Dificilmente alguém não ouviu falar em crimes contra o estado democrático de direito, já havendo, inclusive, diversas condenações proferidas pela Excelsa Corte com penas elevadíssimas.
Não vou ingressar no mérito de ser, ou não, o STF o foro competente para julgar pessoas sem prerrogativa de foro, que, de acordo com nosso sistema constitucional, deveriam ser julgadas normalmente por um juiz de primeiro grau, com direito a diversos recursos, o que já não ocorre quando se é julgado ordinariamente na última instância. E nem se as penas foram proporcionais às condutas praticadas e se houve a necessária individualização das condutas nas denúncias ofertadas pelo Ministério Público Federal, a fim de que fosse preservada a ampla defesa e o devido processo legal, princípios fundamentais de nossa Carta Constitucional.
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Vou, apenas, tentar explicar da maneira menos técnica possível dois dos crimes trazidos pela novel legislação, que ainda dependem de análise pormenorizada pelos Tribunais e pela doutrina. Refiro-me aos crimes de abolição violenta do estado democrático (art. 359-L do CP) e golpe de estado (art. 359-M do CP).
Para isso, peço paciência e me desculpem pelo extenso texto.
A Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, que revogou a Lei de Segurança Nacional, cuida de delitos que atentam contra o Estado Democrático de Direito em seu sentido mais amplo.
A nova lei, que inclui o Título XII no Código Penal, foi publicada no dia 2 de setembro de 2021, e contou com diversos vetos presidenciais.
Uma das principais alterações, muito bem-vinda, aliás, é que os delitos de opinião, aqueles cometidos por escritos ou palavras, deixam de ser tipificados na Lei de Segurança Nacional e passam a ser crimes comuns, descritos no Código Penal, passíveis de transação penal, de competência do Juizado Especial Criminal, com exceção da calúnia agravada, e o mesmo delito ou a difamação, quando cometidos ou divulgados em quaisquer modalidades de redes sociais da rede mundial de computadores (Internet), cuja pena é triplicada.
Os novos tipos penais que tutelam o estado democrático de direito constituem o Título XII, do Código Penal, que contêm cinco capítulos: I – Dos crimes contra a soberania nacional; II – Dos crimes contra as instituições democráticas; III - Dos crimes contra o funcionamento das instituições; IV – Dos crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais e VI – Disposições comuns, anotando que o capítulo V, que cuidava dos crimes contra o exercício da cidadania, foi vetado.
A novatio legislação não mais contempla expressamente quais são os bens jurídicos protegidos como fazia a lei revogada. No entanto, pode servir de parâmetro na interpretação de alguns de seus dispositivos.
Com efeito, da análise dos tipos penais, percebe-se que os bens jurídicos tutelados são a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado Democrático de Direito, a segurança nacional e a lisura do processo eleitoral. Assim, a depender de qual dos delitos, a conduta praticada deverá ferir o bem jurídico protegido pela norma (crime de dano) ou colocá-lo em risco (crime de perigo). Dessa forma, não será uma conduta qualquer, mas uma bem grave, a fim de não se banalizar o emprego desses tipos penais, que sempre serão excepcionais.
Lembro que em países totalitários invariavelmente há uma norma penal aberta para alcançar toda e qualquer manifestação contra o governo e, que no seu entender, coloque-o em risco. A título de exemplo, o art. 6º do Código Penal Soviético, outorgado após a revolução (1926), trazia norma que permitia a punição de qualquer conduta que fosse considerada perigosa à estrutura do Estado soviético.
Isso implicava que o juiz poderia punir quem, em sua opinião, pudesse colocar em risco a ordem política da época. Essas fórmulas de elaborar normas penais extremamente abertas foram empregadas do mesmo modo nos códigos criminais do Brasil colônia, como as Ordenações Filipinas, usadas para condenar e executar Tiradentes e inúmeras outras pessoas que ousassem atentar contra o soberano.
Por conta desse perigo de perseguição estatal, vige nos países democráticos o princípio da reserva legal, do qual já falei em vários dos meus artigos, em especial em um publicado na Conjur em 01.11.2021, com o título: “Crime de homofobia: nascimento, morte e velório do princípio da reserva legal”. Por esse princípio, a norma penal deve ser taxativa e sua interpretação restritiva, não admitindo a analogia em desfavor do acusado. A conduta deve se amoldar perfeitamente à norma penal, não sendo permitidas interpretações muito abertas a ponto de nela caber diversas condutas ao gosto do freguês.
Não pretendo analisar todos os dispositivos, o que faço em meus livros, mas cabe-me trazer algumas ponderações sobre tipos penais que estão sendo discutidos acaloradamente nas redes sociais e na imprensa em geral.
Saliento que nos dois tipos penais em estudo há dois elementos objetivos do tipo, que necessitam de interpretação de acordo com os bens jurídicos tutelados, como ocorre com qualquer norma penal. São a violência e a grave ameaça.
A violência nada mais é do que o desenvolvimento da força física para vencer resistência de alguém ou lhe causar alguma espécie de dano.
Em vários tipos penais existentes em nosso ordenamento jurídico, a violência surge como elementar ou circunstância do delito.
Não se exige que a violência seja irresistível, bastando que seja idônea a produzir o resultado querido pelo agente.
Em regra, o emprego da violência fará com que o agente responda por ela, quando advierem lesões corporais.
A ameaça, como ocorre com a violência, é integrante de vários tipos penais, funcionando ora como elementar, ora como circunstância, que agravará a pena.
Ela poderá configurar crime em si mesmo (art. 147, do CP), mas, em regra, é modo de execução de um delito.
A ameaça consiste na revelação à vítima de lhe causar um mal injusto e grave, atual ou futuro, que só o agente terá como evitar. Essa promessa de mal pode ser da produção de dano ou de perigo, pouco importando qual deles seja prenunciado pelo agente.
Excepcionalmente, a violência contra a coisa poderá constituir grave ameaça, notadamente quando alcança bens públicos de suma importância ou valiosos. É o caso de depredação de prédios públicos vitais para o Estado ou mesmo estações ou torres de distribuição de energia.
Um dos tipos em que a violência ou a grave ameaça se fazem presentes é o artigo 359-L, que diz: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência”.
O novo tipo penal é uma junção dos artigos 17 e 18 da revogada Lei de Segurança Nacional, que dispunham:
“Art. 17 - Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. Parágrafo único. Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; se resulta morte, aumenta-se até o dobro.
Art. 18 - Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados. Pena: reclusão, de 2 a 6 anos”.
A atual norma, que tornou o tipo penal mais fechado, foi parcialmente mantida pelo instituto da continuidade normativa-típica, mas não em sua integralidade, como explicarei.
A conduta típica consiste em tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais.
O verbo do novo tipo penal é tentar, isto é, realizar a conduta para que consiga a abolição do Estado Democrático de Direito, mesmo que não o consiga. A norma não exige que isso ocorra, mas que a ação seja voltada para esta finalidade.
A ação deve ter por propósito abolir o Estado Democrático de Direito, o que se dá mediante o impedimento ou a restrição do exercício dos poderes constitucionais, quais sejam, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, com o emprego de violência ou grave ameaça, que são os modos de execução do delito.
Note-se, assim, que a conduta praticada deve ao menos ter o potencial de produzir o resultado pretendido, embora possa não ocorrer, uma vez que o verbo do tipo é “tentar abolir”. Com isso, embora não ocorra a abolição do Estado Democrático de Direito, o que dar-se-ia, em regra, com golpe de estado ou revolução e a imposição de um regime totalitário, é exigido pela norma que um dos Poderes da República seja impedido ou ao menos tenha restringido o regular exercício de suas atribuições ou jurisdição.
Com efeito, os elementos objetivos “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, não se encontravam presentes no art. 18 da LSN, mas no artigo 17 de forma autônoma e ainda com redação um pouco diferente.
Dessa forma, se não ocorreu o impedimento ou, ao menos, a restrição do exercício de um dos poderes da República, não pode haver a condenação por delito consumado.
Além do mais, para a adequação típica, deve ter havido violência à pessoa ou grave ameaça e que a conduta tivesse o potencial de colocar em risco o Estado Democrático de Direito, sendo essa a intenção do agente ao proferir palavras ou escritos, quando se tratar de crime cometido com esse modo de execução. Havendo atos concretos de violência contra pessoa, fica muito mais fácil interpretar a norma, o que não ocorre com a grave ameaça, normalmente cometida por escritos, palavras ou até mesmo por gestos. Excepcionalmente, como já dito, poderá ocorrer situações muito graves em que a violência contra a coisa implique a grave ameaça necessária para a adequação típica, como quando atinge bens públicos de suma importância ou valiosos para o Estado.
Portanto, meras bravatas ou simples ameaças, destemperos emocionais, patacoadas ou desabafos, “quebra-quebra”, que não tenham o condão de colocar em perigo a ordem constitucional vigente, podem até configurar crime contra a honra, ameaça e de dano, mas não contra o Estado Democrático de Direito.
Malgrado seja discutível, por se tratar de crime plurissubsistente, pode, em tese, ocorrer a tentativa, quando o sujeito, tendo como intenção a abolição do Estado Democrático de Direito, empregar a violência ou a grave ameaça e não conseguir impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais por circunstâncias alheias à sua vontade, anotando que não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime (art. 17 do CP).
No crime impossível, também chamado de tentativa inidônea, o bem jurídico não sofre lesão e nem é exposto a perigo. A conduta praticada pelo agente é inidônea para alcançar o resultado pretendido. Havendo a possibilidade da ocorrência de dano ou de perigo ao bem jurídico, ainda que remotamente, a tentativa será punível.
Assim, vg, se os meios empregados não poderiam de forma nenhuma alcançar o resultado pretendido, não ocorrerá o crime de abolição violenta do estado democrático, podendo ocorrer outros como dano, ameaça ou lesões corporais.
Anoto, por oportuno, que só com o início da execução do delito é que podemos falar em tentativa. Não se pune nem a cogitação e nem a preparação do crime, exceção feita aos casos expressamente previstos em lei, como a associação criminosa (art. 288 do CPP). É o que expressamente diz o artigo 31 do Código Penal.
A pena correspondente à violência (lesões corporais ou homicídio) será aplicada cumulativamente com a prevista no tipo penal por expressa disposição de legal (concurso material ou formal imperfeito, a depender da hipótese).
A violência contra coisa será absorvida pelo tipo, cuidando-se, se o caso, de ato preparatório ou meio necessário para a consumação do delito (princípio da consunção).
Outra conduta, ainda mais grave, vem delineada no artigo 359- M, que dispõe: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência”.
Consiste em tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.
Nesta conduta, o agente vai mais longe. Ele não visa apenas impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais. Ele pretende, com o emprego de violência contra a pessoa ou grave ameaça, derrubar o governo legitimamente constituído, que me parece ser o Executivo, aquele que efetivamente governa no regime presidencialista.
O verbo do tipo é tentar, ou seja, realizar a conduta para que consiga depor o governo legitimamente constituído, mesmo que não o consiga. A norma não exige que isso ocorra, mas que a ação seja voltada para esta finalidade.
Não é exigida a deposição do governo, contentando-se a norma com a mera tentativa. Assim, ao empregar violência ou grave ameaça com o propósito de depor o governo legitimamente constituído, mesmo que isso não ocorra, o crime restará consumado. Como se trata de crime de atentado, punindo-se da mesma forma a consumação e a tentativa, não se faz possível o conatus (tentativa).
Destarte, não existe tentativa de tentativa de golpe de estado. Ou há a tentativa, e o crime se consuma, ou não há, e não haverá este delito. Lembro que em nosso direito penal não se pune a mera cogitação e a preparação de um crime, como sua idealização e planejamento (art. 31 do CP), exceção feita aos casos em que são puníveis os atos preparatórios (ex: art. 288 do CP).
Para que ocorra este delito ou qualquer outro classificado como de atentado, que é o caso também da abolição violenta do estado democrático (art. 359-L, do CP), há necessidade do início da execução do crime, terceira fase do iter criminis.
Esclareço, por fim, que para ocorrer a adequação típica o governo já deve estar constituído e não apenas eleito ou diplomado. É o que expressamente diz a norma penal. Além do mais, o verbo do tipo é depor e só se depõe quem já está no poder, ou seja, empossado.
A conduta praticada deve ao menos ter o potencial de produzir o resultado pretendido, nada obstante possa não ocorrer, uma vez que o verbo do tipo é “tentar depor”.
Portanto, como ocorre com o crime de abolição violenta do estado democrático (art. 359-L, do CP), meras bravatas ou simples ameaças, destemperos emocionais, patacoadas ou desabafos, vandalismo, que não tenham o condão de colocar em perigo a ordem constitucional vigente, podem até configurar crime contra a honra, ameaça e de dano, mas não contra o Estado Democrático de Direito.
Também é elemento objetivo do tipo que o governo seja legítimo, isto é, eleito de acordo com as normas pertinentes previstas na Constituição Federal. No caso de o governo não ser legítimo, fruto de golpe de estado, revolução ou outra situação análoga, o fato não constituirá o presente delito, podendo advir outro por conta da violência ou grave ameaça empregada contra alguém.
Por critério de lógica, a violência a que alude a norma só pode ser a física e contra alguém, e não a contra coisa, ao passo que a ameaça deve ser grave, como expressamente definida na norma. Contudo, como já afirmado, excepcionalmente a violência contra a coisa poderá constituir grave ameaça quando alcançar bens públicos valiosos ou de suma importância para o Estado.
Como ocorre com o delito de abolição violenta do estado democrático, a pena correspondente à violência (lesões corporais ou homicídio) será aplicada cumulativamente com a prevista no tipo penal por expressa disposição de legal (concurso material ou formal imperfeito, a depender da hipótese).
A violência contra coisa será absorvida pelo tipo, cuidando-se, se o caso, de ato preparatório ou meio necessário para a consumação do delito (princípio da consunção).
Enfim, os novos tipos penais, que contêm penas elevadíssimas, devem ser muito bem analisados e empregados a fim de que não constituam elemento de perseguição política ou ideológica.