A famosa expressão “direito administrativo do medo” foi consagrada no título do livro de Rodrigo Valgas dos Santos. Em obra exemplar, o autor fala sobre o medo no processo de decisão dentro da estrutura da Administração Pública, responsável por gerar uma fuga da responsabilização dos agentes públicos por parte dos órgãos externos de controle, causando o fenômeno do “apagão das canetas”. Em verdade, a disfuncionalidade de diversos órgãos de controle quanto à compreensão de suas atribuições e do próprio direito administrativo acabou por gerar uma paralisia decisória.
Estaríamos agora diante de um “direito administrativo da calamidade”? Durante a pandemia de COVID-19, deu-se a edição de atos normativos em níveis federal, estaduais e municipais buscando garantir uma agilidade no combate à situação que ali se enfrentava. Tais normas tinham eficácia limitada no tempo: com o fim da decretação do estado de calamidade, deixaram de valer. Em razão da triste tragédia climática que acomete o Rio Grande do Sul, novas medidas precisaram ser tomadas – e, dessa vez, com aperfeiçoamentos dos mecanismos utilizados naquela oportunidade.
O governo federal publicou, no dia 17/05/2024, a Medida Provisória nº 1221, que dispõe sobre medidas excepcionais de contratações públicas destinadas ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública. Embora seja evidente que o texto seja dirigido à situação por que passa o Rio Grande do Sul, o art. 1º deixa clara sua aplicação também para outros casos de decretação de calamidade pública, não estando restrita ao momento atual. Além disso, o texto é expresso ao garantir a aplicabilidade das regras diferenciadas apenas para as entidades regidas pela lei geral de licitações, excluindo, portanto, as empresas estatais (empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias), que são regidas pela lei nº 13.303/2016.
São muitas as inovações trazidas pela Medida Provisória: dispensa de licitação para aquisição de bens e contratação de obras e serviços, redução pela metade dos prazos para apresentação de propostas e lances, prorrogação dos contratos por um período de 12 (doze) meses além dos prazos legais, regime especial para adoção de registro de preço, além de extensão da possibilidade de contratos verbais para compras no valor de até R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Além disso, a MPV também permite acréscimo de até 50% do valor inicial dos contratos firmados com base nela, e acréscimo de 100% para contratos já vigentes – sendo necessária a concordância do contratado. Ainda, promoveu-se uma série de flexibilizações procedimentais na fase preparatória (dispensa de estudos técnicos, apresentação simplificada de documentos e do termo de referência, anteprojeto ou projeto básico), na fase de habilitação (dispensa de requisitos de regularidade fiscal e econômico-financeira) e no gerenciamento de risco (exigível somente durante a gestão do contrato). Isso tudo sem abrir mão da transparência: os contratos deverão ser publicados no Porta Nacional de Contratações Públicas no prazo de 60 dias a contar da data de aquisição ou contratação.
É verdade que a nova lei de licitações trouxe novidades se comparada à legislação antiga, mas também não inovou tanto quanto poderia. Diante disso, medidas que flexibilizem e agilizem as contratações, especialmente em situações de calamidade, são necessárias.
Também será o momento de exigir uma atuação precisa dos órgãos externos de controle, que devem abandonar apontamentos por formalidades ultrapassadas ou obsoletas, mas devem fiscalizar atentamente a execução de tais contratos, combatendo o eventual desvio de dinheiro público.
E após uma normalização, poderemos discutir se alguns pontos desse “direito administrativo da calamidade” não deveriam ser incorporados à legislação ordinária, desburocratizando de forma permanente as contratações públicas. Mas um passo de cada vez: as flexibilizações promovidas pela MPV ajudam e são bem-vindas.