“Quando a Marielle morreu eu senti que tinham tirado a promessa do futuro” (Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, em depoimento prestado no Tribunal do Júri, às 13h23 do dia 30.10.2024).
A frase foi dita pela viúva quando indagada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro sobre como é viver sem Marielle. Discorreu sobre o projeto de vida interrompido pelos criminosos, da potência de Marielle, da sua retirada de cena no melhor momento da vida, do projeto de festa de casamento para reunir a família e amigos em celebração ao amor. A festa não ocorreu. A vida e o projeto de futuro foram interrompidos de forma forçada e cruel pelos assassinos.
Agatha, esposa de Anderson, também falou de amor, de projetos interrompidos, dificuldade de maternar sozinha e, diante da impossibilidade de continuar a vida da mesma forma, restou a alternativa do recomeço, de redesenhar outro projeto sem a presença física de Anderson na vida de seu pequeno Artur.
Fernanda, vítima sobrevivente, contou momentos do pior passado, do passado de um instante, daquele instante em 14 de março de 2018 que jamais passará porque é presente e será futuro. Luyara, filha de Marielle, certamente há de concordar com Carlos Drummond de Andrade no seu memorável poema Para Sempre: “Fosse eu Rei do Mundo baixava uma lei, Mãe não morre nunca, Mãe ficará sempre junto de seu filho e ele velho embora será pequenino, feito grão de milho”. Os pais de Marielle, hão de completar Drummond: “se fosse Rei baixaria uma lei: é terminantemente proibido filho morrer”, assim como há de concordar com o que eternizou Michel Montaigne no seu ensaio sobre a crueldade: “Crueldade é tudo aquilo que vai além da simples morte. Aquele que mata para ver o outro morrer sem que seja pela cólera ou medo, o faz por pura crueldade - a filha da covardia”.
Essas pessoas citadas foram reunidas pelo infortúnio de serem vítimas, diretas ou indiretas, de um crime bárbaro que chocou o Brasil e, desde 14 de março de 2018, um único desejo: a punição dos culpados.
É certo que a condenação dos culpados não anula, nem compensa as dores suportadas pelo ocorrido, mas possibilita que as famílias possam, finalmente, viver o luto e recomeçar.
Na data de 31 de outubro, o Júri, representado por sete pessoas da sociedade, condenou os executores. Ronnie Lessa foi condenado a 78 anos e 9 meses de reclusão; Elcio de Queiroz a 59 anos e 8 meses de reclusão. Além da condenação, foi fixada, a pedido do MPRJ, quando da denúncia, uma pensão para o pequeno Artur, filho de Anderson, até atingir 24 anos, bem como indenização de R$ 706 mil por danos morais em favor de cada uma das vítimas.
O Ministério Público, ao requerer o pensionamento do filho menor da vítima, a indenização pelos danos morais, o bloqueio dos bens dos acusados para garantir a efetiva indenização das vítimas diretas e indiretas, o fez num recorte vitimocêntrico que pautou sua atuação desde o início. Olhar o processo penal visando não só a punição dos culpados, mas também o encontro das vítimas diretas e indiretas com o direito de informação, participação, proteção e reparação, é medida urgente e deve ser adotada por todos os atores do sistema de Justiça.
Esses direitos costumam ser obliterados pelo sistema em meio a tantos outros homicídios praticados rotineiramente no Brasil. O desencadeamento de processos institucionais que inviabilizam a condição e posição da vítima em toda a sua dimensão, inclusive no que diz respeito a uma punição proporcional ao direito violado pelo perpetrador e à reparação pelos danos causados pelo crime, precisa sofrer reforma urgente.
O projeto de vida interrompido da vítima, o direito à felicidade das vítimas, a mentira do réu durante o interrogatório, raramente são circunstâncias levadas em consideração em uma sentença para fixar a pena dos acusados. Já passou da hora de um repensar. Assim como já passou da hora de começar a enxergar a vítima como protagonista durante o processo. Ela precisa ser ouvida, reconhecida como sujeito de direitos e não como informante útil. No Brasil, lamentavelmente, existe uma disparidade social e legal assimétrica em que os direitos e garantias da vítima estão muito aquém do cenário devido, como se fossem incompatíveis com os direitos do acusado.
A retirada da promessa do futuro, o projeto de vida interrompido, a ausência do ente querido, tudo isso gera para a vítima a necessidade da fala, da escuta, do acolhimento, da informação, da proteção, da reparação. Todas as vítimas no julgamento que se iniciou em 30 de outubro e findou em 31 de outubro de 2024 disseram da ausência de palavras para descrever o sentimento da perda e falaram da esperança na condenação dos culpados. Mas, só a condenação? Isso seria vingança? Evidente que não. Esperam reconhecimento de todos os seus direitos enquanto vítimas, inclusive, o direito de uma pena justa e proporcional ao crime praticado.
Em razão desses direitos, durante a investigação, perpassando pela denúncia e processo até o julgamento, o Ministério Público promoveu reuniões periódicas com os familiares de Marielle e Anderson, proporcionou o direito de informação, de participação e de proteção. No dia da prisão dos acusados - agora condenados por todos os crimes imputados na denúncia - os familiares foram informados da prisão dos executores, antes mesmo que a imprensa divulgasse.
No dia do júri, o MPRJ oportunizou à vítima sobrevivente Fernanda, à mãe de Marielle e às viúvas de Marielle e de Anderson, usufruírem daquele momento para expressar aos jurados o que sentiam, para trazer dignidade aos corpos brutalizados, para demonstrar que o Auto de Exame Cadavérico não serve apenas para comprovar a morte, mas sobretudo para a reflexão de que naqueles corpos havia uma alma que habita e sempre habitará o coração dos entes queridos.
Oportunizou-se a essas vítimas o exercício da fala, não somente como importante para superação do trauma, mas também para possibilitar que a potência da vida ceifada ecoasse na ausência deixada, revelando o poder dos seus sonhos e ações, eternos e imortais que persistem, apesar da violência que tentou silenciá-las.
As vítimas jamais podem ser silenciadas e invisibilizadas no processo. O Ministério Público, guardião da ordem jurídica e responsável pela defesa intransigente desses direitos, tem a missão de proporcionar que todas as vítimas sejam destinatárias desses direitos, dentre eles: direito à participação na investigação e no processo, na comunicação dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão e à designação de data para audiência, ao tratamento com compaixão e dignidade, à não revitimização durante as audiências por meio de perguntas descabidas não relacionadas aos fatos, a não ter sua memória profanada, a ter um lugar reservado no fórum e separado do seu ofensor, a não prestar depoimento na frente do seu ofensor, à reparação pelos danos morais e materiais experimentados em razão do crime, ao atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde a expensas do acusado ou do Estado, além do direito ao pensionamento aos dependentes menores das vítimas pelos executores.
Em um Estado que nasce com a promessa de ser democrático de Direito, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana, somente haverá o cumprimento integral desta promessa quando as vítimas de homicídios forem efetivamente destinatárias de todos esses direitos. E o sistema de Justiça que se pretenda garantista, somente o será se for de forma integral, que garanta os direitos dos acusados e das vítimas com a mesma intensidade, sob pena de ser um sistema hiperbólico e monocular, que apenas observa os Direitos Humanos do violador, e não os das vítimas.
O caso Marielle e Anderson, um dos mais complexos que o Brasil já enfrentou, com envolvimento de ex-agentes do Estado, por um lado, escancarou o submundo do crime e da política no Rio de Janeiro. E, por outro, expôs a necessidade de um olhar vitimocêntrico, trazendo as vítimas para o protagonismo no processo penal, seja ele de repercussão ou não.
A promessa de futuro foi, sim, retirada das famílias enlutadas pela ausência de Marielle e de Anderson, mas é certo também que o futuro não é o tempo que vem e acontece, ele é o tempo que se constrói. Cada familiar encontrará no porvir um pouco daquilo que Marielle e Anderson deram de si. A Justiça dos homens se cumpriu para os réus confessos Ronnie e Elcio. Esperamos que ela se cumpra também para todos os demais homicidas que imaginam estar acima da lei. O direito à Justiça, à verdade e à memória precisa ser garantido a todas as vítimas de homicídio.