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Opinião|A questão federativa nos PLPs 68 e 108


Embora ainda não se possa afirmar que seja inconstitucional, pode ocorrer um processo de inconstitucionalização da reforma tributária, caso ela reduza (ao invés de manter ou aumentar) a capacidade dos Estados e Municípios de custear suas atividades e serviços sem dependerem da União, o que exigiria a rediscussão do modelo, com os custos daí decorrentes para o País

Por Hamilton Dias de Souza, Humberto Ávila, Ives Gandra da Silva Martins e Roque Antônio Carrazza
Atualização:

A EC 132/2023 previu a substituição do ICMS, ISS, PIS e COFINS por um novo sistema de tributação do consumo, mais simples, racional e alinhado à prática internacional.

Nesse sistema, a tributação geral do consumo será dual, com um Imposto (subnacional) e da Contribuição (federal) sobre Bens e Serviços, IBS e CBS, instituídos por lei complementar e praticamente idênticos entre si. Eles serão administrados pelo Comitê Gestor do IBS (CG) e pelo fisco federal, cabendo aos entes federados definir suas alíquotas padrão. Haverá, ainda, um Imposto Seletivo para desestimular consumos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, que coexistirá com o IPI, mantido apenas para produtos da ZFM.

A dualidade substitui a ideia original de um único IBS compartilhado entre os entes, que, como alertamos desde os primórdios da PEC 45/2019[1], seria inconstitucional, pois suprimir o ICMS (88% da arrecadação estadual) e o ISS (43% da municipal)[2], deixando o novo imposto a critério do Congresso Nacional, afetaria a autonomia financeira dos entes[3].

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Contudo, após a alteração, apontamos para o risco de essa dualidade ser apenas formal, sem garantir um nível satisfatório de autonomia aos entes[4], o que, agora, é confirmado pelos recentes PLPs 68 e 108/2024. Afinal, segundo os PLPs, os entes serão subalternos ao CG, que, por sua vez, ficará na dependência da União quanto à estrutura comum do IBS/CBS. E isso o s enfraqueceria, amesquinhando a Federação, o que é vedado.

De fato, a EC teve o propósito de recuperar a racionalidade do sistema tributário. Assim, a dualidade do IBS/CBS precisa ser estruturada de modo a atender à simplicidade, transparência, justiça e cooperação (CF, art. 145, §3º). E isso implica que, além de duais, os tributos têm de ser uniformes, tanto em seus aspectos legais (mesmas regras de incidência) quanto administrativos, com regulamentos, interpretações, obrigações e procedimentos harmônicos (CF, arts. 149-B, art. 156-B e 195, §16).

Consequentemente, a lei complementar deve dispor sobre a matéria de modo a garantir suficiente autonomia dos Estados e Municípios (dualidade), mas, ao mesmo tempo, criar um sistema simples, racional e praticável o bastante (uniformidade) para justificar o abandono do sistema atual, que existe há anos e que, bem ou mal, funciona.

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De fato, “a repartição de competências e de receitas tributárias configura um dos pilares da autonomia dos entes” (STF, RE 591033, DJ 24/02/11), pois consagra a descentralização e ”divisão de centros de poder” no País (ADI 4228, DJ 10/08/18). Por isso, nem mesmo via emenda pode o Congresso Nacional relativizá-las “ou afastá-las”, o que ofenderia “o pacto federativo” e seria “tendente a aboli-lo”, o que é vedado (ADI 926, DJ 06/05/94).

Em nosso sistema, competência tributária é o poder do ente para instituir seu tributo por lei própria. Ela não se confunde com a capacidade administrativa de arrecadá-lo ou alterar-lhe a alíquota, que é delegável, sem que isso o torne de competência de quem a exerce, ao invés do órgão legislativo que o cria. Só há competência tributária se o ente pode criar / modificar o tributo quando conveniente[5].

No caso, há indicativos de que Estados e Municípios podem perder poder em matéria de consumo, pelo prisma tanto da competência quanto da capacidade tributária.

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A teor da EC, a instituição e a estrutura do IBS serão definidas junto com as da CBS, por lei complementar de iniciativa federal, editada pelo Congresso Nacional, ou seja, por veículo e órgão legislativos da União. Assim, ela passará a deter competência para dispor sobre estrutura do tributo, o que, hoje, os entes fazem por leis próprias. Segundo os idealizadores da EC, isso seria possível por tratar-se de competência compartilhada, a permitir que tributos “distintos” sejam criados por uma lei complementar comum, de caráter “nacional”. Todavia, nacionais são leis complementares de normas gerais para regular a competência dos entes, que a exercem por leis próprias, enquanto as que criam tributo são leis instituidoras, mas sujeitas a rito mais rigoroso, pela excepcionalidade do gravame (CF, art. 148 e 154, I).

Além disso, inúmeras prerrogativas inerentes à capacidade administrativa, hoje exercidas pelos entes sozinhos, serão centralizadas no CG. Este, por sua vez, ficará sujeito à União, ao ter de entrar em acordo com ela, nos temas submetidos a harmonização. Estados e Municípios, sozinhos, poderão apenas determinar suas alíquotas-padrão e fiscalizar e lançar o IBS, mas, neste caso, sempre dentro das diretrizes do CG.

Em âmbito infraconstitucional, os PLPs acentuam o risco de centralização, pois, ao preverem estrutura idêntica, evidenciaram a unicidade de fato do IBS/CBS. É dizer: não serão dois, mas um único tributo, cuja dualidade operará não na competência (legislativa), mas na destinação dos recursos e em frações da capacidade de administrar o tributo.

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Além disso, apesar de a representação paritária dos Estados e Municípios sugerir certa independência do CG, o âmbito para atuação autônoma do órgão será estreito, pois todos os temas comuns ao IBS e CBS dependerão de atos conjuntos com a União. Assim, ele só agirá sozinho em relação a temas procedimentais secundários.

Essa harmonização ocorrerá, conforme a matéria (infralegal/administrativa e/ou jurídica), nos chamados Comitê das Administrações Tributárias e Fórum das Procuradorias. Ainda que a União e o CG tenham 50% dos votos cada, não haverá verdadeiro equilíbrio de forças. Afinal, o interesse da União tende a ser linear, enquanto os dos representantes do CG não o serão, pois terá de haver representação satisfatória dos Estados do Centro-Sul e do Norte/Nordeste, bem como dos grandes e pequenos Municípios. Assim, a União será um bloco monolítico (50%), enquanto o CG se apresentará como um conjunto de até quatro sub-blocos (12,5%) com interesses conflitantes. Logo, bastará à União cooptar um desses blocos para exercer liderança e fazer-se prevalecer nas discussões, como ela já faz outras esferas. Para piorar, os PLPs sequer preveem o tipo de maioria a ser observada nessas votações, o que ficou para um futuro regimento, apesar do seu impacto sobre a Federação.

Portanto, a prevalecerem os PLPs, a estruturação do sistema previsto na EC pode reduzir perigosamente a autonomia dos Estados e Municípios, a ponto de redefinir, para pior, a qualidade da Federação brasileira (retrocesso), seja porque eles perderiam o poder que hoje possuem, seja, ainda, porque serão duplamente inferiorizados, ao ficar abaixo de um CG central, que, por sua vez, pouco decidirá sem o amém da União.

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Nesse cenário, embora ainda não se possa afirmar que a seja inconstitucional, pode ocorrer um processo de inconstitucionalização da reforma tributária, caso ela reduza (ao invés de manter ou aumentar) a capacidade dos Estados e Municípios de custear suas atividades e serviços sem dependerem da União, o que exigiria a rediscussão do modelo, com os custos daí decorrentes para o País.

[1] SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto B.; e CARRAZZA, Roque A. A reforma tributária que o Brasil precisa, parte 1. CONJUR, 08/11/2019.

[2] Vide dados do Tesouro Nacional citados no parecer de admissibilidade da PEC 45/2019 apresentado pelo Dep. Fed. João Roma à CCJ/CD.

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[3] Vide, p. ex., Substitutivo do Deputado Aguinaldo Ribeiro à PEC 45/2019, na Câmara dos Deputados (fase I).

[4] SILVA MARTINS, Ives G.; SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto; e CARRAZZA, Roque. Considerações necessárias sobre a reforma tributária. Portal Tributário, 03/07/2023.

[5] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 1997.

A EC 132/2023 previu a substituição do ICMS, ISS, PIS e COFINS por um novo sistema de tributação do consumo, mais simples, racional e alinhado à prática internacional.

Nesse sistema, a tributação geral do consumo será dual, com um Imposto (subnacional) e da Contribuição (federal) sobre Bens e Serviços, IBS e CBS, instituídos por lei complementar e praticamente idênticos entre si. Eles serão administrados pelo Comitê Gestor do IBS (CG) e pelo fisco federal, cabendo aos entes federados definir suas alíquotas padrão. Haverá, ainda, um Imposto Seletivo para desestimular consumos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, que coexistirá com o IPI, mantido apenas para produtos da ZFM.

A dualidade substitui a ideia original de um único IBS compartilhado entre os entes, que, como alertamos desde os primórdios da PEC 45/2019[1], seria inconstitucional, pois suprimir o ICMS (88% da arrecadação estadual) e o ISS (43% da municipal)[2], deixando o novo imposto a critério do Congresso Nacional, afetaria a autonomia financeira dos entes[3].

Contudo, após a alteração, apontamos para o risco de essa dualidade ser apenas formal, sem garantir um nível satisfatório de autonomia aos entes[4], o que, agora, é confirmado pelos recentes PLPs 68 e 108/2024. Afinal, segundo os PLPs, os entes serão subalternos ao CG, que, por sua vez, ficará na dependência da União quanto à estrutura comum do IBS/CBS. E isso o s enfraqueceria, amesquinhando a Federação, o que é vedado.

De fato, a EC teve o propósito de recuperar a racionalidade do sistema tributário. Assim, a dualidade do IBS/CBS precisa ser estruturada de modo a atender à simplicidade, transparência, justiça e cooperação (CF, art. 145, §3º). E isso implica que, além de duais, os tributos têm de ser uniformes, tanto em seus aspectos legais (mesmas regras de incidência) quanto administrativos, com regulamentos, interpretações, obrigações e procedimentos harmônicos (CF, arts. 149-B, art. 156-B e 195, §16).

Consequentemente, a lei complementar deve dispor sobre a matéria de modo a garantir suficiente autonomia dos Estados e Municípios (dualidade), mas, ao mesmo tempo, criar um sistema simples, racional e praticável o bastante (uniformidade) para justificar o abandono do sistema atual, que existe há anos e que, bem ou mal, funciona.

De fato, “a repartição de competências e de receitas tributárias configura um dos pilares da autonomia dos entes” (STF, RE 591033, DJ 24/02/11), pois consagra a descentralização e ”divisão de centros de poder” no País (ADI 4228, DJ 10/08/18). Por isso, nem mesmo via emenda pode o Congresso Nacional relativizá-las “ou afastá-las”, o que ofenderia “o pacto federativo” e seria “tendente a aboli-lo”, o que é vedado (ADI 926, DJ 06/05/94).

Em nosso sistema, competência tributária é o poder do ente para instituir seu tributo por lei própria. Ela não se confunde com a capacidade administrativa de arrecadá-lo ou alterar-lhe a alíquota, que é delegável, sem que isso o torne de competência de quem a exerce, ao invés do órgão legislativo que o cria. Só há competência tributária se o ente pode criar / modificar o tributo quando conveniente[5].

No caso, há indicativos de que Estados e Municípios podem perder poder em matéria de consumo, pelo prisma tanto da competência quanto da capacidade tributária.

A teor da EC, a instituição e a estrutura do IBS serão definidas junto com as da CBS, por lei complementar de iniciativa federal, editada pelo Congresso Nacional, ou seja, por veículo e órgão legislativos da União. Assim, ela passará a deter competência para dispor sobre estrutura do tributo, o que, hoje, os entes fazem por leis próprias. Segundo os idealizadores da EC, isso seria possível por tratar-se de competência compartilhada, a permitir que tributos “distintos” sejam criados por uma lei complementar comum, de caráter “nacional”. Todavia, nacionais são leis complementares de normas gerais para regular a competência dos entes, que a exercem por leis próprias, enquanto as que criam tributo são leis instituidoras, mas sujeitas a rito mais rigoroso, pela excepcionalidade do gravame (CF, art. 148 e 154, I).

Além disso, inúmeras prerrogativas inerentes à capacidade administrativa, hoje exercidas pelos entes sozinhos, serão centralizadas no CG. Este, por sua vez, ficará sujeito à União, ao ter de entrar em acordo com ela, nos temas submetidos a harmonização. Estados e Municípios, sozinhos, poderão apenas determinar suas alíquotas-padrão e fiscalizar e lançar o IBS, mas, neste caso, sempre dentro das diretrizes do CG.

Em âmbito infraconstitucional, os PLPs acentuam o risco de centralização, pois, ao preverem estrutura idêntica, evidenciaram a unicidade de fato do IBS/CBS. É dizer: não serão dois, mas um único tributo, cuja dualidade operará não na competência (legislativa), mas na destinação dos recursos e em frações da capacidade de administrar o tributo.

Além disso, apesar de a representação paritária dos Estados e Municípios sugerir certa independência do CG, o âmbito para atuação autônoma do órgão será estreito, pois todos os temas comuns ao IBS e CBS dependerão de atos conjuntos com a União. Assim, ele só agirá sozinho em relação a temas procedimentais secundários.

Essa harmonização ocorrerá, conforme a matéria (infralegal/administrativa e/ou jurídica), nos chamados Comitê das Administrações Tributárias e Fórum das Procuradorias. Ainda que a União e o CG tenham 50% dos votos cada, não haverá verdadeiro equilíbrio de forças. Afinal, o interesse da União tende a ser linear, enquanto os dos representantes do CG não o serão, pois terá de haver representação satisfatória dos Estados do Centro-Sul e do Norte/Nordeste, bem como dos grandes e pequenos Municípios. Assim, a União será um bloco monolítico (50%), enquanto o CG se apresentará como um conjunto de até quatro sub-blocos (12,5%) com interesses conflitantes. Logo, bastará à União cooptar um desses blocos para exercer liderança e fazer-se prevalecer nas discussões, como ela já faz outras esferas. Para piorar, os PLPs sequer preveem o tipo de maioria a ser observada nessas votações, o que ficou para um futuro regimento, apesar do seu impacto sobre a Federação.

Portanto, a prevalecerem os PLPs, a estruturação do sistema previsto na EC pode reduzir perigosamente a autonomia dos Estados e Municípios, a ponto de redefinir, para pior, a qualidade da Federação brasileira (retrocesso), seja porque eles perderiam o poder que hoje possuem, seja, ainda, porque serão duplamente inferiorizados, ao ficar abaixo de um CG central, que, por sua vez, pouco decidirá sem o amém da União.

Nesse cenário, embora ainda não se possa afirmar que a seja inconstitucional, pode ocorrer um processo de inconstitucionalização da reforma tributária, caso ela reduza (ao invés de manter ou aumentar) a capacidade dos Estados e Municípios de custear suas atividades e serviços sem dependerem da União, o que exigiria a rediscussão do modelo, com os custos daí decorrentes para o País.

[1] SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto B.; e CARRAZZA, Roque A. A reforma tributária que o Brasil precisa, parte 1. CONJUR, 08/11/2019.

[2] Vide dados do Tesouro Nacional citados no parecer de admissibilidade da PEC 45/2019 apresentado pelo Dep. Fed. João Roma à CCJ/CD.

[3] Vide, p. ex., Substitutivo do Deputado Aguinaldo Ribeiro à PEC 45/2019, na Câmara dos Deputados (fase I).

[4] SILVA MARTINS, Ives G.; SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto; e CARRAZZA, Roque. Considerações necessárias sobre a reforma tributária. Portal Tributário, 03/07/2023.

[5] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 1997.

A EC 132/2023 previu a substituição do ICMS, ISS, PIS e COFINS por um novo sistema de tributação do consumo, mais simples, racional e alinhado à prática internacional.

Nesse sistema, a tributação geral do consumo será dual, com um Imposto (subnacional) e da Contribuição (federal) sobre Bens e Serviços, IBS e CBS, instituídos por lei complementar e praticamente idênticos entre si. Eles serão administrados pelo Comitê Gestor do IBS (CG) e pelo fisco federal, cabendo aos entes federados definir suas alíquotas padrão. Haverá, ainda, um Imposto Seletivo para desestimular consumos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, que coexistirá com o IPI, mantido apenas para produtos da ZFM.

A dualidade substitui a ideia original de um único IBS compartilhado entre os entes, que, como alertamos desde os primórdios da PEC 45/2019[1], seria inconstitucional, pois suprimir o ICMS (88% da arrecadação estadual) e o ISS (43% da municipal)[2], deixando o novo imposto a critério do Congresso Nacional, afetaria a autonomia financeira dos entes[3].

Contudo, após a alteração, apontamos para o risco de essa dualidade ser apenas formal, sem garantir um nível satisfatório de autonomia aos entes[4], o que, agora, é confirmado pelos recentes PLPs 68 e 108/2024. Afinal, segundo os PLPs, os entes serão subalternos ao CG, que, por sua vez, ficará na dependência da União quanto à estrutura comum do IBS/CBS. E isso o s enfraqueceria, amesquinhando a Federação, o que é vedado.

De fato, a EC teve o propósito de recuperar a racionalidade do sistema tributário. Assim, a dualidade do IBS/CBS precisa ser estruturada de modo a atender à simplicidade, transparência, justiça e cooperação (CF, art. 145, §3º). E isso implica que, além de duais, os tributos têm de ser uniformes, tanto em seus aspectos legais (mesmas regras de incidência) quanto administrativos, com regulamentos, interpretações, obrigações e procedimentos harmônicos (CF, arts. 149-B, art. 156-B e 195, §16).

Consequentemente, a lei complementar deve dispor sobre a matéria de modo a garantir suficiente autonomia dos Estados e Municípios (dualidade), mas, ao mesmo tempo, criar um sistema simples, racional e praticável o bastante (uniformidade) para justificar o abandono do sistema atual, que existe há anos e que, bem ou mal, funciona.

De fato, “a repartição de competências e de receitas tributárias configura um dos pilares da autonomia dos entes” (STF, RE 591033, DJ 24/02/11), pois consagra a descentralização e ”divisão de centros de poder” no País (ADI 4228, DJ 10/08/18). Por isso, nem mesmo via emenda pode o Congresso Nacional relativizá-las “ou afastá-las”, o que ofenderia “o pacto federativo” e seria “tendente a aboli-lo”, o que é vedado (ADI 926, DJ 06/05/94).

Em nosso sistema, competência tributária é o poder do ente para instituir seu tributo por lei própria. Ela não se confunde com a capacidade administrativa de arrecadá-lo ou alterar-lhe a alíquota, que é delegável, sem que isso o torne de competência de quem a exerce, ao invés do órgão legislativo que o cria. Só há competência tributária se o ente pode criar / modificar o tributo quando conveniente[5].

No caso, há indicativos de que Estados e Municípios podem perder poder em matéria de consumo, pelo prisma tanto da competência quanto da capacidade tributária.

A teor da EC, a instituição e a estrutura do IBS serão definidas junto com as da CBS, por lei complementar de iniciativa federal, editada pelo Congresso Nacional, ou seja, por veículo e órgão legislativos da União. Assim, ela passará a deter competência para dispor sobre estrutura do tributo, o que, hoje, os entes fazem por leis próprias. Segundo os idealizadores da EC, isso seria possível por tratar-se de competência compartilhada, a permitir que tributos “distintos” sejam criados por uma lei complementar comum, de caráter “nacional”. Todavia, nacionais são leis complementares de normas gerais para regular a competência dos entes, que a exercem por leis próprias, enquanto as que criam tributo são leis instituidoras, mas sujeitas a rito mais rigoroso, pela excepcionalidade do gravame (CF, art. 148 e 154, I).

Além disso, inúmeras prerrogativas inerentes à capacidade administrativa, hoje exercidas pelos entes sozinhos, serão centralizadas no CG. Este, por sua vez, ficará sujeito à União, ao ter de entrar em acordo com ela, nos temas submetidos a harmonização. Estados e Municípios, sozinhos, poderão apenas determinar suas alíquotas-padrão e fiscalizar e lançar o IBS, mas, neste caso, sempre dentro das diretrizes do CG.

Em âmbito infraconstitucional, os PLPs acentuam o risco de centralização, pois, ao preverem estrutura idêntica, evidenciaram a unicidade de fato do IBS/CBS. É dizer: não serão dois, mas um único tributo, cuja dualidade operará não na competência (legislativa), mas na destinação dos recursos e em frações da capacidade de administrar o tributo.

Além disso, apesar de a representação paritária dos Estados e Municípios sugerir certa independência do CG, o âmbito para atuação autônoma do órgão será estreito, pois todos os temas comuns ao IBS e CBS dependerão de atos conjuntos com a União. Assim, ele só agirá sozinho em relação a temas procedimentais secundários.

Essa harmonização ocorrerá, conforme a matéria (infralegal/administrativa e/ou jurídica), nos chamados Comitê das Administrações Tributárias e Fórum das Procuradorias. Ainda que a União e o CG tenham 50% dos votos cada, não haverá verdadeiro equilíbrio de forças. Afinal, o interesse da União tende a ser linear, enquanto os dos representantes do CG não o serão, pois terá de haver representação satisfatória dos Estados do Centro-Sul e do Norte/Nordeste, bem como dos grandes e pequenos Municípios. Assim, a União será um bloco monolítico (50%), enquanto o CG se apresentará como um conjunto de até quatro sub-blocos (12,5%) com interesses conflitantes. Logo, bastará à União cooptar um desses blocos para exercer liderança e fazer-se prevalecer nas discussões, como ela já faz outras esferas. Para piorar, os PLPs sequer preveem o tipo de maioria a ser observada nessas votações, o que ficou para um futuro regimento, apesar do seu impacto sobre a Federação.

Portanto, a prevalecerem os PLPs, a estruturação do sistema previsto na EC pode reduzir perigosamente a autonomia dos Estados e Municípios, a ponto de redefinir, para pior, a qualidade da Federação brasileira (retrocesso), seja porque eles perderiam o poder que hoje possuem, seja, ainda, porque serão duplamente inferiorizados, ao ficar abaixo de um CG central, que, por sua vez, pouco decidirá sem o amém da União.

Nesse cenário, embora ainda não se possa afirmar que a seja inconstitucional, pode ocorrer um processo de inconstitucionalização da reforma tributária, caso ela reduza (ao invés de manter ou aumentar) a capacidade dos Estados e Municípios de custear suas atividades e serviços sem dependerem da União, o que exigiria a rediscussão do modelo, com os custos daí decorrentes para o País.

[1] SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto B.; e CARRAZZA, Roque A. A reforma tributária que o Brasil precisa, parte 1. CONJUR, 08/11/2019.

[2] Vide dados do Tesouro Nacional citados no parecer de admissibilidade da PEC 45/2019 apresentado pelo Dep. Fed. João Roma à CCJ/CD.

[3] Vide, p. ex., Substitutivo do Deputado Aguinaldo Ribeiro à PEC 45/2019, na Câmara dos Deputados (fase I).

[4] SILVA MARTINS, Ives G.; SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto; e CARRAZZA, Roque. Considerações necessárias sobre a reforma tributária. Portal Tributário, 03/07/2023.

[5] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 1997.

A EC 132/2023 previu a substituição do ICMS, ISS, PIS e COFINS por um novo sistema de tributação do consumo, mais simples, racional e alinhado à prática internacional.

Nesse sistema, a tributação geral do consumo será dual, com um Imposto (subnacional) e da Contribuição (federal) sobre Bens e Serviços, IBS e CBS, instituídos por lei complementar e praticamente idênticos entre si. Eles serão administrados pelo Comitê Gestor do IBS (CG) e pelo fisco federal, cabendo aos entes federados definir suas alíquotas padrão. Haverá, ainda, um Imposto Seletivo para desestimular consumos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, que coexistirá com o IPI, mantido apenas para produtos da ZFM.

A dualidade substitui a ideia original de um único IBS compartilhado entre os entes, que, como alertamos desde os primórdios da PEC 45/2019[1], seria inconstitucional, pois suprimir o ICMS (88% da arrecadação estadual) e o ISS (43% da municipal)[2], deixando o novo imposto a critério do Congresso Nacional, afetaria a autonomia financeira dos entes[3].

Contudo, após a alteração, apontamos para o risco de essa dualidade ser apenas formal, sem garantir um nível satisfatório de autonomia aos entes[4], o que, agora, é confirmado pelos recentes PLPs 68 e 108/2024. Afinal, segundo os PLPs, os entes serão subalternos ao CG, que, por sua vez, ficará na dependência da União quanto à estrutura comum do IBS/CBS. E isso o s enfraqueceria, amesquinhando a Federação, o que é vedado.

De fato, a EC teve o propósito de recuperar a racionalidade do sistema tributário. Assim, a dualidade do IBS/CBS precisa ser estruturada de modo a atender à simplicidade, transparência, justiça e cooperação (CF, art. 145, §3º). E isso implica que, além de duais, os tributos têm de ser uniformes, tanto em seus aspectos legais (mesmas regras de incidência) quanto administrativos, com regulamentos, interpretações, obrigações e procedimentos harmônicos (CF, arts. 149-B, art. 156-B e 195, §16).

Consequentemente, a lei complementar deve dispor sobre a matéria de modo a garantir suficiente autonomia dos Estados e Municípios (dualidade), mas, ao mesmo tempo, criar um sistema simples, racional e praticável o bastante (uniformidade) para justificar o abandono do sistema atual, que existe há anos e que, bem ou mal, funciona.

De fato, “a repartição de competências e de receitas tributárias configura um dos pilares da autonomia dos entes” (STF, RE 591033, DJ 24/02/11), pois consagra a descentralização e ”divisão de centros de poder” no País (ADI 4228, DJ 10/08/18). Por isso, nem mesmo via emenda pode o Congresso Nacional relativizá-las “ou afastá-las”, o que ofenderia “o pacto federativo” e seria “tendente a aboli-lo”, o que é vedado (ADI 926, DJ 06/05/94).

Em nosso sistema, competência tributária é o poder do ente para instituir seu tributo por lei própria. Ela não se confunde com a capacidade administrativa de arrecadá-lo ou alterar-lhe a alíquota, que é delegável, sem que isso o torne de competência de quem a exerce, ao invés do órgão legislativo que o cria. Só há competência tributária se o ente pode criar / modificar o tributo quando conveniente[5].

No caso, há indicativos de que Estados e Municípios podem perder poder em matéria de consumo, pelo prisma tanto da competência quanto da capacidade tributária.

A teor da EC, a instituição e a estrutura do IBS serão definidas junto com as da CBS, por lei complementar de iniciativa federal, editada pelo Congresso Nacional, ou seja, por veículo e órgão legislativos da União. Assim, ela passará a deter competência para dispor sobre estrutura do tributo, o que, hoje, os entes fazem por leis próprias. Segundo os idealizadores da EC, isso seria possível por tratar-se de competência compartilhada, a permitir que tributos “distintos” sejam criados por uma lei complementar comum, de caráter “nacional”. Todavia, nacionais são leis complementares de normas gerais para regular a competência dos entes, que a exercem por leis próprias, enquanto as que criam tributo são leis instituidoras, mas sujeitas a rito mais rigoroso, pela excepcionalidade do gravame (CF, art. 148 e 154, I).

Além disso, inúmeras prerrogativas inerentes à capacidade administrativa, hoje exercidas pelos entes sozinhos, serão centralizadas no CG. Este, por sua vez, ficará sujeito à União, ao ter de entrar em acordo com ela, nos temas submetidos a harmonização. Estados e Municípios, sozinhos, poderão apenas determinar suas alíquotas-padrão e fiscalizar e lançar o IBS, mas, neste caso, sempre dentro das diretrizes do CG.

Em âmbito infraconstitucional, os PLPs acentuam o risco de centralização, pois, ao preverem estrutura idêntica, evidenciaram a unicidade de fato do IBS/CBS. É dizer: não serão dois, mas um único tributo, cuja dualidade operará não na competência (legislativa), mas na destinação dos recursos e em frações da capacidade de administrar o tributo.

Além disso, apesar de a representação paritária dos Estados e Municípios sugerir certa independência do CG, o âmbito para atuação autônoma do órgão será estreito, pois todos os temas comuns ao IBS e CBS dependerão de atos conjuntos com a União. Assim, ele só agirá sozinho em relação a temas procedimentais secundários.

Essa harmonização ocorrerá, conforme a matéria (infralegal/administrativa e/ou jurídica), nos chamados Comitê das Administrações Tributárias e Fórum das Procuradorias. Ainda que a União e o CG tenham 50% dos votos cada, não haverá verdadeiro equilíbrio de forças. Afinal, o interesse da União tende a ser linear, enquanto os dos representantes do CG não o serão, pois terá de haver representação satisfatória dos Estados do Centro-Sul e do Norte/Nordeste, bem como dos grandes e pequenos Municípios. Assim, a União será um bloco monolítico (50%), enquanto o CG se apresentará como um conjunto de até quatro sub-blocos (12,5%) com interesses conflitantes. Logo, bastará à União cooptar um desses blocos para exercer liderança e fazer-se prevalecer nas discussões, como ela já faz outras esferas. Para piorar, os PLPs sequer preveem o tipo de maioria a ser observada nessas votações, o que ficou para um futuro regimento, apesar do seu impacto sobre a Federação.

Portanto, a prevalecerem os PLPs, a estruturação do sistema previsto na EC pode reduzir perigosamente a autonomia dos Estados e Municípios, a ponto de redefinir, para pior, a qualidade da Federação brasileira (retrocesso), seja porque eles perderiam o poder que hoje possuem, seja, ainda, porque serão duplamente inferiorizados, ao ficar abaixo de um CG central, que, por sua vez, pouco decidirá sem o amém da União.

Nesse cenário, embora ainda não se possa afirmar que a seja inconstitucional, pode ocorrer um processo de inconstitucionalização da reforma tributária, caso ela reduza (ao invés de manter ou aumentar) a capacidade dos Estados e Municípios de custear suas atividades e serviços sem dependerem da União, o que exigiria a rediscussão do modelo, com os custos daí decorrentes para o País.

[1] SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto B.; e CARRAZZA, Roque A. A reforma tributária que o Brasil precisa, parte 1. CONJUR, 08/11/2019.

[2] Vide dados do Tesouro Nacional citados no parecer de admissibilidade da PEC 45/2019 apresentado pelo Dep. Fed. João Roma à CCJ/CD.

[3] Vide, p. ex., Substitutivo do Deputado Aguinaldo Ribeiro à PEC 45/2019, na Câmara dos Deputados (fase I).

[4] SILVA MARTINS, Ives G.; SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto; e CARRAZZA, Roque. Considerações necessárias sobre a reforma tributária. Portal Tributário, 03/07/2023.

[5] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 1997.

Opinião por Hamilton Dias de Souza
Humberto Ávila
Ives Gandra da Silva Martins
Roque Antônio Carrazza

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