Uma denúncia anônima enviada ao Ministério Público de São Paulo (MP-SP) no ano passado colocou os promotores do Gaeco no rastro de um complexo esquema de fraude a licitações operado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) no interior de prefeituras e câmaras municipais do interior do Estado e da região metropolitana. A facção teria controle sobre uma rede de empresas, registradas em nomes de laranjas, que agiria em conluio com agentes públicos suspeitos de corrupção para conseguir vultuosos contratos - cujos valores somados podem ultrapassar R$ 200 milhões. A palavra final sobre a divisão desses contratos, segundo a investigação da Operação Munditia, cabia ao “tribunal do crime”.
Nas redes sociais, os investigados ostentavam uma vida de empresários de sucesso. Festas, viagens e uma rotina de alto padrão. “Resguardando as vantagens dos ilícitos, os principais denunciados não hesitam em ostentar em redes sociais bens móveis, imóveis, gastos em viagens e festas”, diz o relatório dos promotores do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado, braço do Ministério Público paulista.
Fora da internet, faziam lobby junto a políticos e pregoeiros, pagavam propinas a servidores e políticos e combinavam propostas para simular competição pelos contratos. A Operação Muditia investiga contratos de pelo menos 12 prefeituras e câmaras.
Os investigadores suspeitam que o “cabeça” do esquema é Vagner Borges Dias, o Latrell Brito, pagodeiro do PCC apontado como “gestor” das empresas. Ele foi uma espécie de pivô da investigação e está foragido. Depois que a Justiça autorizou a quebra do seu sigilo de mensagem, outros suspeitos foram arrastados para o inquérito.
As conversas tiveram um efeito cascata - as passagens relevantes para a investigação estão registradas em um relatório de 503 páginas obtido pelo Estadão. O documento reúne diálogos, em áudio e texto, sobre entrega de propinas, disputas do PCC e o esquema de fraude a licitações.
O Ministério Público também teve acesso a arquivos compartilhados e recebidos pelo pagodeiro. Há registros de dezenas de armas e de malotes de dinheiro. “A violência e a periculosidade é uma tônica de suas conversas”, enfatiza o MP.
Em um vídeo, ele filma armas estocadas em um cofre e pergunta: “Quer que resolva com esses dois brinquedos? Dois, não, tem mais um aqui, mais um, três, três brinquedinhos.”
Leia também
Embora tenha licença de CAC (Caçador, Atirador Desportivo e Colecionador de Arma de Fogo), Latrell Brito usa a autorização para “forjar legalidade” ao porte ilegal de seu arsenal, segundo a Promotoria.
Outro diálogo destacado no relatório mostra que ele chega a se vangloriar por andar armado. O pagodeiro fotografa uma viatura da Polícia Civil e afirma: “Gostoso, viatura na sua frente, arma no console.”
Nas redes sociais, onde tem perfil certificado e quase 1 milhão de seguidores, a identidade era outra. Ele tem uma carreira como cantor de pagode. O nome artístico é Latrell Brito.
A análise de suas mensagens faz parte de um esforço do Ministério Público para demonstrar a ligação do empresário e pagodeiro com o PCC. Nesse contexto, os promotores chamam atenção para a proximidade dele com um nome já conhecido dos órgãos de investigação: Márcio Zeca da Silva, o “Gordo”. Condenado por tráfico de drogas, “Gordo” foi flagrado em 2021 com 200 porções de cocaína em um fundo falso de uma Mercedes. Segundo o MP, ele tem um “longevo” envolvimento com a facção criminosa e, com o passar dos anos, conseguiu assumir a liderança de negócios voltados ao branqueamento do patrimônio do tráfico. Latrell e “Gordo” seriam sócios, aponta a investigação.
Outro personagem chave do inquérito é Carlos Roberto Galvão Júnior, o “Juninho”, dono – ao menos no papel – da empresa Centermix. Para o Ministério Público, ele só emprestou o nome como laranja do esquema. “Singelo acompanhamento das postagens em suas redes sociais, horários e localizações, atesta que Carlos não é afeto ao labor, muito menos exerce de fato a atuação de empresário.”
O testa de ferro do esquema seria Antônio Carlos de Morais. Ele se apresentava nos pregões presenciais e eletrônicos como representante das empresas sob suspeita. Segundo a investigação, é Moraes quem comanda a parte burocrática e administrativa da operação. Mensagens apontam que ele chegou a dar orientações a agentes públicos para a elaboração dos editais, de modo que as cláusulas beneficiassem o grupo.
Na divisão de tarefas, o pagamento de propinas ficaria a cargo de Wellington Costa, o “Bola”. Os promotores encontraram registros de envelopes com dinheiro vivo que seriam entregues por ele a agentes públicos em diferentes cidades.
Todos foram alvo de mandados de prisão temporária na Operação Muditia.