O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quarta-feira, 30, a votação sobre o marco temporal de terras indígenas. O julgamento se arrasta desde setembro de 2021 - há quase dois anos, portanto.
Com um voto de 200 páginas, o ministro André Mendonça foi o único a se manifestar na sessão de hoje. Ele defendeu que o marco temporal é a solução que melhor “equilibra” os interesses de fazendeiros e indígenas na disputa por terras. O voto será concluído amanhã.
“O marco temporal da ocupação, devidamente excetuado nos casos em que se verificar a situação de renitente esbulho, configura-se a solução que a meu ver melhor equilibra os múltiplos interesses em disputa, na medida em que, pela carga de objetivação que imprime, permite que se construa cenário de plena confiabilidade para todos os envolvidos”, argumentou.
O julgamento deve seguir na quinta-feira. Dezenas de indígenas acompanharam a sessão no plenário e devem voltar ao STF amanhã. O ministro Cristiano Zanin é o próximo a votar. Ele recebeu a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, pouco antes da retomada do julgamento.
Em menos de um mês no STF, Zanin deu votos que acenderam um alerta em setores progressistas, inclusive lideranças do PT, partido do presidente Lula, que o indicou para o cargo. Um dos votos polêmicos foi justamente contra os povos indígenas. Ele foi contra o reconhecimento de uma ação sobre violência policial contra guarani e kaiowá no Mato Grosso do Sul.
O julgamento do marco temporal é considerado histórico. Como mostrou o Estadão, a decisão pode inviabilizar a demarcação de 114 terras indígenas em 185 cidades. Atualmente, há 226 processos paralisados à espera de uma decisão do STF.
O marco temporal prevê que os povos indígenas só têm direito a permanecer nas terras que já ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da Constituição. A tese foi usada pela primeira vez em 2009, no julgamento da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima.
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Ao julgar o caso, o STF faz frente ao Congresso. A Câmara dos Deputados aprovou, no final de maio, um projeto de lei para restringir as demarcações de territórios ocupados antes de 1988. A proposta seguiu para o Senado, onde tramita na Comissão de Constituição e Justiça.
Representantes do movimento indígena estão em Brasília e montaram acampamento para protestar contra o marco temporal. Campanhas com artistas e ambientalistas também foram lançadas nas redes sociais, para tentar mobilizar a opinião pública. A campanha ganhou a adesão de nomes como a atriz Bruna Marquezine e a cantora Daniela Mercury.
O Estadão apurou que, se houver pedido de vista (mais tempo para análise), a ministra Rosa Weber, presidente do STF, deve adiantar o voto. Ela se aposenta em setembro.
Votos
O julgamento do marco temporal teve sucessivos adiamentos no STF. Até o momento, quatro ministros votaram: Edson Fachin, relator do processo, Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes e, hoje, André Mendonça.
Há duas teses jurídicas em disputa e um voto intermediário, de Moraes. De um lado, Fachin defende o direito dos povos indígenas sobre o território como originário e não depende de um marco temporal.
O ministro argumentou que o arcabouço legal de proteção dos direitos de posse indígena começou a ser construído antes de Constituição de 1988. A posse, na avaliação do relator, deve ser definida pela tradicionalidade e não por um marco arbitrário no tempo.
“No caso das terras indígenas, a função econômica da terra se liga, visceralmente, à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria para essas comunidades”, destacou em seu voto.
A judicialização das demarcações é um dos principais desafios para os indígenas. Os processos costumam se arrastar por anos na Justiça, o que permite que fazendeiros e garimpeiros continuem nas terras reivindicadas.
Nunes Marques, por sua vez, foi a favor do marco temporal, no que foi um dos seus primeiros votos ao chegar no STF. Ele argumentou que a solução concilia interesses públicos e dos indígenas e garante segurança jurídica na demarcação das terras.
“Por um lado, admite-se que os índios remanescentes em 1988 e suas gerações posteriores têm direito à posse de suas terras tradicionais, para que possam desenvolver livremente seu modo de vida. Por outro, procura-se anistiar oficialmente esbulhos ancestrais, ocorridos em épocas distantes, e já acomodados pelo tempo e pela própria dinâmica histórica”, defendeu.
O ministro Alexandre de Moraes acompanhou Fachin, contra o marco temporal, mas sugeriu ajustes pontuais na tese. O objetivo, segundo Moraes, é “compatibilizar” os direitos das comunidades indígenas e dos proprietários de terras. “O que acho que devemos buscar na solução dessa questão é a paz social no campo”, defendeu.
Ele propôs que a União seja obrigada a pagar uma indenização integral a proprietários expropriados, em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, considerando a terra nua e eventuais benfeitorias. “Permanece o total direito à demarcação e à posse das comunidades indígenas, mas o proprietário de boa-fé tem direito à indenização integral”, explicou. “O grande culpado é o poder público, que não regulamentou corretamente isso.”
A Advocacia-Geral da União (AGU) enviou parecer ao STF no início da semana criticando a tese. O argumento é que as indenizações podem travar demarcações porque o gasto será “incalculável”.
Moraes reiterou a tese nesta tarde: “A terra é da comunidade indígena, mas o Estado tem que indenizar. Não podemos, para solucionar um problema, que é a questão das comunidades indígenas terem seus direitos desrespeitados, criar um outro problema, deixar milhares de famílias de pequenos agricultores perderem a sua terra sem uma indenização, sem a possibilidade de terem uma outra terra.”