Histórias reais contadas através de filmes e séries são fórmulas certas de sucesso e têm despertado cada vez mais o interesse do público. Mas, afinal, quais são os cuidados jurídicos necessários e até onde vai o compromisso com a realidade?
Recentemente, veio à tona uma polêmica envolvendo o ex-jogador da Liga de Futebol Americano (NFL) Michael Oher, que teve a sua vida contada no emblemático filme “Um Sonho Possível” (2009) que rendeu uma bilheteria milionária e um Oscar para a atriz Sandra Bullock.
Após quase 15 anos do lançamento do filme, Michael vem a público questionar a veracidade da história que foi contada [1], e procura a justiça para reivindicar parte dos rendimentos auferidos com o uso de sua imagem e encerrar a tutela exercida por Sean Tuohy e Leigh Anne Tuohy.
Sem entrar nos detalhes fáticos dessa história, o que o interessa juridicamente, pauta para a presente reflexão, é analisarmos até onde uma história contada através de um produto audiovisual tem o compromisso com a verdade? A pessoa retratada precisa autorizar? E quem ganha o quê com isso?
O direito brasileiro protege a imagem dentro da cadeia de direitos ligados à personalidade. Sendo assim, em princípio, todo uso de imagem, voz e dados de alguém precisa ser previamente autorizado. E aqui, quando falamos de “usar a imagem” não estamos nos limitando ao uso da biometria facial propriamente dita, mas sim a personalidade como um todo, que, conjugada com a intimidade e privacidade, compõem a proteção jurídica em torno da pessoa humana.
Acontece que, como todo direito, seu exercício não é absoluto e deve respeitar as interações limítrofes com outros direitos. Nesse caso, se por um lado temos o direito de intimidade, privacidade e demais direitos ligados à personalidade como a proteção da imagem, por outro lado há o direito da liberdade de expressão daqueles que criam e produzem esse tipo de conteúdo e o próprio direito da coletividade de ter acesso à informação.
Nessa linha de constante ponderação de direitos, há que se analisar as circunstâncias de cada caso concreto. A obra audiovisual constitui um documentário e tem o compromisso de retratar a realidade, ou se trata de uma obra de ficção inspirada em fatos reais? Essa escolha está clara no disclaimer inicial da obra? Há algo no conteúdo da obra que, em algum aspecto, afronta a dignidade da pessoa humana envolvida?
Não há resposta certa nem fórmula de garantia. Alguns cuidados preventivos, contudo, são recomendáveis, tais como: uso de fontes regulares e seguras para consulta de informações e acontecimentos; alterações no escopo da obra e na descrição de personagens visando desvincular eventual associação direta com determinada pessoa (no caso de obras que, por definição artística, não têm a intenção de refletir a realidade tal como ocorre com um documentário, por exemplo); revisões no roteiro para evitar o cometimento de ofensas à honra ou qualquer outra irregularidade desnecessária e que nada tem a contribuir artisticamente com a obra; dentre outras.
Essas são algumas das possíveis orientações que uma assessoria jurídica especializada pode e deve apontar, sempre em conjunto e atenta às demandas da direção artística e da produção da respectiva obra audiovisual. Afinal, o objetivo em comum não é o de coibir nem tolher um conteúdo, mas sim torná-lo o mais seguro e regular possível sem, contudo, comprometer a sua essência.
E no caso de Michael Oher e do filme “Um Sonho Possível”? Para além de todo o importante debate sobre a forma como sua carreira foi conduzida e de como ele foi pessoalmente tratado pelo casal Sean e Leigh, sob a ótica exclusiva da produção do filme em si, cabe a reflexão sobre a importância de uma boa pesquisa e do zelo prévio necessários.
Ao contar através de determinada obra audiovisual uma versão dos fatos tão destoante da versão da própria pessoa retratada, cuja vinculação não só foi explícita, mas amplamente explorada; a produção do filme assumiu um risco.
Mesmo norteado pelo entendimento de dispensa da prévia autorização com base na liberdade de expressão artística, o fato é que filmes constroem narrativas que afetam pessoas e contribuem para importantes debates e reflexões na sociedade. E se as matérias-primas forem vidas reais, uma dose extra de cuidado se faz necessária. Criar conteúdo sobre histórias reais afeta vidas e demanda liberdade responsável e bem orientada.
*Carol Bassin, advogada especializada em propriedade intelectual, legislação de incentivo e proteção autoral. Consultora jurídica e business affair da agência Condé+ e membro efetivo da Comissão de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB-RJ
Notas
[1] Disponível em: https://www.estadao.com.br/emais/gente/um-sonho-possivel-familia-processada-por-jogador-inspirou-filme-rebate-acusacoes-nprec/