O julgamento sobre a indicação de políticos para estatais teve mais uma reviravolta no Supremo Tribunal Federal (STF). O novo capítulo passa por uma queda de braço entre os ministros Ricardo Lewandowski e André Mendonça. O tema interessa ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que indicou Lewandowski à Corte e agora em seu terceiro mandato vai conduzir um sucessor à vaga a ser aberta com a aposentadoria do ministro até maio.
O processo em análise pode flexibilizar as restrições para a nomeação de políticos a cargos de comando em empresas públicas. As regras estão previstas na Lei das Estatais, aprovada no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB) na esteira dos escândalos revelados pela Operação Lava Jato para impedir o uso das indicações como moeda de troca no jogo político. A ação é movida pelo PCdoB - aliado do PT.
O relator do processo é Lewandowski, que deixará a Corte quando completar 75 anos - idade-limite para ocupar uma cadeira no Supremo. Ele suspendeu nesta quinta-feira, 16, um trecho da lei e abriu caminho para as indicações políticas nas empresas públicas. Conforme o Estadão mostrou, o governo Lula já negocia cargos de diretorias de estatais para acomodar aliados e ampliar sua base de sustentação no Congresso - sobretudo, aqueles do Centrão.
A decisão liminar (provisória) concedida por Lewandowski também autoriza a nomeação de membros de partidos políticos e de pessoas que tenham trabalhado nas equipes de campanhas eleitorais. A condição é que elas deixem eventuais cargos de direção partidária. Pela lei, hoje, exige-se o cumprimento de uma quarentena de 36 meses (três anos) antes que se possa assumir esses postos. A Câmara aprovou mudança na regra no fim do ano passado, mas o texto não avançou no Senado.
"Afastar indiscriminadamente pessoas que atuam na vida pública, seja na estrutura governamental, seja no âmbito partidário ou eleitoral, da gestão das empresas estatais, constitui discriminação odiosa e injustificável sob o ponto de vista do princípio republicano, nuclear de nossa Carta Magna", justificou Lewandowski na decisão em que atendeu ao pedido do PCdoB.
Na prática, ao decidir monocraticamente, Lewandowski 'furou' o colega André Mendonça. Isso porque Mendonça havia pedido mais tempo para analisar o caso. Ele fez isso por meio do instrumento chamado 'pedido de vista', uma prerrogativa de todos os ministros do tribunal.
O pedido de vista de Mendonça, que foi indicado por Jair Bolsonaro (PL), foi feito na semana passada, quando o julgamento da ação foi iniciado no plenário virtual do Supremo - nesse espaço digital, que funciona como o plenário físico, os votos são depositados sem debate entre os ministros da Corte. Com o pedido, Mendonça poderia engavetar a ação até junho, ou seja, até depois da aposentadoria de Lewandowski. O processo continuaria no acervo para o sucessor.
Quando há um pedido de vista, a análise do processo é travada. Via de regra, a ação só volta a ser pautada pela presidência do Supremo - no caso, Rosa Weber - depois que o ministro que usou o instrumento para ter mais tempo para analisar o caso libera os autos, ou após um prazo de 90 dias.
'URGÊNCIA'. Lewandowski, porém, decidiu usar dos poderes de relator com a justificativa de que há "excepcional urgência" no caso e "perigo de lesão irreparável", porque as assembleias para eleição de diretores e membros do conselho de administração das estatais estão marcadas para o final de abril.
O ministro também submeteu a própria decisão ao plenário, o que na prática força a retomada da discussão no colegiado, ainda que em caráter liminar. O julgamento da decisão monocrática de Lewandowski foi marcado no plenário virtual para o período de 31 de março a 14 de abril.
REAÇÃO. No intervalo de menos de quatro horas veio a reação. Mendonça liberou o processo para julgamento, no mérito - o que significa que a decisão do plenário não será provisória -, sobre a suspensão das normas da Lei das Estatais, mas definitiva, sobre a constitucionalidade das regras.
A estratégia não é usual: os pedidos de vista tendem a ser consideravelmente mais demorados, tanto que o Supremo alterou o regimento interno no final do ano passado para determinar que os processos serão liberados automaticamente para inclusão em pauta se o prazo dos 90 dias para a devolução da vista não for respeitado pelo ministro.
Há ainda uma outra disputa: a modalidade do julgamento. Interlocutores de Lewandowski dizem que ele gostaria de manter a votação no plenário virtual, longe da TV Justiça e da opinião pública, mas Mendonça devolveu a vista direto no plenário físico. Com isso, a data para julgamento fica a cargo de Rosa Weber, a quem caberá encaixar o caso em pauta.
DÚVIDA. O plenário do Supremo não precisa julgar primeiro a decisão liminar e depois o mérito do caso. "A ação está relatada e pronta para julgamento. O plenário pode tanto decidir o mérito da ação quanto fazer uma nova apreciação provisória, mantendo ou suspendendo a liminar", disse Vitor Rhein Schirato, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da instituição.
Se a liminar de Lewandowski for derrubada, há margem para discussão: caso Lula nomeie algum diretor de estatal vetado pelo artigo 17 da Lei das Estatais, pode-se alegar que o ato foi válido porque estava, no momento, protegido por uma decisão judicial. Contudo, Schirato disse não acreditar na possibilidade de um "direito adquirido". "Em tese, hoje, pode-se nomear qualquer pessoa. Mas, se amanhã o entendimento for pela constitucionalidade, aquela nomeação passa a ser ilegal", disse.
POLÍTICA. Felippe Mendonça, doutor em Direito Constitucional pela USP, vê uma movimentação política da parte de Mendonça, não de Lewandowski. "O pedido de vista do Mendonça, até mesmo pela liberação imediata após a liminar, é que parece ter sido por fins políticos, tentando impedir nomeações", disse.
A respeito da possibilidade de que eventuais nomeações sejam feitas no período, ele levanta outro ponto: "Há a necessidade de se preocupar com o funcionamento da empresa em que o indivíduo foi nomeado e quem ficaria na função".
Cronologia no STF
- Julgamento é iniciado no plenário virtual do STF no dia 10 de março;
- André Mendonça pede vista (mais tempo para análise) e interrompe a sessão antes dos votos dos demais ministros;
- Relator, Ricardo Lewandowski aponta 'urgência', decide monocraticamente suspender as restrições a indicações políticas nas estatais e submete a decisão provisória ao plenário em sessão marcada para os dias 31 de março a 14 de abril;
- Mendonça reage rapidamente e devolve o processo para julgamento do mérito, em data ainda não definida.
Para entender: Lei blinda estatais de ingerência política
Aprovação A Lei das Estatais foi aprovada em 2016, durante o governo Michel Temer (MDB), após investigações apontarem o uso político de empresas públicas para a prática de corrupção
Blindagem Os principais pontos da lei dizem respeito a mecanismos para blindar as estatais de ingerência política, impondo restrições para indicações de integrantes dos conselhos de administração e das diretorias de empresas públicas
Congresso Em dezembro do ano passado, deputados aprovaram um projeto de lei para afrouxar a legislação sobre o tema; a proposta, no entanto, enfrenta resistência no Senado
Procurador-geral Na semana passada, às vésperas do julgamento no Supremo, o procurador-geral da República, Augusto Aras, mudou de opinião em relação à lei. Agora, ele argumenta que ela restringe direitos fundamentais ao impor "óbice à participação de cidadãos na vida político-partidária"
Supremo O julgamento no STF sobre a indicação de políticos para estatais enfrenta reviravoltas, com uma queda de braço entre os ministros Ricardo Lewandowski e André Mendonça. Indicado para a Corte por Bolsonaro, Mendonça pediu vista no processo e suspendeu o julgamento
Decisão liminar Lewandowski atropelou o colega e suspendeu trechos da lei, abrindo caminho para a indicação de políticos em empresas públicas. Menos de quatro horas depois, Mendonça liberou o processo para julgamento no plenário da Corte
Planalto O tema é de interesse do governo Lula, que aguarda pela flexibilização das regras para nomear, por exemplo, o ex-governador de Pernambuco Paulo Câmara (PSB) na presidência do Banco do Nordeste