Hodiernamente temos testemunhado um aumento substancial de dissensões ideológicas no Brasil e no mundo, o que tem desembocado em uma espraiada animosidade nos campos social, político, econômico e religioso.
Não há dúvidas, de outra linha, que a velocidade da difusão de informações propiciada pela rede mundial de computadores e a formação de tribos digitais que se agregam a dados grupos desemboca em visões cada vez mais maniqueístas de parte a parte, contribuindo para o aumento da temperatura dos conflitos que se multiplicam.
Em tal contexto tem ganhado latitude a visão de que a livre manifestação do pensamento constitui algo a ser cerceado pelos potenciais perigos que representa para uma ordem democrática idealizada, discurso esse que tem sido capturado por setores da sociedade e da ordem política com o escopo de introduzir elementos jurídicos de controle estatal no âmbito da livre circulação das ideias.
Malgrado os óbvios perigos que o cerceio à livre manifestação do pensamento representa para a própria democracia, seus defensores paradoxalmente se utilizam do mesmo conceito para a proposição de uma agenda totalitária de controle estatal que se apresenta como inclusiva e supostamente repleta de boas intenções.
O fato é que o cerceio à livre manifestação do pensamento é estratagema comum adotado por governos e regimes totalitários, sendo historicamente vinculada a ditaduras que não suportam o dissenso no tocante a expansão de suas agendas e de seu ideário.
Forçoso reconhecer, de outra banda, que própria representatividade ínsita aos governos democráticos pressupõe que os cidadãos sejam relevantes atores em um processo de controle das atividades públicas, o fazendo através da fiscalização do exercício do escorreito desempenho das funções estatais, as quais devem se afinar ao disposto na Constituição Federal e nas leis.
E assim é que a crítica pública, agora potencializada pela rede mundial de computadores, se apresenta como relevante instrumento de participação democrática, já que confere à arena do debate cívico o substantivo poder para a potencialização ou deterioração de carreiras e pautas políticas, reduzindo sobremaneira o poder da mídia estatal e da mídia tradicional, que antes figuravam sobranceiras como monopolísticas na gestão da opinião pública, antes confundida com a opinião publicada.
Nesse cenário, para além dos indubitáveis perigos que a introdução de agências governamentais de controle da manifestação de pensamento representa para a democracia de uma maneira geral, seria ainda mais ilusória a possibilidade de manutenção de uma mínima probidade governamental acaso efetivamente aprovadas as pautas de controle prévio de circulação das opiniões em circulação.
Com efeito, é cediço que governos patrimonialistas e clientelistas agem na clandestinidade, tendo sempre por escopo tornar opacas eventuais atividades ilícitas e acordos espúrios com determinados setores da sociedade.
Bem por isso que a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção estabelece que os Estados Partes deverão adotar medidas para garantir o acesso eficaz do público à informação, bem como proteger a liberdade de buscar, receber, publicar e especialmente difundir eventual informação relativa à corrupção.
De igual modo, a própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou em sua declaração de princípios sobre a liberdade de expressão que o referido direito inclui a liberdade de buscar, receber e divulgar informações e ideias, sem consideração de fronteiras e por qualquer meio de transmissão. Está explicito, outrossim, que a censura prévia e as restrições à livre circulação de ideias e opiniões, assim como a imposição arbitrária de informação e a criação de obstáculos ao livre fluxo de informação, violam o direito à liberdade de expressão.
Na mesma esteira, apregoa-se que a associação obrigatória ou a exigência de títulos para o exercício da atividade jornalística constituem uma restrição ilegítima à liberdade de expressão, motivo pelo qual a atividade jornalística deve reger-se por condutas éticas, as quais, em nenhum caso, podem ser impostas pelos Estados.
Não bastasse tal arcabouço sufragado na ordem internacional e chancelado no Brasil, o fato é que a própria Constituição Federal também arrola a livre manifestação de pensamento entre os direitos fundamentais, além de assegurar a livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, estabelecendo-se apenas a possibilidade de direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem, acaso o exercício dos referidos direitos tenham sido exercidos de forma irregular.
No mais, para além da potencial responsabilização civil, ainda é assegurada por lei a possível responsabilização criminal do infrator, acaso o irregular exercício da liberdade de pensamento tenha vulnerado o patrimônio moral de alguém ou coloque em perigo a ordem pública, estando previstos inúmeros crimes contra honra, tais como a injúria, calúnia e difamação, além de crimes que ponham em perigo a paz pública, como a incitação ao crime e a apologia ao crime ou criminoso.
Daí porque, falaciosa a versão que se vê propalada no sentido de que a manifestação de pensamento não estaria sujeita a nenhum tipo de controle, já que a potencial responsabilização cível e criminal, inequívocas formas de controle a posteriori, sempre estiveram presentes no manancial jurídico pátrio, sendo impensável se cogitar que um controle prévio, consubstanciado em autêntica censura, pudesse ser colocado ao debate público, tal qual hoje se nos apresenta.
Urge, pois, que a proteção da República e de uma autêntica democracia não se vejam embaladas em uma retórica demagógica destinada a solapar suas bases fundantes, estabelecendo-se um controle prévio de circulação de ideias e informações que longe de representar avanço no combate às chamadas "fake news", apenas inauguraria uma era totalitária que talvez não possa no futuro ser revertida.
*Leonardo Bellini de Castro, promotor de Justiça. Mestre em Direito-USP