Como parte de nossa experiência profissional, recentemente nos deparamos com mais uma extravagante manifestação da (in)cultura corporativa brasileira: a sociedade privatizada que, saudosa dos privilégios inerentes à Administração Pública, objetiva manter o status sui generis de titular de interesse estatal, a legitimar inclusive a intervenção processual anômala de órgãos governamentais em suas contentas judiciais envolvendo interesses estritamente privados e sem qualquer pingo de interesse público.
Trata-se de uma ambiguidade paradoxal que só encontra paralelo na fábula mitológica do Deus Hermafrodito, o filho de Afrodite e Hermes, que foi transformado criatura com características masculinas e femininas ao rejeitar o assédio da ninfa Salmacis, que, para evitar perdê-lo, invocou ajuda divina para que ambos não mais se separassem, unindo seus corpos.
Esta é uma tendência que, além de carecer de sentido, torna-se precedente preocupante para a higidez do mercado de capitais, e que não pode se tornar um hábito irreversível, pois como já afirmou Warren Buffet "os pequenos grilhões de nossos hábitos não são sentidos até que eles se tornem fortes de mais para serem quebrados", um sábio alerta, que vale igualmente para pessoas, governos e instituições.
Ora, as sociedades de economia mista, como deve ser, embora dotadas de personalidade de direito privado, foram concebidas como instrumentos de ação estatal em atividades tradicionalmente privadas, aplicando-se a elas, em decorrência do direto interesse da Administração Pública, regras especiais que derrogam parcialmente a aplicação irrestrita do direito privado às suas atividades.
Entretanto, situação diversa se observa quando seu controle tenha sido transferido a particulares, por meio da privatização. Por uma questão de lógica, não pode a mesma se arvorar de titular de direito estatal estratégico, sob risco de uma contradição insuperável: se a companhia é detentora de interesse estatal estratégico, não deveria ter sido privatizada e se o foi, logo não mais o detém.
A racionalidade de tal conclusão é tão evidente que nem mesmo as ninfas poderiam clamar aos deuses a criação de uma figura com tais características de ambiguidade corporativa, de maneira que, se episódios assim seguirem ocorrendo, os mesmos não se devem a qualquer intervenção divina, mas a interesses muito mais terrenos e refletem, em nosso entendimento, uma concepção desvirtuada e incorreta do interesse público e das regras de boa governança corporativa.
No caso em questão, o objeto é a postura da Petrobras Distribuidora S.A., cujo controle foi alienado pela União/Petrobras em julho de 2019, mas que tenta artificialmente se valer de sua posição de ex-empresa estratégica e com vínculos diante da União para forçar a barra e criar elementos, embora inexistentes e injustificáveis, para demandar o socorro da AGU em processos nos quais é ré. Age com duplo equívoco: primeiro não reporta aos seus acionistas o tamanho do rombo contábil que carrega em seu balanço; e, segundo, força a barra se valendo das conexões da sua vida passada para se fazer de res publica e enganar o Poder Judiciário e a AGU.
Assim, pedindo apoio da AGU em processo que já se encontra na fase de Recurso Especial e tão somente aguarda confirmação por parte do Superior Tribunal de Justiça de acórdão desfavorável à Petrobrás Distribuidora S.A, proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sendo que é impossível, pelas circunstâncias envolvidas, encontrarmos um exemplo mais perfeito da tentativa ilegítima de se criar uma ambiguidade corporativa a justificar qualquer interesse estatal na solução de demanda que cuida estritamente de interesses privados.
Com efeito, é inadmissível que sociedades recém privatizadas busquem manter o manto de uma proteção estatal que já não lhe é cabível, diante da evidente necessidade de que seu funcionamento seja pautado pelas regras aplicadas a todas as demais empresas privadas, sendo nosso entendimento que tais tentativas podem ser eventualmente classificadas como indisfarçável desvio ético.
Os membros do Conselhos de Administração e Fiscal de tais sociedades devem ter, de forma inequívoca, a compreensão de que o único interesse público naquelas empresas, a partir do momento em que foram privatizadas, é que as mesmas apresentem aderência total aos valores da boa governança corporativa, baseados na transparência, na prestação de contas, responsabilidade e também equidade, aplicável no relacionamento com os acionistas, bem como com quaisquer outras partes interessadas, inclusive a Administração Pública.
O funcionamento ético e integro de uma sociedade privatizada é, em si, o interesse mais significante a ser protegido, uma vez que atende não só o interesse do Estado, mas também protege os direitos dos acionistas minoritários; bem como leva em consideração a higidez do mercado de capitais e o regular funcionamento da atividade econômica, cuja garantia é certamente uma das mais relevantes funções sociais da empresa.
Eventual desvirtuamento de tais práticas pelos membros do Conselho de Administração, principais responsáveis pela orientação ética das empresas e pela manutenção e aplicabilidade dos princípios éticos estabelecidos pelos Códigos de Conduta e Programas de Integridade, representa violação de seus deveres mais básicos, em particular o de lealdade, inerente às importantes funções de confiança que desempenham.
Na verdade, aqueles que expõem a corporação à riscos decorrentes de estratégias eticamente condenáveis (e desprovidas de base legal) deixam de priorizar os interesses institucionais a longo prazo, comprometendo a independência e a integridade da companhia, ficando expostos à responsabilização civil e criminal por seus atos.
O compadrio, o atraso e a defesa de interesse indefensáveis, por evidente, só causam mal às sociedades de capital aberto, independentemente de sua origem, de maneira que esperamos que tais desastrosas experiências sirvam de lição às companhias recém privatizadas, de forma a evitar os profundos impactos econômicos decorrentes de desvios éticos ainda, infelizmente, tão comuns nas empresas estatais.
São eles os grilhões dos quais a cultura corporativa brasileira tem que definitivamente se desvencilhar, para, enfim, vencer o fantasma da fábula mitológica do Deus Hermafrodito.
*André de Almeida, advogado, CEO e fundador do escritório Almeida Advogados. Autor do livro A Maior Ação do Mundo: a História da Class Action Contra a Petrobras