Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Opinião|A promessa do futuro retirada


Por Simone Sibilio e Letícia Emile
Atualização:

“Quando a Marielle morreu eu senti que tinham tirado a promessa do futuro” (Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, em depoimento prestado no Tribunal do Júri, às 13h23 do dia 30.10.2024).

A frase foi dita pela viúva quando indagada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro sobre como é viver sem Marielle. Discorreu sobre o projeto de vida interrompido pelos criminosos, da potência de Marielle, da sua retirada de cena no melhor momento da vida, do projeto de festa de casamento para reunir a família e amigos em celebração ao amor. A festa não ocorreu. A vida e o projeto de futuro foram interrompidos de forma forçada e cruel pelos assassinos.

Agatha, esposa de Anderson, também falou de amor, de projetos interrompidos, dificuldade de maternar sozinha e, diante da impossibilidade de continuar a vida da mesma forma, restou a alternativa do recomeço, de redesenhar outro projeto sem a presença física de Anderson na vida de seu pequeno Artur.

continua após a publicidade
Foto de arquivo de 21/02/2018; a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) durante sessão ordinária da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Foto: Renan Olaz/CMRJ

Fernanda, vítima sobrevivente, contou momentos do pior passado, do passado de um instante, daquele instante em 14 de março de 2018 que jamais passará porque é presente e será futuro. Luyara, filha de Marielle, certamente há de concordar com Carlos Drummond de Andrade no seu memorável poema Para Sempre: “Fosse eu Rei do Mundo baixava uma lei, Mãe não morre nunca, Mãe ficará sempre junto de seu filho e ele velho embora será pequenino, feito grão de milho”. Os pais de Marielle, hão de completar Drummond: “se fosse Rei baixaria uma lei: é terminantemente proibido filho morrer”, assim como há de concordar com o que eternizou Michel Montaigne no seu ensaio sobre a crueldade: “Crueldade é tudo aquilo que vai além da simples morte. Aquele que mata para ver o outro morrer sem que seja pela cólera ou medo, o faz por pura crueldade - a filha da covardia”.

Essas pessoas citadas foram reunidas pelo infortúnio de serem vítimas, diretas ou indiretas, de um crime bárbaro que chocou o Brasil e, desde 14 de março de 2018, um único desejo: a punição dos culpados.

continua após a publicidade

É certo que a condenação dos culpados não anula, nem compensa as dores suportadas pelo ocorrido, mas possibilita que as famílias possam, finalmente, viver o luto e recomeçar.

Na data de 31 de outubro, o Júri, representado por sete pessoas da sociedade, condenou os executores. Ronnie Lessa foi condenado a 78 anos e 9 meses de reclusão; Elcio de Queiroz a 59 anos e 8 meses de reclusão. Além da condenação, foi fixada, a pedido do MPRJ, quando da denúncia, uma pensão para o pequeno Artur, filho de Anderson, até atingir 24 anos, bem como indenização de R$ 706 mil por danos morais em favor de cada uma das vítimas.

O Ministério Público, ao requerer o pensionamento do filho menor da vítima, a indenização pelos danos morais, o bloqueio dos bens dos acusados para garantir a efetiva indenização das vítimas diretas e indiretas, o fez num recorte vitimocêntrico que pautou sua atuação desde o início. Olhar o processo penal visando não só a punição dos culpados, mas também o encontro das vítimas diretas e indiretas com o direito de informação, participação, proteção e reparação, é medida urgente e deve ser adotada por todos os atores do sistema de Justiça.

continua após a publicidade

Esses direitos costumam ser obliterados pelo sistema em meio a tantos outros homicídios praticados rotineiramente no Brasil. O desencadeamento de processos institucionais que inviabilizam a condição e posição da vítima em toda a sua dimensão, inclusive no que diz respeito a uma punição proporcional ao direito violado pelo perpetrador e à reparação pelos danos causados pelo crime, precisa sofrer reforma urgente.

O projeto de vida interrompido da vítima, o direito à felicidade das vítimas, a mentira do réu durante o interrogatório, raramente são circunstâncias levadas em consideração em uma sentença para fixar a pena dos acusados. Já passou da hora de um repensar. Assim como já passou da hora de começar a enxergar a vítima como protagonista durante o processo. Ela precisa ser ouvida, reconhecida como sujeito de direitos e não como informante útil. No Brasil, lamentavelmente, existe uma disparidade social e legal assimétrica em que os direitos e garantias da vítima estão muito aquém do cenário devido, como se fossem incompatíveis com os direitos do acusado.

A retirada da promessa do futuro, o projeto de vida interrompido, a ausência do ente querido, tudo isso gera para a vítima a necessidade da fala, da escuta, do acolhimento, da informação, da proteção, da reparação. Todas as vítimas no julgamento que se iniciou em 30 de outubro e findou em 31 de outubro de 2024 disseram da ausência de palavras para descrever o sentimento da perda e falaram da esperança na condenação dos culpados. Mas, só a condenação? Isso seria vingança? Evidente que não. Esperam reconhecimento de todos os seus direitos enquanto vítimas, inclusive, o direito de uma pena justa e proporcional ao crime praticado.

continua após a publicidade

Em razão desses direitos, durante a investigação, perpassando pela denúncia e processo até o julgamento, o Ministério Público promoveu reuniões periódicas com os familiares de Marielle e Anderson, proporcionou o direito de informação, de participação e de proteção. No dia da prisão dos acusados - agora condenados por todos os crimes imputados na denúncia - os familiares foram informados da prisão dos executores, antes mesmo que a imprensa divulgasse.

No dia do júri, o MPRJ oportunizou à vítima sobrevivente Fernanda, à mãe de Marielle e às viúvas de Marielle e de Anderson, usufruírem daquele momento para expressar aos jurados o que sentiam, para trazer dignidade aos corpos brutalizados, para demonstrar que o Auto de Exame Cadavérico não serve apenas para comprovar a morte, mas sobretudo para a reflexão de que naqueles corpos havia uma alma que habita e sempre habitará o coração dos entes queridos.

Oportunizou-se a essas vítimas o exercício da fala, não somente como importante para superação do trauma, mas também para possibilitar que a potência da vida ceifada ecoasse na ausência deixada, revelando o poder dos seus sonhos e ações, eternos e imortais que persistem, apesar da violência que tentou silenciá-las.

continua após a publicidade

As vítimas jamais podem ser silenciadas e invisibilizadas no processo. O Ministério Público, guardião da ordem jurídica e responsável pela defesa intransigente desses direitos, tem a missão de proporcionar que todas as vítimas sejam destinatárias desses direitos, dentre eles: direito à participação na investigação e no processo, na comunicação dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão e à designação de data para audiência, ao tratamento com compaixão e dignidade, à não revitimização durante as audiências por meio de perguntas descabidas não relacionadas aos fatos, a não ter sua memória profanada, a ter um lugar reservado no fórum e separado do seu ofensor, a não prestar depoimento na frente do seu ofensor, à reparação pelos danos morais e materiais experimentados em razão do crime, ao atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde a expensas do acusado ou do Estado, além do direito ao pensionamento aos dependentes menores das vítimas pelos executores.

Em um Estado que nasce com a promessa de ser democrático de Direito, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana, somente haverá o cumprimento integral desta promessa quando as vítimas de homicídios forem efetivamente destinatárias de todos esses direitos. E o sistema de Justiça que se pretenda garantista, somente o será se for de forma integral, que garanta os direitos dos acusados e das vítimas com a mesma intensidade, sob pena de ser um sistema hiperbólico e monocular, que apenas observa os Direitos Humanos do violador, e não os das vítimas.

O caso Marielle e Anderson, um dos mais complexos que o Brasil já enfrentou, com envolvimento de ex-agentes do Estado, por um lado, escancarou o submundo do crime e da política no Rio de Janeiro. E, por outro, expôs a necessidade de um olhar vitimocêntrico, trazendo as vítimas para o protagonismo no processo penal, seja ele de repercussão ou não.

continua após a publicidade

A promessa de futuro foi, sim, retirada das famílias enlutadas pela ausência de Marielle e de Anderson, mas é certo também que o futuro não é o tempo que vem e acontece, ele é o tempo que se constrói. Cada familiar encontrará no porvir um pouco daquilo que Marielle e Anderson deram de si. A Justiça dos homens se cumpriu para os réus confessos Ronnie e Elcio. Esperamos que ela se cumpra também para todos os demais homicidas que imaginam estar acima da lei. O direito à Justiça, à verdade e à memória precisa ser garantido a todas as vítimas de homicídio.

“Quando a Marielle morreu eu senti que tinham tirado a promessa do futuro” (Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, em depoimento prestado no Tribunal do Júri, às 13h23 do dia 30.10.2024).

A frase foi dita pela viúva quando indagada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro sobre como é viver sem Marielle. Discorreu sobre o projeto de vida interrompido pelos criminosos, da potência de Marielle, da sua retirada de cena no melhor momento da vida, do projeto de festa de casamento para reunir a família e amigos em celebração ao amor. A festa não ocorreu. A vida e o projeto de futuro foram interrompidos de forma forçada e cruel pelos assassinos.

Agatha, esposa de Anderson, também falou de amor, de projetos interrompidos, dificuldade de maternar sozinha e, diante da impossibilidade de continuar a vida da mesma forma, restou a alternativa do recomeço, de redesenhar outro projeto sem a presença física de Anderson na vida de seu pequeno Artur.

Foto de arquivo de 21/02/2018; a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) durante sessão ordinária da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Foto: Renan Olaz/CMRJ

Fernanda, vítima sobrevivente, contou momentos do pior passado, do passado de um instante, daquele instante em 14 de março de 2018 que jamais passará porque é presente e será futuro. Luyara, filha de Marielle, certamente há de concordar com Carlos Drummond de Andrade no seu memorável poema Para Sempre: “Fosse eu Rei do Mundo baixava uma lei, Mãe não morre nunca, Mãe ficará sempre junto de seu filho e ele velho embora será pequenino, feito grão de milho”. Os pais de Marielle, hão de completar Drummond: “se fosse Rei baixaria uma lei: é terminantemente proibido filho morrer”, assim como há de concordar com o que eternizou Michel Montaigne no seu ensaio sobre a crueldade: “Crueldade é tudo aquilo que vai além da simples morte. Aquele que mata para ver o outro morrer sem que seja pela cólera ou medo, o faz por pura crueldade - a filha da covardia”.

Essas pessoas citadas foram reunidas pelo infortúnio de serem vítimas, diretas ou indiretas, de um crime bárbaro que chocou o Brasil e, desde 14 de março de 2018, um único desejo: a punição dos culpados.

É certo que a condenação dos culpados não anula, nem compensa as dores suportadas pelo ocorrido, mas possibilita que as famílias possam, finalmente, viver o luto e recomeçar.

Na data de 31 de outubro, o Júri, representado por sete pessoas da sociedade, condenou os executores. Ronnie Lessa foi condenado a 78 anos e 9 meses de reclusão; Elcio de Queiroz a 59 anos e 8 meses de reclusão. Além da condenação, foi fixada, a pedido do MPRJ, quando da denúncia, uma pensão para o pequeno Artur, filho de Anderson, até atingir 24 anos, bem como indenização de R$ 706 mil por danos morais em favor de cada uma das vítimas.

O Ministério Público, ao requerer o pensionamento do filho menor da vítima, a indenização pelos danos morais, o bloqueio dos bens dos acusados para garantir a efetiva indenização das vítimas diretas e indiretas, o fez num recorte vitimocêntrico que pautou sua atuação desde o início. Olhar o processo penal visando não só a punição dos culpados, mas também o encontro das vítimas diretas e indiretas com o direito de informação, participação, proteção e reparação, é medida urgente e deve ser adotada por todos os atores do sistema de Justiça.

Esses direitos costumam ser obliterados pelo sistema em meio a tantos outros homicídios praticados rotineiramente no Brasil. O desencadeamento de processos institucionais que inviabilizam a condição e posição da vítima em toda a sua dimensão, inclusive no que diz respeito a uma punição proporcional ao direito violado pelo perpetrador e à reparação pelos danos causados pelo crime, precisa sofrer reforma urgente.

O projeto de vida interrompido da vítima, o direito à felicidade das vítimas, a mentira do réu durante o interrogatório, raramente são circunstâncias levadas em consideração em uma sentença para fixar a pena dos acusados. Já passou da hora de um repensar. Assim como já passou da hora de começar a enxergar a vítima como protagonista durante o processo. Ela precisa ser ouvida, reconhecida como sujeito de direitos e não como informante útil. No Brasil, lamentavelmente, existe uma disparidade social e legal assimétrica em que os direitos e garantias da vítima estão muito aquém do cenário devido, como se fossem incompatíveis com os direitos do acusado.

A retirada da promessa do futuro, o projeto de vida interrompido, a ausência do ente querido, tudo isso gera para a vítima a necessidade da fala, da escuta, do acolhimento, da informação, da proteção, da reparação. Todas as vítimas no julgamento que se iniciou em 30 de outubro e findou em 31 de outubro de 2024 disseram da ausência de palavras para descrever o sentimento da perda e falaram da esperança na condenação dos culpados. Mas, só a condenação? Isso seria vingança? Evidente que não. Esperam reconhecimento de todos os seus direitos enquanto vítimas, inclusive, o direito de uma pena justa e proporcional ao crime praticado.

Em razão desses direitos, durante a investigação, perpassando pela denúncia e processo até o julgamento, o Ministério Público promoveu reuniões periódicas com os familiares de Marielle e Anderson, proporcionou o direito de informação, de participação e de proteção. No dia da prisão dos acusados - agora condenados por todos os crimes imputados na denúncia - os familiares foram informados da prisão dos executores, antes mesmo que a imprensa divulgasse.

No dia do júri, o MPRJ oportunizou à vítima sobrevivente Fernanda, à mãe de Marielle e às viúvas de Marielle e de Anderson, usufruírem daquele momento para expressar aos jurados o que sentiam, para trazer dignidade aos corpos brutalizados, para demonstrar que o Auto de Exame Cadavérico não serve apenas para comprovar a morte, mas sobretudo para a reflexão de que naqueles corpos havia uma alma que habita e sempre habitará o coração dos entes queridos.

Oportunizou-se a essas vítimas o exercício da fala, não somente como importante para superação do trauma, mas também para possibilitar que a potência da vida ceifada ecoasse na ausência deixada, revelando o poder dos seus sonhos e ações, eternos e imortais que persistem, apesar da violência que tentou silenciá-las.

As vítimas jamais podem ser silenciadas e invisibilizadas no processo. O Ministério Público, guardião da ordem jurídica e responsável pela defesa intransigente desses direitos, tem a missão de proporcionar que todas as vítimas sejam destinatárias desses direitos, dentre eles: direito à participação na investigação e no processo, na comunicação dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão e à designação de data para audiência, ao tratamento com compaixão e dignidade, à não revitimização durante as audiências por meio de perguntas descabidas não relacionadas aos fatos, a não ter sua memória profanada, a ter um lugar reservado no fórum e separado do seu ofensor, a não prestar depoimento na frente do seu ofensor, à reparação pelos danos morais e materiais experimentados em razão do crime, ao atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde a expensas do acusado ou do Estado, além do direito ao pensionamento aos dependentes menores das vítimas pelos executores.

Em um Estado que nasce com a promessa de ser democrático de Direito, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana, somente haverá o cumprimento integral desta promessa quando as vítimas de homicídios forem efetivamente destinatárias de todos esses direitos. E o sistema de Justiça que se pretenda garantista, somente o será se for de forma integral, que garanta os direitos dos acusados e das vítimas com a mesma intensidade, sob pena de ser um sistema hiperbólico e monocular, que apenas observa os Direitos Humanos do violador, e não os das vítimas.

O caso Marielle e Anderson, um dos mais complexos que o Brasil já enfrentou, com envolvimento de ex-agentes do Estado, por um lado, escancarou o submundo do crime e da política no Rio de Janeiro. E, por outro, expôs a necessidade de um olhar vitimocêntrico, trazendo as vítimas para o protagonismo no processo penal, seja ele de repercussão ou não.

A promessa de futuro foi, sim, retirada das famílias enlutadas pela ausência de Marielle e de Anderson, mas é certo também que o futuro não é o tempo que vem e acontece, ele é o tempo que se constrói. Cada familiar encontrará no porvir um pouco daquilo que Marielle e Anderson deram de si. A Justiça dos homens se cumpriu para os réus confessos Ronnie e Elcio. Esperamos que ela se cumpra também para todos os demais homicidas que imaginam estar acima da lei. O direito à Justiça, à verdade e à memória precisa ser garantido a todas as vítimas de homicídio.

“Quando a Marielle morreu eu senti que tinham tirado a promessa do futuro” (Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, em depoimento prestado no Tribunal do Júri, às 13h23 do dia 30.10.2024).

A frase foi dita pela viúva quando indagada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro sobre como é viver sem Marielle. Discorreu sobre o projeto de vida interrompido pelos criminosos, da potência de Marielle, da sua retirada de cena no melhor momento da vida, do projeto de festa de casamento para reunir a família e amigos em celebração ao amor. A festa não ocorreu. A vida e o projeto de futuro foram interrompidos de forma forçada e cruel pelos assassinos.

Agatha, esposa de Anderson, também falou de amor, de projetos interrompidos, dificuldade de maternar sozinha e, diante da impossibilidade de continuar a vida da mesma forma, restou a alternativa do recomeço, de redesenhar outro projeto sem a presença física de Anderson na vida de seu pequeno Artur.

Foto de arquivo de 21/02/2018; a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) durante sessão ordinária da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Foto: Renan Olaz/CMRJ

Fernanda, vítima sobrevivente, contou momentos do pior passado, do passado de um instante, daquele instante em 14 de março de 2018 que jamais passará porque é presente e será futuro. Luyara, filha de Marielle, certamente há de concordar com Carlos Drummond de Andrade no seu memorável poema Para Sempre: “Fosse eu Rei do Mundo baixava uma lei, Mãe não morre nunca, Mãe ficará sempre junto de seu filho e ele velho embora será pequenino, feito grão de milho”. Os pais de Marielle, hão de completar Drummond: “se fosse Rei baixaria uma lei: é terminantemente proibido filho morrer”, assim como há de concordar com o que eternizou Michel Montaigne no seu ensaio sobre a crueldade: “Crueldade é tudo aquilo que vai além da simples morte. Aquele que mata para ver o outro morrer sem que seja pela cólera ou medo, o faz por pura crueldade - a filha da covardia”.

Essas pessoas citadas foram reunidas pelo infortúnio de serem vítimas, diretas ou indiretas, de um crime bárbaro que chocou o Brasil e, desde 14 de março de 2018, um único desejo: a punição dos culpados.

É certo que a condenação dos culpados não anula, nem compensa as dores suportadas pelo ocorrido, mas possibilita que as famílias possam, finalmente, viver o luto e recomeçar.

Na data de 31 de outubro, o Júri, representado por sete pessoas da sociedade, condenou os executores. Ronnie Lessa foi condenado a 78 anos e 9 meses de reclusão; Elcio de Queiroz a 59 anos e 8 meses de reclusão. Além da condenação, foi fixada, a pedido do MPRJ, quando da denúncia, uma pensão para o pequeno Artur, filho de Anderson, até atingir 24 anos, bem como indenização de R$ 706 mil por danos morais em favor de cada uma das vítimas.

O Ministério Público, ao requerer o pensionamento do filho menor da vítima, a indenização pelos danos morais, o bloqueio dos bens dos acusados para garantir a efetiva indenização das vítimas diretas e indiretas, o fez num recorte vitimocêntrico que pautou sua atuação desde o início. Olhar o processo penal visando não só a punição dos culpados, mas também o encontro das vítimas diretas e indiretas com o direito de informação, participação, proteção e reparação, é medida urgente e deve ser adotada por todos os atores do sistema de Justiça.

Esses direitos costumam ser obliterados pelo sistema em meio a tantos outros homicídios praticados rotineiramente no Brasil. O desencadeamento de processos institucionais que inviabilizam a condição e posição da vítima em toda a sua dimensão, inclusive no que diz respeito a uma punição proporcional ao direito violado pelo perpetrador e à reparação pelos danos causados pelo crime, precisa sofrer reforma urgente.

O projeto de vida interrompido da vítima, o direito à felicidade das vítimas, a mentira do réu durante o interrogatório, raramente são circunstâncias levadas em consideração em uma sentença para fixar a pena dos acusados. Já passou da hora de um repensar. Assim como já passou da hora de começar a enxergar a vítima como protagonista durante o processo. Ela precisa ser ouvida, reconhecida como sujeito de direitos e não como informante útil. No Brasil, lamentavelmente, existe uma disparidade social e legal assimétrica em que os direitos e garantias da vítima estão muito aquém do cenário devido, como se fossem incompatíveis com os direitos do acusado.

A retirada da promessa do futuro, o projeto de vida interrompido, a ausência do ente querido, tudo isso gera para a vítima a necessidade da fala, da escuta, do acolhimento, da informação, da proteção, da reparação. Todas as vítimas no julgamento que se iniciou em 30 de outubro e findou em 31 de outubro de 2024 disseram da ausência de palavras para descrever o sentimento da perda e falaram da esperança na condenação dos culpados. Mas, só a condenação? Isso seria vingança? Evidente que não. Esperam reconhecimento de todos os seus direitos enquanto vítimas, inclusive, o direito de uma pena justa e proporcional ao crime praticado.

Em razão desses direitos, durante a investigação, perpassando pela denúncia e processo até o julgamento, o Ministério Público promoveu reuniões periódicas com os familiares de Marielle e Anderson, proporcionou o direito de informação, de participação e de proteção. No dia da prisão dos acusados - agora condenados por todos os crimes imputados na denúncia - os familiares foram informados da prisão dos executores, antes mesmo que a imprensa divulgasse.

No dia do júri, o MPRJ oportunizou à vítima sobrevivente Fernanda, à mãe de Marielle e às viúvas de Marielle e de Anderson, usufruírem daquele momento para expressar aos jurados o que sentiam, para trazer dignidade aos corpos brutalizados, para demonstrar que o Auto de Exame Cadavérico não serve apenas para comprovar a morte, mas sobretudo para a reflexão de que naqueles corpos havia uma alma que habita e sempre habitará o coração dos entes queridos.

Oportunizou-se a essas vítimas o exercício da fala, não somente como importante para superação do trauma, mas também para possibilitar que a potência da vida ceifada ecoasse na ausência deixada, revelando o poder dos seus sonhos e ações, eternos e imortais que persistem, apesar da violência que tentou silenciá-las.

As vítimas jamais podem ser silenciadas e invisibilizadas no processo. O Ministério Público, guardião da ordem jurídica e responsável pela defesa intransigente desses direitos, tem a missão de proporcionar que todas as vítimas sejam destinatárias desses direitos, dentre eles: direito à participação na investigação e no processo, na comunicação dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão e à designação de data para audiência, ao tratamento com compaixão e dignidade, à não revitimização durante as audiências por meio de perguntas descabidas não relacionadas aos fatos, a não ter sua memória profanada, a ter um lugar reservado no fórum e separado do seu ofensor, a não prestar depoimento na frente do seu ofensor, à reparação pelos danos morais e materiais experimentados em razão do crime, ao atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde a expensas do acusado ou do Estado, além do direito ao pensionamento aos dependentes menores das vítimas pelos executores.

Em um Estado que nasce com a promessa de ser democrático de Direito, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana, somente haverá o cumprimento integral desta promessa quando as vítimas de homicídios forem efetivamente destinatárias de todos esses direitos. E o sistema de Justiça que se pretenda garantista, somente o será se for de forma integral, que garanta os direitos dos acusados e das vítimas com a mesma intensidade, sob pena de ser um sistema hiperbólico e monocular, que apenas observa os Direitos Humanos do violador, e não os das vítimas.

O caso Marielle e Anderson, um dos mais complexos que o Brasil já enfrentou, com envolvimento de ex-agentes do Estado, por um lado, escancarou o submundo do crime e da política no Rio de Janeiro. E, por outro, expôs a necessidade de um olhar vitimocêntrico, trazendo as vítimas para o protagonismo no processo penal, seja ele de repercussão ou não.

A promessa de futuro foi, sim, retirada das famílias enlutadas pela ausência de Marielle e de Anderson, mas é certo também que o futuro não é o tempo que vem e acontece, ele é o tempo que se constrói. Cada familiar encontrará no porvir um pouco daquilo que Marielle e Anderson deram de si. A Justiça dos homens se cumpriu para os réus confessos Ronnie e Elcio. Esperamos que ela se cumpra também para todos os demais homicidas que imaginam estar acima da lei. O direito à Justiça, à verdade e à memória precisa ser garantido a todas as vítimas de homicídio.

“Quando a Marielle morreu eu senti que tinham tirado a promessa do futuro” (Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, em depoimento prestado no Tribunal do Júri, às 13h23 do dia 30.10.2024).

A frase foi dita pela viúva quando indagada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro sobre como é viver sem Marielle. Discorreu sobre o projeto de vida interrompido pelos criminosos, da potência de Marielle, da sua retirada de cena no melhor momento da vida, do projeto de festa de casamento para reunir a família e amigos em celebração ao amor. A festa não ocorreu. A vida e o projeto de futuro foram interrompidos de forma forçada e cruel pelos assassinos.

Agatha, esposa de Anderson, também falou de amor, de projetos interrompidos, dificuldade de maternar sozinha e, diante da impossibilidade de continuar a vida da mesma forma, restou a alternativa do recomeço, de redesenhar outro projeto sem a presença física de Anderson na vida de seu pequeno Artur.

Foto de arquivo de 21/02/2018; a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) durante sessão ordinária da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Foto: Renan Olaz/CMRJ

Fernanda, vítima sobrevivente, contou momentos do pior passado, do passado de um instante, daquele instante em 14 de março de 2018 que jamais passará porque é presente e será futuro. Luyara, filha de Marielle, certamente há de concordar com Carlos Drummond de Andrade no seu memorável poema Para Sempre: “Fosse eu Rei do Mundo baixava uma lei, Mãe não morre nunca, Mãe ficará sempre junto de seu filho e ele velho embora será pequenino, feito grão de milho”. Os pais de Marielle, hão de completar Drummond: “se fosse Rei baixaria uma lei: é terminantemente proibido filho morrer”, assim como há de concordar com o que eternizou Michel Montaigne no seu ensaio sobre a crueldade: “Crueldade é tudo aquilo que vai além da simples morte. Aquele que mata para ver o outro morrer sem que seja pela cólera ou medo, o faz por pura crueldade - a filha da covardia”.

Essas pessoas citadas foram reunidas pelo infortúnio de serem vítimas, diretas ou indiretas, de um crime bárbaro que chocou o Brasil e, desde 14 de março de 2018, um único desejo: a punição dos culpados.

É certo que a condenação dos culpados não anula, nem compensa as dores suportadas pelo ocorrido, mas possibilita que as famílias possam, finalmente, viver o luto e recomeçar.

Na data de 31 de outubro, o Júri, representado por sete pessoas da sociedade, condenou os executores. Ronnie Lessa foi condenado a 78 anos e 9 meses de reclusão; Elcio de Queiroz a 59 anos e 8 meses de reclusão. Além da condenação, foi fixada, a pedido do MPRJ, quando da denúncia, uma pensão para o pequeno Artur, filho de Anderson, até atingir 24 anos, bem como indenização de R$ 706 mil por danos morais em favor de cada uma das vítimas.

O Ministério Público, ao requerer o pensionamento do filho menor da vítima, a indenização pelos danos morais, o bloqueio dos bens dos acusados para garantir a efetiva indenização das vítimas diretas e indiretas, o fez num recorte vitimocêntrico que pautou sua atuação desde o início. Olhar o processo penal visando não só a punição dos culpados, mas também o encontro das vítimas diretas e indiretas com o direito de informação, participação, proteção e reparação, é medida urgente e deve ser adotada por todos os atores do sistema de Justiça.

Esses direitos costumam ser obliterados pelo sistema em meio a tantos outros homicídios praticados rotineiramente no Brasil. O desencadeamento de processos institucionais que inviabilizam a condição e posição da vítima em toda a sua dimensão, inclusive no que diz respeito a uma punição proporcional ao direito violado pelo perpetrador e à reparação pelos danos causados pelo crime, precisa sofrer reforma urgente.

O projeto de vida interrompido da vítima, o direito à felicidade das vítimas, a mentira do réu durante o interrogatório, raramente são circunstâncias levadas em consideração em uma sentença para fixar a pena dos acusados. Já passou da hora de um repensar. Assim como já passou da hora de começar a enxergar a vítima como protagonista durante o processo. Ela precisa ser ouvida, reconhecida como sujeito de direitos e não como informante útil. No Brasil, lamentavelmente, existe uma disparidade social e legal assimétrica em que os direitos e garantias da vítima estão muito aquém do cenário devido, como se fossem incompatíveis com os direitos do acusado.

A retirada da promessa do futuro, o projeto de vida interrompido, a ausência do ente querido, tudo isso gera para a vítima a necessidade da fala, da escuta, do acolhimento, da informação, da proteção, da reparação. Todas as vítimas no julgamento que se iniciou em 30 de outubro e findou em 31 de outubro de 2024 disseram da ausência de palavras para descrever o sentimento da perda e falaram da esperança na condenação dos culpados. Mas, só a condenação? Isso seria vingança? Evidente que não. Esperam reconhecimento de todos os seus direitos enquanto vítimas, inclusive, o direito de uma pena justa e proporcional ao crime praticado.

Em razão desses direitos, durante a investigação, perpassando pela denúncia e processo até o julgamento, o Ministério Público promoveu reuniões periódicas com os familiares de Marielle e Anderson, proporcionou o direito de informação, de participação e de proteção. No dia da prisão dos acusados - agora condenados por todos os crimes imputados na denúncia - os familiares foram informados da prisão dos executores, antes mesmo que a imprensa divulgasse.

No dia do júri, o MPRJ oportunizou à vítima sobrevivente Fernanda, à mãe de Marielle e às viúvas de Marielle e de Anderson, usufruírem daquele momento para expressar aos jurados o que sentiam, para trazer dignidade aos corpos brutalizados, para demonstrar que o Auto de Exame Cadavérico não serve apenas para comprovar a morte, mas sobretudo para a reflexão de que naqueles corpos havia uma alma que habita e sempre habitará o coração dos entes queridos.

Oportunizou-se a essas vítimas o exercício da fala, não somente como importante para superação do trauma, mas também para possibilitar que a potência da vida ceifada ecoasse na ausência deixada, revelando o poder dos seus sonhos e ações, eternos e imortais que persistem, apesar da violência que tentou silenciá-las.

As vítimas jamais podem ser silenciadas e invisibilizadas no processo. O Ministério Público, guardião da ordem jurídica e responsável pela defesa intransigente desses direitos, tem a missão de proporcionar que todas as vítimas sejam destinatárias desses direitos, dentre eles: direito à participação na investigação e no processo, na comunicação dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão e à designação de data para audiência, ao tratamento com compaixão e dignidade, à não revitimização durante as audiências por meio de perguntas descabidas não relacionadas aos fatos, a não ter sua memória profanada, a ter um lugar reservado no fórum e separado do seu ofensor, a não prestar depoimento na frente do seu ofensor, à reparação pelos danos morais e materiais experimentados em razão do crime, ao atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde a expensas do acusado ou do Estado, além do direito ao pensionamento aos dependentes menores das vítimas pelos executores.

Em um Estado que nasce com a promessa de ser democrático de Direito, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana, somente haverá o cumprimento integral desta promessa quando as vítimas de homicídios forem efetivamente destinatárias de todos esses direitos. E o sistema de Justiça que se pretenda garantista, somente o será se for de forma integral, que garanta os direitos dos acusados e das vítimas com a mesma intensidade, sob pena de ser um sistema hiperbólico e monocular, que apenas observa os Direitos Humanos do violador, e não os das vítimas.

O caso Marielle e Anderson, um dos mais complexos que o Brasil já enfrentou, com envolvimento de ex-agentes do Estado, por um lado, escancarou o submundo do crime e da política no Rio de Janeiro. E, por outro, expôs a necessidade de um olhar vitimocêntrico, trazendo as vítimas para o protagonismo no processo penal, seja ele de repercussão ou não.

A promessa de futuro foi, sim, retirada das famílias enlutadas pela ausência de Marielle e de Anderson, mas é certo também que o futuro não é o tempo que vem e acontece, ele é o tempo que se constrói. Cada familiar encontrará no porvir um pouco daquilo que Marielle e Anderson deram de si. A Justiça dos homens se cumpriu para os réus confessos Ronnie e Elcio. Esperamos que ela se cumpra também para todos os demais homicidas que imaginam estar acima da lei. O direito à Justiça, à verdade e à memória precisa ser garantido a todas as vítimas de homicídio.

Tudo Sobre
Opinião por Simone Sibilio
Letícia Emile

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.