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Opinião|A quem interessa o projeto do aborto?


É esse novo balanço de valores que pretende a sociedade brasileira? A gestante que comete um aborto é uma assassina? Merece pena mais gravosa que um estuprador? Ainda que a resposta a essas perguntas seja positiva, não é em poucas semanas, em votações rápidas, que o Congresso Nacional deve chegar a essa conclusão

Por Maíra Beauchamp Salomi

Foi em menos de 30 dias que o requerimento para tramitação de urgência do Projeto de Lei 1904/2024 foi aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados em votação simbólica sem contabilização de votos, que durou pouco mais de vinte segundos. Com isso, o projeto seguirá o trâmite do processo legislativo sem passar pelas comissões técnicas e provavelmente sem maiores estudos por parte dos próprios legisladores ou contribuições de especialistas no assunto. A participação ativa da sociedade civil sequer foi cogitada.

O dia escolhido para a apresentação do projeto de lei não foi aleatório. Foi o mesmo dia da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes que suspendeu todos os procedimentos judiciais, administrativos e disciplinares instaurados com fundamento na Resolução CFM 2.378/2024, que passou a proibir o aborto após 22 semanas em caso de estupro, mesmo sem qualquer previsão legal.

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Em linhas gerais o PL 1904/2024 modifica o Código Penal ampliando as hipóteses de aborto ilegal para duas novas situações: quando for constatada a viabilidade fetal ou nas gestações acima de 22 semanas, situação em que essa viabilidade fetal é presumida. Nesses casos, a pena é elevada em comparação ao que é previsto atualmente, passando a ser de de 6 a 20 anos de reclusão. Hoje, para a gestante que pratica o aborto em si mesma, a pena é de reclusão de 1 a 3 anos e para o terceiro que realiza o processo abortivo com o seu consentimento é de 1 a 4 anos, chegando a penas de 1 a 10 anos de prisão para aquele que aborta sem consentimento.

Não foi à toa que as penas deixaram de ser previstas numericamente no texto do projeto, constando que nessas hipóteses determinadas “as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”. O intuito do Deputado Sóstenes Cavalcante, relator do projeto, é realmente transformar aquele que aborta em um verdadeiro assassino, conforme consta da justificativa do projeto.

O projeto de lei ainda limita hipótese já prevista em lei desde a entrada em vigor do Código Penal em 1940 que prevê não haver punição do aborto praticado por médico quando a gravidez resulta de estupro. Com a nova redação, a excludente de punibilidade não será aplicada se houver viabilidade fetal ou se a gestação já estiver adiantada, com mais de 22 semanas.

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Na prática, nos dias de hoje, são inúmeros os percalços enfrentados pela mulher que pretende fazer um aborto legal, seja pelo motivo que for. São escassas as unidades de saúde que oferecem esse tipo de serviço e vários são os profissionais que se recusam a fazê-lo, sobretudo quando a gestação já está em estágio mais avançado. E especificamente nos casos decorrentes de estupro, em que pese a lei não exija qualquer documento ou prova da violência sexual, muitos hospitais condicionam a realização do procedimento à apresentação de boletim de ocorrência sobre os fatos ou até mesmo prova da prática do crime. Com a mudança legislativa, o cenário piora ainda mais, bastando a viabilidade fetal para a mulher ser responsabilizada criminalmente. O retrocesso é inegável e as consequências são nefastas.

De imediato já é possível perceber a significativa mudança de valores que ocorre por meio de um projeto de lei de tramitação emergencial, sem qualquer análise mais detida sobre o tema. A mudança de penas do crime de aborto nessa proporção, em semelhança a um dos crimes mais graves da legislação penal brasileira, com um salto de 5 anos para as penas mínimas e de até 16 anos para as penas máximas não poderia, em caso algum, ocorrer de modo açodado. Não se trata de uma simples alteração legislativa e sim de uma drástica modificação de valores na área do Direito Penal que cria inexplicável desproporção entre condutas e penas, notadamente entre os crimes de aborto e estupro.

Nesse novo contexto, o responsável por um estupro pode ser condenado à uma pena de prisão de 6 a 10 anos, enquanto sua vítima, caso decida interromper a gravidez de feto viável fruto dessa violência sexual, poderá ser condenada à pena de prisão de 6 a 20 anos. A depender do juiz, a gestante ficará mais tempo na prisão que seu algoz.

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É esse novo balanço de valores que pretende a sociedade brasileira? A gestante que comete um aborto é uma assassina? Merece essa mulher uma pena mais gravosa que um estuprador? Ainda que a resposta a essas perguntas seja positiva, não é em poucas semanas, em votações rápidas e simbólicas, que o Congresso Nacional como representante do povo deve chegar a essa conclusão.

Para além disso, não basta igualar as condutas sem antes pensar se a resposta estatal para aquele que realiza um procedimento abortivo deve ser mesmo o encarceramento. Todos sabem a realidade dos presídios brasileiros que levou o Supremo Tribunal Federal a declarar o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário nacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos a reconhecer a situação degradante de algumas das unidades prisionais. Seria este o local adequado para punir uma gestante vítima de estupro por ter escolhido não ser a mãe do filho de seu agressor?

O cenário de segurança pública auxilia nessa reflexão, bastando um singelo exame de alguns dados para entender a catástrofe que esse projeto de lei pode provocar. O Anuário de Segurança Pública de 2023 aponta que a violência sexual vem crescendo nos últimos anos, mesmo com as subnotificações. Em 2022 foram identificados 74.930 casos de estupros em todo país, sendo que 24,2% das vítimas eram homens e mulheres com mais de 14 anos, e 75,8% eram incapazes de consentir, fosse pela idade (menores de 14 anos), ou por qualquer outro motivo (deficiência, enfermidade etc.). Os dados revelam, ainda, que aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade, sendo 61,4% das vítimas com idade no máximo de 13 anos. E quanto ao local de ocorrência dos estupros, em média, 68,3% dos casos de estupro ocorreram na residência da vítima.

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As grandes vítimas desses crimes são, portanto, as crianças e adolescentes abusadas por conhecidos e parentes dentro de suas próprias casas. São meninas que escondem essas ocorrências por medo, vergonha, subordinação e demoram a tomar qualquer atitude em relação à gravidez. Por vezes, demoram até mesmo a descobrir sua condição gravídica, superando em muito a 22ª semana de gestação. São elas as destinatárias da mudança legislativa.

Certamente o maior rigor na lei surtirá efeitos. Não acabará com a prática das violências sexuais, nem extirpará os estupradores. Mas provocará intenso temor nas gestantes que, buscando fugir das autoridades e da prisão, recorrerão a clínicas clandestinas de aborto ou providenciarão tratamentos em casa com medicamento inapropriados, colocando suas próprias vidas em risco.

Não se trata, como festejado por alguns, de uma “vitória da vida”. O que está em jogo é a dignidade humana e a vida de nossas mulheres e de nossas meninas. A quem interessa tamanho retrocesso?

Foi em menos de 30 dias que o requerimento para tramitação de urgência do Projeto de Lei 1904/2024 foi aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados em votação simbólica sem contabilização de votos, que durou pouco mais de vinte segundos. Com isso, o projeto seguirá o trâmite do processo legislativo sem passar pelas comissões técnicas e provavelmente sem maiores estudos por parte dos próprios legisladores ou contribuições de especialistas no assunto. A participação ativa da sociedade civil sequer foi cogitada.

O dia escolhido para a apresentação do projeto de lei não foi aleatório. Foi o mesmo dia da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes que suspendeu todos os procedimentos judiciais, administrativos e disciplinares instaurados com fundamento na Resolução CFM 2.378/2024, que passou a proibir o aborto após 22 semanas em caso de estupro, mesmo sem qualquer previsão legal.

Em linhas gerais o PL 1904/2024 modifica o Código Penal ampliando as hipóteses de aborto ilegal para duas novas situações: quando for constatada a viabilidade fetal ou nas gestações acima de 22 semanas, situação em que essa viabilidade fetal é presumida. Nesses casos, a pena é elevada em comparação ao que é previsto atualmente, passando a ser de de 6 a 20 anos de reclusão. Hoje, para a gestante que pratica o aborto em si mesma, a pena é de reclusão de 1 a 3 anos e para o terceiro que realiza o processo abortivo com o seu consentimento é de 1 a 4 anos, chegando a penas de 1 a 10 anos de prisão para aquele que aborta sem consentimento.

Não foi à toa que as penas deixaram de ser previstas numericamente no texto do projeto, constando que nessas hipóteses determinadas “as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”. O intuito do Deputado Sóstenes Cavalcante, relator do projeto, é realmente transformar aquele que aborta em um verdadeiro assassino, conforme consta da justificativa do projeto.

O projeto de lei ainda limita hipótese já prevista em lei desde a entrada em vigor do Código Penal em 1940 que prevê não haver punição do aborto praticado por médico quando a gravidez resulta de estupro. Com a nova redação, a excludente de punibilidade não será aplicada se houver viabilidade fetal ou se a gestação já estiver adiantada, com mais de 22 semanas.

Na prática, nos dias de hoje, são inúmeros os percalços enfrentados pela mulher que pretende fazer um aborto legal, seja pelo motivo que for. São escassas as unidades de saúde que oferecem esse tipo de serviço e vários são os profissionais que se recusam a fazê-lo, sobretudo quando a gestação já está em estágio mais avançado. E especificamente nos casos decorrentes de estupro, em que pese a lei não exija qualquer documento ou prova da violência sexual, muitos hospitais condicionam a realização do procedimento à apresentação de boletim de ocorrência sobre os fatos ou até mesmo prova da prática do crime. Com a mudança legislativa, o cenário piora ainda mais, bastando a viabilidade fetal para a mulher ser responsabilizada criminalmente. O retrocesso é inegável e as consequências são nefastas.

De imediato já é possível perceber a significativa mudança de valores que ocorre por meio de um projeto de lei de tramitação emergencial, sem qualquer análise mais detida sobre o tema. A mudança de penas do crime de aborto nessa proporção, em semelhança a um dos crimes mais graves da legislação penal brasileira, com um salto de 5 anos para as penas mínimas e de até 16 anos para as penas máximas não poderia, em caso algum, ocorrer de modo açodado. Não se trata de uma simples alteração legislativa e sim de uma drástica modificação de valores na área do Direito Penal que cria inexplicável desproporção entre condutas e penas, notadamente entre os crimes de aborto e estupro.

Nesse novo contexto, o responsável por um estupro pode ser condenado à uma pena de prisão de 6 a 10 anos, enquanto sua vítima, caso decida interromper a gravidez de feto viável fruto dessa violência sexual, poderá ser condenada à pena de prisão de 6 a 20 anos. A depender do juiz, a gestante ficará mais tempo na prisão que seu algoz.

É esse novo balanço de valores que pretende a sociedade brasileira? A gestante que comete um aborto é uma assassina? Merece essa mulher uma pena mais gravosa que um estuprador? Ainda que a resposta a essas perguntas seja positiva, não é em poucas semanas, em votações rápidas e simbólicas, que o Congresso Nacional como representante do povo deve chegar a essa conclusão.

Para além disso, não basta igualar as condutas sem antes pensar se a resposta estatal para aquele que realiza um procedimento abortivo deve ser mesmo o encarceramento. Todos sabem a realidade dos presídios brasileiros que levou o Supremo Tribunal Federal a declarar o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário nacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos a reconhecer a situação degradante de algumas das unidades prisionais. Seria este o local adequado para punir uma gestante vítima de estupro por ter escolhido não ser a mãe do filho de seu agressor?

O cenário de segurança pública auxilia nessa reflexão, bastando um singelo exame de alguns dados para entender a catástrofe que esse projeto de lei pode provocar. O Anuário de Segurança Pública de 2023 aponta que a violência sexual vem crescendo nos últimos anos, mesmo com as subnotificações. Em 2022 foram identificados 74.930 casos de estupros em todo país, sendo que 24,2% das vítimas eram homens e mulheres com mais de 14 anos, e 75,8% eram incapazes de consentir, fosse pela idade (menores de 14 anos), ou por qualquer outro motivo (deficiência, enfermidade etc.). Os dados revelam, ainda, que aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade, sendo 61,4% das vítimas com idade no máximo de 13 anos. E quanto ao local de ocorrência dos estupros, em média, 68,3% dos casos de estupro ocorreram na residência da vítima.

As grandes vítimas desses crimes são, portanto, as crianças e adolescentes abusadas por conhecidos e parentes dentro de suas próprias casas. São meninas que escondem essas ocorrências por medo, vergonha, subordinação e demoram a tomar qualquer atitude em relação à gravidez. Por vezes, demoram até mesmo a descobrir sua condição gravídica, superando em muito a 22ª semana de gestação. São elas as destinatárias da mudança legislativa.

Certamente o maior rigor na lei surtirá efeitos. Não acabará com a prática das violências sexuais, nem extirpará os estupradores. Mas provocará intenso temor nas gestantes que, buscando fugir das autoridades e da prisão, recorrerão a clínicas clandestinas de aborto ou providenciarão tratamentos em casa com medicamento inapropriados, colocando suas próprias vidas em risco.

Não se trata, como festejado por alguns, de uma “vitória da vida”. O que está em jogo é a dignidade humana e a vida de nossas mulheres e de nossas meninas. A quem interessa tamanho retrocesso?

Foi em menos de 30 dias que o requerimento para tramitação de urgência do Projeto de Lei 1904/2024 foi aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados em votação simbólica sem contabilização de votos, que durou pouco mais de vinte segundos. Com isso, o projeto seguirá o trâmite do processo legislativo sem passar pelas comissões técnicas e provavelmente sem maiores estudos por parte dos próprios legisladores ou contribuições de especialistas no assunto. A participação ativa da sociedade civil sequer foi cogitada.

O dia escolhido para a apresentação do projeto de lei não foi aleatório. Foi o mesmo dia da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes que suspendeu todos os procedimentos judiciais, administrativos e disciplinares instaurados com fundamento na Resolução CFM 2.378/2024, que passou a proibir o aborto após 22 semanas em caso de estupro, mesmo sem qualquer previsão legal.

Em linhas gerais o PL 1904/2024 modifica o Código Penal ampliando as hipóteses de aborto ilegal para duas novas situações: quando for constatada a viabilidade fetal ou nas gestações acima de 22 semanas, situação em que essa viabilidade fetal é presumida. Nesses casos, a pena é elevada em comparação ao que é previsto atualmente, passando a ser de de 6 a 20 anos de reclusão. Hoje, para a gestante que pratica o aborto em si mesma, a pena é de reclusão de 1 a 3 anos e para o terceiro que realiza o processo abortivo com o seu consentimento é de 1 a 4 anos, chegando a penas de 1 a 10 anos de prisão para aquele que aborta sem consentimento.

Não foi à toa que as penas deixaram de ser previstas numericamente no texto do projeto, constando que nessas hipóteses determinadas “as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”. O intuito do Deputado Sóstenes Cavalcante, relator do projeto, é realmente transformar aquele que aborta em um verdadeiro assassino, conforme consta da justificativa do projeto.

O projeto de lei ainda limita hipótese já prevista em lei desde a entrada em vigor do Código Penal em 1940 que prevê não haver punição do aborto praticado por médico quando a gravidez resulta de estupro. Com a nova redação, a excludente de punibilidade não será aplicada se houver viabilidade fetal ou se a gestação já estiver adiantada, com mais de 22 semanas.

Na prática, nos dias de hoje, são inúmeros os percalços enfrentados pela mulher que pretende fazer um aborto legal, seja pelo motivo que for. São escassas as unidades de saúde que oferecem esse tipo de serviço e vários são os profissionais que se recusam a fazê-lo, sobretudo quando a gestação já está em estágio mais avançado. E especificamente nos casos decorrentes de estupro, em que pese a lei não exija qualquer documento ou prova da violência sexual, muitos hospitais condicionam a realização do procedimento à apresentação de boletim de ocorrência sobre os fatos ou até mesmo prova da prática do crime. Com a mudança legislativa, o cenário piora ainda mais, bastando a viabilidade fetal para a mulher ser responsabilizada criminalmente. O retrocesso é inegável e as consequências são nefastas.

De imediato já é possível perceber a significativa mudança de valores que ocorre por meio de um projeto de lei de tramitação emergencial, sem qualquer análise mais detida sobre o tema. A mudança de penas do crime de aborto nessa proporção, em semelhança a um dos crimes mais graves da legislação penal brasileira, com um salto de 5 anos para as penas mínimas e de até 16 anos para as penas máximas não poderia, em caso algum, ocorrer de modo açodado. Não se trata de uma simples alteração legislativa e sim de uma drástica modificação de valores na área do Direito Penal que cria inexplicável desproporção entre condutas e penas, notadamente entre os crimes de aborto e estupro.

Nesse novo contexto, o responsável por um estupro pode ser condenado à uma pena de prisão de 6 a 10 anos, enquanto sua vítima, caso decida interromper a gravidez de feto viável fruto dessa violência sexual, poderá ser condenada à pena de prisão de 6 a 20 anos. A depender do juiz, a gestante ficará mais tempo na prisão que seu algoz.

É esse novo balanço de valores que pretende a sociedade brasileira? A gestante que comete um aborto é uma assassina? Merece essa mulher uma pena mais gravosa que um estuprador? Ainda que a resposta a essas perguntas seja positiva, não é em poucas semanas, em votações rápidas e simbólicas, que o Congresso Nacional como representante do povo deve chegar a essa conclusão.

Para além disso, não basta igualar as condutas sem antes pensar se a resposta estatal para aquele que realiza um procedimento abortivo deve ser mesmo o encarceramento. Todos sabem a realidade dos presídios brasileiros que levou o Supremo Tribunal Federal a declarar o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário nacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos a reconhecer a situação degradante de algumas das unidades prisionais. Seria este o local adequado para punir uma gestante vítima de estupro por ter escolhido não ser a mãe do filho de seu agressor?

O cenário de segurança pública auxilia nessa reflexão, bastando um singelo exame de alguns dados para entender a catástrofe que esse projeto de lei pode provocar. O Anuário de Segurança Pública de 2023 aponta que a violência sexual vem crescendo nos últimos anos, mesmo com as subnotificações. Em 2022 foram identificados 74.930 casos de estupros em todo país, sendo que 24,2% das vítimas eram homens e mulheres com mais de 14 anos, e 75,8% eram incapazes de consentir, fosse pela idade (menores de 14 anos), ou por qualquer outro motivo (deficiência, enfermidade etc.). Os dados revelam, ainda, que aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade, sendo 61,4% das vítimas com idade no máximo de 13 anos. E quanto ao local de ocorrência dos estupros, em média, 68,3% dos casos de estupro ocorreram na residência da vítima.

As grandes vítimas desses crimes são, portanto, as crianças e adolescentes abusadas por conhecidos e parentes dentro de suas próprias casas. São meninas que escondem essas ocorrências por medo, vergonha, subordinação e demoram a tomar qualquer atitude em relação à gravidez. Por vezes, demoram até mesmo a descobrir sua condição gravídica, superando em muito a 22ª semana de gestação. São elas as destinatárias da mudança legislativa.

Certamente o maior rigor na lei surtirá efeitos. Não acabará com a prática das violências sexuais, nem extirpará os estupradores. Mas provocará intenso temor nas gestantes que, buscando fugir das autoridades e da prisão, recorrerão a clínicas clandestinas de aborto ou providenciarão tratamentos em casa com medicamento inapropriados, colocando suas próprias vidas em risco.

Não se trata, como festejado por alguns, de uma “vitória da vida”. O que está em jogo é a dignidade humana e a vida de nossas mulheres e de nossas meninas. A quem interessa tamanho retrocesso?

Foi em menos de 30 dias que o requerimento para tramitação de urgência do Projeto de Lei 1904/2024 foi aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados em votação simbólica sem contabilização de votos, que durou pouco mais de vinte segundos. Com isso, o projeto seguirá o trâmite do processo legislativo sem passar pelas comissões técnicas e provavelmente sem maiores estudos por parte dos próprios legisladores ou contribuições de especialistas no assunto. A participação ativa da sociedade civil sequer foi cogitada.

O dia escolhido para a apresentação do projeto de lei não foi aleatório. Foi o mesmo dia da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes que suspendeu todos os procedimentos judiciais, administrativos e disciplinares instaurados com fundamento na Resolução CFM 2.378/2024, que passou a proibir o aborto após 22 semanas em caso de estupro, mesmo sem qualquer previsão legal.

Em linhas gerais o PL 1904/2024 modifica o Código Penal ampliando as hipóteses de aborto ilegal para duas novas situações: quando for constatada a viabilidade fetal ou nas gestações acima de 22 semanas, situação em que essa viabilidade fetal é presumida. Nesses casos, a pena é elevada em comparação ao que é previsto atualmente, passando a ser de de 6 a 20 anos de reclusão. Hoje, para a gestante que pratica o aborto em si mesma, a pena é de reclusão de 1 a 3 anos e para o terceiro que realiza o processo abortivo com o seu consentimento é de 1 a 4 anos, chegando a penas de 1 a 10 anos de prisão para aquele que aborta sem consentimento.

Não foi à toa que as penas deixaram de ser previstas numericamente no texto do projeto, constando que nessas hipóteses determinadas “as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”. O intuito do Deputado Sóstenes Cavalcante, relator do projeto, é realmente transformar aquele que aborta em um verdadeiro assassino, conforme consta da justificativa do projeto.

O projeto de lei ainda limita hipótese já prevista em lei desde a entrada em vigor do Código Penal em 1940 que prevê não haver punição do aborto praticado por médico quando a gravidez resulta de estupro. Com a nova redação, a excludente de punibilidade não será aplicada se houver viabilidade fetal ou se a gestação já estiver adiantada, com mais de 22 semanas.

Na prática, nos dias de hoje, são inúmeros os percalços enfrentados pela mulher que pretende fazer um aborto legal, seja pelo motivo que for. São escassas as unidades de saúde que oferecem esse tipo de serviço e vários são os profissionais que se recusam a fazê-lo, sobretudo quando a gestação já está em estágio mais avançado. E especificamente nos casos decorrentes de estupro, em que pese a lei não exija qualquer documento ou prova da violência sexual, muitos hospitais condicionam a realização do procedimento à apresentação de boletim de ocorrência sobre os fatos ou até mesmo prova da prática do crime. Com a mudança legislativa, o cenário piora ainda mais, bastando a viabilidade fetal para a mulher ser responsabilizada criminalmente. O retrocesso é inegável e as consequências são nefastas.

De imediato já é possível perceber a significativa mudança de valores que ocorre por meio de um projeto de lei de tramitação emergencial, sem qualquer análise mais detida sobre o tema. A mudança de penas do crime de aborto nessa proporção, em semelhança a um dos crimes mais graves da legislação penal brasileira, com um salto de 5 anos para as penas mínimas e de até 16 anos para as penas máximas não poderia, em caso algum, ocorrer de modo açodado. Não se trata de uma simples alteração legislativa e sim de uma drástica modificação de valores na área do Direito Penal que cria inexplicável desproporção entre condutas e penas, notadamente entre os crimes de aborto e estupro.

Nesse novo contexto, o responsável por um estupro pode ser condenado à uma pena de prisão de 6 a 10 anos, enquanto sua vítima, caso decida interromper a gravidez de feto viável fruto dessa violência sexual, poderá ser condenada à pena de prisão de 6 a 20 anos. A depender do juiz, a gestante ficará mais tempo na prisão que seu algoz.

É esse novo balanço de valores que pretende a sociedade brasileira? A gestante que comete um aborto é uma assassina? Merece essa mulher uma pena mais gravosa que um estuprador? Ainda que a resposta a essas perguntas seja positiva, não é em poucas semanas, em votações rápidas e simbólicas, que o Congresso Nacional como representante do povo deve chegar a essa conclusão.

Para além disso, não basta igualar as condutas sem antes pensar se a resposta estatal para aquele que realiza um procedimento abortivo deve ser mesmo o encarceramento. Todos sabem a realidade dos presídios brasileiros que levou o Supremo Tribunal Federal a declarar o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário nacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos a reconhecer a situação degradante de algumas das unidades prisionais. Seria este o local adequado para punir uma gestante vítima de estupro por ter escolhido não ser a mãe do filho de seu agressor?

O cenário de segurança pública auxilia nessa reflexão, bastando um singelo exame de alguns dados para entender a catástrofe que esse projeto de lei pode provocar. O Anuário de Segurança Pública de 2023 aponta que a violência sexual vem crescendo nos últimos anos, mesmo com as subnotificações. Em 2022 foram identificados 74.930 casos de estupros em todo país, sendo que 24,2% das vítimas eram homens e mulheres com mais de 14 anos, e 75,8% eram incapazes de consentir, fosse pela idade (menores de 14 anos), ou por qualquer outro motivo (deficiência, enfermidade etc.). Os dados revelam, ainda, que aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade, sendo 61,4% das vítimas com idade no máximo de 13 anos. E quanto ao local de ocorrência dos estupros, em média, 68,3% dos casos de estupro ocorreram na residência da vítima.

As grandes vítimas desses crimes são, portanto, as crianças e adolescentes abusadas por conhecidos e parentes dentro de suas próprias casas. São meninas que escondem essas ocorrências por medo, vergonha, subordinação e demoram a tomar qualquer atitude em relação à gravidez. Por vezes, demoram até mesmo a descobrir sua condição gravídica, superando em muito a 22ª semana de gestação. São elas as destinatárias da mudança legislativa.

Certamente o maior rigor na lei surtirá efeitos. Não acabará com a prática das violências sexuais, nem extirpará os estupradores. Mas provocará intenso temor nas gestantes que, buscando fugir das autoridades e da prisão, recorrerão a clínicas clandestinas de aborto ou providenciarão tratamentos em casa com medicamento inapropriados, colocando suas próprias vidas em risco.

Não se trata, como festejado por alguns, de uma “vitória da vida”. O que está em jogo é a dignidade humana e a vida de nossas mulheres e de nossas meninas. A quem interessa tamanho retrocesso?

Foi em menos de 30 dias que o requerimento para tramitação de urgência do Projeto de Lei 1904/2024 foi aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados em votação simbólica sem contabilização de votos, que durou pouco mais de vinte segundos. Com isso, o projeto seguirá o trâmite do processo legislativo sem passar pelas comissões técnicas e provavelmente sem maiores estudos por parte dos próprios legisladores ou contribuições de especialistas no assunto. A participação ativa da sociedade civil sequer foi cogitada.

O dia escolhido para a apresentação do projeto de lei não foi aleatório. Foi o mesmo dia da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes que suspendeu todos os procedimentos judiciais, administrativos e disciplinares instaurados com fundamento na Resolução CFM 2.378/2024, que passou a proibir o aborto após 22 semanas em caso de estupro, mesmo sem qualquer previsão legal.

Em linhas gerais o PL 1904/2024 modifica o Código Penal ampliando as hipóteses de aborto ilegal para duas novas situações: quando for constatada a viabilidade fetal ou nas gestações acima de 22 semanas, situação em que essa viabilidade fetal é presumida. Nesses casos, a pena é elevada em comparação ao que é previsto atualmente, passando a ser de de 6 a 20 anos de reclusão. Hoje, para a gestante que pratica o aborto em si mesma, a pena é de reclusão de 1 a 3 anos e para o terceiro que realiza o processo abortivo com o seu consentimento é de 1 a 4 anos, chegando a penas de 1 a 10 anos de prisão para aquele que aborta sem consentimento.

Não foi à toa que as penas deixaram de ser previstas numericamente no texto do projeto, constando que nessas hipóteses determinadas “as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”. O intuito do Deputado Sóstenes Cavalcante, relator do projeto, é realmente transformar aquele que aborta em um verdadeiro assassino, conforme consta da justificativa do projeto.

O projeto de lei ainda limita hipótese já prevista em lei desde a entrada em vigor do Código Penal em 1940 que prevê não haver punição do aborto praticado por médico quando a gravidez resulta de estupro. Com a nova redação, a excludente de punibilidade não será aplicada se houver viabilidade fetal ou se a gestação já estiver adiantada, com mais de 22 semanas.

Na prática, nos dias de hoje, são inúmeros os percalços enfrentados pela mulher que pretende fazer um aborto legal, seja pelo motivo que for. São escassas as unidades de saúde que oferecem esse tipo de serviço e vários são os profissionais que se recusam a fazê-lo, sobretudo quando a gestação já está em estágio mais avançado. E especificamente nos casos decorrentes de estupro, em que pese a lei não exija qualquer documento ou prova da violência sexual, muitos hospitais condicionam a realização do procedimento à apresentação de boletim de ocorrência sobre os fatos ou até mesmo prova da prática do crime. Com a mudança legislativa, o cenário piora ainda mais, bastando a viabilidade fetal para a mulher ser responsabilizada criminalmente. O retrocesso é inegável e as consequências são nefastas.

De imediato já é possível perceber a significativa mudança de valores que ocorre por meio de um projeto de lei de tramitação emergencial, sem qualquer análise mais detida sobre o tema. A mudança de penas do crime de aborto nessa proporção, em semelhança a um dos crimes mais graves da legislação penal brasileira, com um salto de 5 anos para as penas mínimas e de até 16 anos para as penas máximas não poderia, em caso algum, ocorrer de modo açodado. Não se trata de uma simples alteração legislativa e sim de uma drástica modificação de valores na área do Direito Penal que cria inexplicável desproporção entre condutas e penas, notadamente entre os crimes de aborto e estupro.

Nesse novo contexto, o responsável por um estupro pode ser condenado à uma pena de prisão de 6 a 10 anos, enquanto sua vítima, caso decida interromper a gravidez de feto viável fruto dessa violência sexual, poderá ser condenada à pena de prisão de 6 a 20 anos. A depender do juiz, a gestante ficará mais tempo na prisão que seu algoz.

É esse novo balanço de valores que pretende a sociedade brasileira? A gestante que comete um aborto é uma assassina? Merece essa mulher uma pena mais gravosa que um estuprador? Ainda que a resposta a essas perguntas seja positiva, não é em poucas semanas, em votações rápidas e simbólicas, que o Congresso Nacional como representante do povo deve chegar a essa conclusão.

Para além disso, não basta igualar as condutas sem antes pensar se a resposta estatal para aquele que realiza um procedimento abortivo deve ser mesmo o encarceramento. Todos sabem a realidade dos presídios brasileiros que levou o Supremo Tribunal Federal a declarar o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário nacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos a reconhecer a situação degradante de algumas das unidades prisionais. Seria este o local adequado para punir uma gestante vítima de estupro por ter escolhido não ser a mãe do filho de seu agressor?

O cenário de segurança pública auxilia nessa reflexão, bastando um singelo exame de alguns dados para entender a catástrofe que esse projeto de lei pode provocar. O Anuário de Segurança Pública de 2023 aponta que a violência sexual vem crescendo nos últimos anos, mesmo com as subnotificações. Em 2022 foram identificados 74.930 casos de estupros em todo país, sendo que 24,2% das vítimas eram homens e mulheres com mais de 14 anos, e 75,8% eram incapazes de consentir, fosse pela idade (menores de 14 anos), ou por qualquer outro motivo (deficiência, enfermidade etc.). Os dados revelam, ainda, que aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade, sendo 61,4% das vítimas com idade no máximo de 13 anos. E quanto ao local de ocorrência dos estupros, em média, 68,3% dos casos de estupro ocorreram na residência da vítima.

As grandes vítimas desses crimes são, portanto, as crianças e adolescentes abusadas por conhecidos e parentes dentro de suas próprias casas. São meninas que escondem essas ocorrências por medo, vergonha, subordinação e demoram a tomar qualquer atitude em relação à gravidez. Por vezes, demoram até mesmo a descobrir sua condição gravídica, superando em muito a 22ª semana de gestação. São elas as destinatárias da mudança legislativa.

Certamente o maior rigor na lei surtirá efeitos. Não acabará com a prática das violências sexuais, nem extirpará os estupradores. Mas provocará intenso temor nas gestantes que, buscando fugir das autoridades e da prisão, recorrerão a clínicas clandestinas de aborto ou providenciarão tratamentos em casa com medicamento inapropriados, colocando suas próprias vidas em risco.

Não se trata, como festejado por alguns, de uma “vitória da vida”. O que está em jogo é a dignidade humana e a vida de nossas mulheres e de nossas meninas. A quem interessa tamanho retrocesso?

Opinião por Maíra Beauchamp Salomi

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