada mesmo com sua volta à Corte paulistana.

No Rio de Janeiro, cinco dos sete conselheiros do TCE foram presos em 2017 em um desdobramento da Operação Lava Jato. Entre eles, está Marco Antônio Barbosa de Alencar, filho do ex-governador fluminense Marcello Alencar. Foi deputado estadual por dois mandatos antes de ser indicado pelo pai e eleito para a Corte em 1997.

Em processo que completou seis anos em tramitação no último mês de março, o MPF os acusa de receber propina para ignorar desvios dos cofres públicos feitos pelo ex-governador do Rio Sérgio Cabral. Todos seguem recebendo salário e benefícios, mesmo estando afastados do exercício do Tribunal e sob investigação de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Nos últimos dias, o holofote está sobre o Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP). A aposentadoria do conselheiro Maurício Faria desencadeou uma disputa política entre o presidente da Câmara Municipal Milton Leite (União Brasil) e o prefeito Ricardo Nunes (MDB).

O vereador pressiona Nunes pela indicação de um de seus filhos à vaga da Corte, mas os nomes cotados pelo prefeito incluem seus aliados políticos que já ocupam cargos na administração municipal. Ricardo Menezes, diretor jurídico da SP Obras, empresa municipal vinculada à Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras e que executa projetos designados pela Prefeitura, está entre eles. De um lado e do outro, o caso ilustra precisamente os apontamentos da TB já em 2016.

Ao assumir a cadeira, o indicado político enfrentará um de dois cenários: julgará contas de aliados ou julgará contas de seus opositores. Tal conflito de interesses vem enfraquecendo sistematicamente o trabalho técnico de auditores concursados que instruem cada processo e, portanto, comprometendo o controle de contas.

Num contexto de grande fragilidade democrática, é urgente recuperar a credibilidade das instituições. Isso passa por fortalecer a capacidade de controle dos tribunais de contas, despolitizando-os. É necessária uma emenda constitucional para blindar os órgãos de controle de nomeações flagrantemente políticas. Uma proposta já em tramitação no Senado é um bom ponto de partida para a discussão.

Como a aprovação de tal alteração nos critérios de nomeação depende dos próprios congressistas cujos interesses são incompatíveis com o aperfeiçoamento, é necessária intensa mobilização social para que uma reforma como essa seja aprovada. Infelizmente, parece ser necessário haver algum escândalo ainda maior do que o fato de uma esposa ocupar a posição de julgar as contas do próprio marido para que essa pressão seja grande o suficiente.

*Juliana Sakai é diretora executiva da Transparência Brasil. Formada em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e mestre em Ciência Política pela Leuphana Universität, em Lüneburg (Alemanha). Atuou no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Timor-Leste e à Transparency International

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

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COM A PALAVRA, O GOVERNO DO PARÁ

“Daniela Barbalho não está entre os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE/PA) que julgam as contas do governador.”

Juliana Sakai. Foto: Inac/Divulgação

Em uma democracia, espera-se que órgãos públicos sejam livres de interferências do poderoso da vez, em respeito aos princípios de impessoalidade e moralidade. Assim, não há riscos de que a administração pública sirva a interesses meramente pessoais, familiares ou político-eleitorais.

O cumprimento dessa premissa é ainda mais relevante em órgãos de controle externo como Tribunais de Contas, diante de sua importante missão de avaliar tecnicamente as contas governamentais e promover a integridade pública.

Entretanto, as vagas de conselheiros nesses órgãos são, há muito, moeda corrente entre deputados e governadores, que as usam para premiar algum aliado político ou até mesmo parente com um dos cargos vitalícios. A Transparência Brasil já quantificou (veja documento) o fenômeno em 2016: àquela época, 80% dos conselheiros de Tribunais de Contas tinham carreira política, sendo principalmente ex-deputados. 31% deles tinham parentes na política.

Quem são os conselheiros dos Tribunais de Contas?Documento

Sete anos depois, quase nada mudou. Jhonatan de Jesus, o mais recente indicado para vaga de ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), é ex-deputado federal e filho do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR). Mecias é alvo de investigação sigilosa do Ministério Público Federal (MPF), suspeito de agir para favorecer a contratação da Táxi Aéreo Piquiatuba pelo governo federal para atuar com transporte em terras indígenas.

Houve apenas o acréscimo de um novo verniz de legitimidade às nomeações familiares: o discurso do aumento de representatividade feminina, que foi indevidamente apropriado para justificar a chuva recente de nomeações de cônjuges de ministros e até de governadores para os cargos. A serviço de quem essas conselheiras ocupam tais espaços torna-se um mero detalhe.

Um dos casos mais absurdos é o de Daniela Barbalho, primeira-dama do Pará, nomeada para o Tribunal de Contas do Estado a tempo de julgar as contas da gestão do próprio marido, Helder Barbalho (MDB). Pelo menos outras quatro ex-primeiras-damas assumiram recentemente a função de fiscalizar as contas em estados onde seus maridos foram governadores por oito anos.

Há elementos concretos que apontam a nocividade histórica de tais nomeações. No levantamento citado anteriormente, a Transparência Brasil verificou que 27% dos conselheiros que tinham carreira política respondiam a processos, já haviam sido condenados na Justiça ou tiveram contas reprovadas nos próprios Tribunais de Contas - a despeito da exigência constitucional de idoneidade moral e de reputação ilibada para os nomeados.

Não são raros os casos envolvendo corrupção dentro do que deveriam ser órgãos de controle. Ainda em 2016, quatro conselheiros do Tribunal de Contas do Amapá estavam afastados, denunciados na Operação Mãos Limpas. À mesma época, os TCEs do Ceará, Espírito Santo e São Paulo tinham também um conselheiro afastado cada um por peculato, e enriquecimento ilícito.

Robson Marinho ficou mais de sete anos afastado do TCE-SP e retomou seu cargo de conselheiro em 2022 com as investigações sobre sua conta secreta na Suíça ainda em curso. O Ministério Público do estado o acusa de ter lavado dinheiro no exterior, acumulando R$ 3 milhões, quantia que segue bloqueada mesmo com sua volta à Corte paulistana.

No Rio de Janeiro, cinco dos sete conselheiros do TCE foram presos em 2017 em um desdobramento da Operação Lava Jato. Entre eles, está Marco Antônio Barbosa de Alencar, filho do ex-governador fluminense Marcello Alencar. Foi deputado estadual por dois mandatos antes de ser indicado pelo pai e eleito para a Corte em 1997.

Em processo que completou seis anos em tramitação no último mês de março, o MPF os acusa de receber propina para ignorar desvios dos cofres públicos feitos pelo ex-governador do Rio Sérgio Cabral. Todos seguem recebendo salário e benefícios, mesmo estando afastados do exercício do Tribunal e sob investigação de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Nos últimos dias, o holofote está sobre o Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP). A aposentadoria do conselheiro Maurício Faria desencadeou uma disputa política entre o presidente da Câmara Municipal Milton Leite (União Brasil) e o prefeito Ricardo Nunes (MDB).

O vereador pressiona Nunes pela indicação de um de seus filhos à vaga da Corte, mas os nomes cotados pelo prefeito incluem seus aliados políticos que já ocupam cargos na administração municipal. Ricardo Menezes, diretor jurídico da SP Obras, empresa municipal vinculada à Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras e que executa projetos designados pela Prefeitura, está entre eles. De um lado e do outro, o caso ilustra precisamente os apontamentos da TB já em 2016.

Ao assumir a cadeira, o indicado político enfrentará um de dois cenários: julgará contas de aliados ou julgará contas de seus opositores. Tal conflito de interesses vem enfraquecendo sistematicamente o trabalho técnico de auditores concursados que instruem cada processo e, portanto, comprometendo o controle de contas.

Num contexto de grande fragilidade democrática, é urgente recuperar a credibilidade das instituições. Isso passa por fortalecer a capacidade de controle dos tribunais de contas, despolitizando-os. É necessária uma emenda constitucional para blindar os órgãos de controle de nomeações flagrantemente políticas. Uma proposta já em tramitação no Senado é um bom ponto de partida para a discussão.

Como a aprovação de tal alteração nos critérios de nomeação depende dos próprios congressistas cujos interesses são incompatíveis com o aperfeiçoamento, é necessária intensa mobilização social para que uma reforma como essa seja aprovada. Infelizmente, parece ser necessário haver algum escândalo ainda maior do que o fato de uma esposa ocupar a posição de julgar as contas do próprio marido para que essa pressão seja grande o suficiente.

*Juliana Sakai é diretora executiva da Transparência Brasil. Formada em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e mestre em Ciência Política pela Leuphana Universität, em Lüneburg (Alemanha). Atuou no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Timor-Leste e à Transparency International

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica

COM A PALAVRA, O GOVERNO DO PARÁ

“Daniela Barbalho não está entre os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE/PA) que julgam as contas do governador.”

Juliana Sakai. Foto: Inac/Divulgação

Em uma democracia, espera-se que órgãos públicos sejam livres de interferências do poderoso da vez, em respeito aos princípios de impessoalidade e moralidade. Assim, não há riscos de que a administração pública sirva a interesses meramente pessoais, familiares ou político-eleitorais.

O cumprimento dessa premissa é ainda mais relevante em órgãos de controle externo como Tribunais de Contas, diante de sua importante missão de avaliar tecnicamente as contas governamentais e promover a integridade pública.

Entretanto, as vagas de conselheiros nesses órgãos são, há muito, moeda corrente entre deputados e governadores, que as usam para premiar algum aliado político ou até mesmo parente com um dos cargos vitalícios. A Transparência Brasil já quantificou (veja documento) o fenômeno em 2016: àquela época, 80% dos conselheiros de Tribunais de Contas tinham carreira política, sendo principalmente ex-deputados. 31% deles tinham parentes na política.

Quem são os conselheiros dos Tribunais de Contas?Documento

Sete anos depois, quase nada mudou. Jhonatan de Jesus, o mais recente indicado para vaga de ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), é ex-deputado federal e filho do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR). Mecias é alvo de investigação sigilosa do Ministério Público Federal (MPF), suspeito de agir para favorecer a contratação da Táxi Aéreo Piquiatuba pelo governo federal para atuar com transporte em terras indígenas.

Houve apenas o acréscimo de um novo verniz de legitimidade às nomeações familiares: o discurso do aumento de representatividade feminina, que foi indevidamente apropriado para justificar a chuva recente de nomeações de cônjuges de ministros e até de governadores para os cargos. A serviço de quem essas conselheiras ocupam tais espaços torna-se um mero detalhe.

Um dos casos mais absurdos é o de Daniela Barbalho, primeira-dama do Pará, nomeada para o Tribunal de Contas do Estado a tempo de julgar as contas da gestão do próprio marido, Helder Barbalho (MDB). Pelo menos outras quatro ex-primeiras-damas assumiram recentemente a função de fiscalizar as contas em estados onde seus maridos foram governadores por oito anos.

Há elementos concretos que apontam a nocividade histórica de tais nomeações. No levantamento citado anteriormente, a Transparência Brasil verificou que 27% dos conselheiros que tinham carreira política respondiam a processos, já haviam sido condenados na Justiça ou tiveram contas reprovadas nos próprios Tribunais de Contas - a despeito da exigência constitucional de idoneidade moral e de reputação ilibada para os nomeados.

Não são raros os casos envolvendo corrupção dentro do que deveriam ser órgãos de controle. Ainda em 2016, quatro conselheiros do Tribunal de Contas do Amapá estavam afastados, denunciados na Operação Mãos Limpas. À mesma época, os TCEs do Ceará, Espírito Santo e São Paulo tinham também um conselheiro afastado cada um por peculato, e enriquecimento ilícito.

Robson Marinho ficou mais de sete anos afastado do TCE-SP e retomou seu cargo de conselheiro em 2022 com as investigações sobre sua conta secreta na Suíça ainda em curso. O Ministério Público do estado o acusa de ter lavado dinheiro no exterior, acumulando R$ 3 milhões, quantia que segue bloqueada mesmo com sua volta à Corte paulistana.

No Rio de Janeiro, cinco dos sete conselheiros do TCE foram presos em 2017 em um desdobramento da Operação Lava Jato. Entre eles, está Marco Antônio Barbosa de Alencar, filho do ex-governador fluminense Marcello Alencar. Foi deputado estadual por dois mandatos antes de ser indicado pelo pai e eleito para a Corte em 1997.

Em processo que completou seis anos em tramitação no último mês de março, o MPF os acusa de receber propina para ignorar desvios dos cofres públicos feitos pelo ex-governador do Rio Sérgio Cabral. Todos seguem recebendo salário e benefícios, mesmo estando afastados do exercício do Tribunal e sob investigação de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Nos últimos dias, o holofote está sobre o Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP). A aposentadoria do conselheiro Maurício Faria desencadeou uma disputa política entre o presidente da Câmara Municipal Milton Leite (União Brasil) e o prefeito Ricardo Nunes (MDB).

O vereador pressiona Nunes pela indicação de um de seus filhos à vaga da Corte, mas os nomes cotados pelo prefeito incluem seus aliados políticos que já ocupam cargos na administração municipal. Ricardo Menezes, diretor jurídico da SP Obras, empresa municipal vinculada à Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras e que executa projetos designados pela Prefeitura, está entre eles. De um lado e do outro, o caso ilustra precisamente os apontamentos da TB já em 2016.

Ao assumir a cadeira, o indicado político enfrentará um de dois cenários: julgará contas de aliados ou julgará contas de seus opositores. Tal conflito de interesses vem enfraquecendo sistematicamente o trabalho técnico de auditores concursados que instruem cada processo e, portanto, comprometendo o controle de contas.

Num contexto de grande fragilidade democrática, é urgente recuperar a credibilidade das instituições. Isso passa por fortalecer a capacidade de controle dos tribunais de contas, despolitizando-os. É necessária uma emenda constitucional para blindar os órgãos de controle de nomeações flagrantemente políticas. Uma proposta já em tramitação no Senado é um bom ponto de partida para a discussão.

Como a aprovação de tal alteração nos critérios de nomeação depende dos próprios congressistas cujos interesses são incompatíveis com o aperfeiçoamento, é necessária intensa mobilização social para que uma reforma como essa seja aprovada. Infelizmente, parece ser necessário haver algum escândalo ainda maior do que o fato de uma esposa ocupar a posição de julgar as contas do próprio marido para que essa pressão seja grande o suficiente.

*Juliana Sakai é diretora executiva da Transparência Brasil. Formada em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e mestre em Ciência Política pela Leuphana Universität, em Lüneburg (Alemanha). Atuou no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Timor-Leste e à Transparency International

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