A primeira lei que disciplinou o uso da internet no Brasil foi o chamado Marco Civil da Internet -- Lei 12.965/2014 (MCI). A norma buscou disciplinar o meio digital de forma generalista e principiológica, tendo como premissa a necessidade de remodelagem constante em razão da evolução e amadurecimento do tema. Apesar de tal mutabilidade, pode-se dizer que a Lei 12.965/2014 segue servindo de alicerce para a normatização específica da internet.
Dentre seus dispositivos, merece destaque o artigo 19 do referido diploma legal, que prevê regime de responsabilidade civil peculiar, abrindo espaço para interpretações, a depender do lado no qual se crave a compreensão jurídica, e, é importante reconhecer, do aspecto ideológico. Neste ponto, a ideologia positiva não deve estar ligada a um pensamento de cunho político, mas sim a um posicionamento jurídico voltado para a melhor aplicação da lei em proveito da sociedade.
Atualmente, existem ações judiciais que questionam a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet e que foram inicialmente pautadas para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal para o dia 17/05/23. Nessa data, porém, o julgamento foi adiado. O tema central da controvérsia envolve a imputação de responsabilidade às plataformas digitais decorrente de conteúdos ilícitos ou ofensivos postados pelos usuários.
As muitas discussões giram em torno da redação do seguinte artigo:
"Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário".
O dispositivo ressalta que as plataformas digitais somente poderão ser responsabilizadas por conteúdo ilícito postado por usuários se não os removerem após ordem judicial específica determinando tal atitude.
Segundo a redação atual da norma, as plataformas somente são responsabilizadas em hipótese de desobediência da decisão judicial determinando a remoção. A única ressalva encontra-se nos casos de nudez ou atos sexuais privados prevista mais adiante no art. 21 da mesma lei, cuja divulgação deverá ser interrompida pela plataforma a partir de notificação extrajudicial.
De acordo com a fala do Dr. Carlos Affonso Souza durante a audiência pública realizada no STF, o regime de responsabilidade do artigo 19 do MCI é duplo. Isto é, ancorado e marcado pela ordem judicial emitida, sendo este o condão da responsabilidade de remoção de conteúdo ilícito e contrário ao ordenamento jurídico nacional. Por outro lado, há uma zona de liberdade para as plataformas digitais autodisciplinarem sua retirada de conteúdos, moderando estes conforme seu próprio entendimento e valores organizacionais.
A complexidade jurídica e social da matéria enseja diversas linhas de pensamento para aplicação do art. 19 do MCI. Porém, é preciso reconhecer que a discussão é bastante oportuna, tendo em vista a ampla atuação dessas empresas na vida social cotidiana. O assunto merece dedicação técnica para alcançar o melhor interesse dos usuários da internet, sem enfraquecer o desenvolvimento econômico, a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais. Espera-se que seja essa a missão a ser desempenhada pelo STF em casos importantes e pendentes de julgamento.
O Tribunal terá de tomar decisão com base em casos concretos, utilizados como reflexos reais daquilo que a interpretação do artigo 19 pode ensejar. Nesse sentido, o Tema 533, de relatoria do Ministro Luiz Fux, versa sobre o possível dever da empresa hospedeira de sítio na internet de fiscalizar o conteúdo publicado pelos usuários e retirá-lo do ar sem que seja necessária a provocação do Poder Judiciário. Cogita-se, portanto, uma espécie de filtragem a ser conduzida pelas próprias plataformas.
O caso concreto atrelado ao tema 533 relata que uma professora teria descoberto a existência de uma comunidade na antiga rede social Orkut, cujo propósito era a proliferação e disseminação de comentários a ela diretamente ofensivos. Os insultos lhe causaram grande constrangimento, pois chegou ao conhecimento de seus alunos, colegas, familiares e amigos. Apesar de a rede ter excluído a comunidade, não houve reparação por danos morais.
Já o Tema 987, sob relatoria do Ministro Dias Toffoli, debate a constitucionalidade da regra trazida pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), cujo cerne pressupõe a existência de ordem judicial para que haja a exclusão de conteúdo ilícito ou danoso. A ação original relata que a autora teria descoberto a existência de um perfil falso em seu nome, usado unicamente para ofender outras pessoas. Alegando que sua vida teria se tornado um pesadelo, ela clamou pela remoção do perfil e pelo pagamento de indenização por dano moral. A justiça concedeu a ordem de exclusão e a indenização foi apenas deferida em sede recursal, sob o argumento de que condicionar a remoção do perfil falso a uma ordem judicial específica seria isentar os provedores de qualquer responsabilidade indenizatória, o que contraria o Código de Defesa do Consumidor e o artigo 5°, inciso XXII, da Constituição Federal.
No STF, o Procurador Geral da República, Augusto Aras, defendeu o aumento da responsabilidade das plataformas digitais por meio de atuação mais independente, sem necessitar de ordem judicial para moderação de conteúdo e remoção de ilicitudes, com propósito de evitar a disseminação de ofensas e a lesividade daí decorrente.
Muitas teses estão em jogo, como por exemplo, se a responsabilidade das plataformas digitais deve ser limitada pelo Poder Judiciário ou mesmo se tal responsabilidade deve existir.
Enquanto as vítimas de postagens prejudiciais e ilícitas pugnam por maior atuação das plataformas no que diz respeito ao controle de conteúdos indevidos, as plataformas sustentam a constitucionalidade do dispositivo analisado, argumentando em prol da garantia da vedação à censura, do pleno direito de liberdade de expressão e da reserva de jurisdição.O argumento defendido pelas plataformas digitais vai no sentido de já realizarem a moderação de forma proativa, mesmo antes do requerimento judicial. De acordo com as plataformas, a retirada de conteúdos ilícitos é efetuada consoante os melhores padrões atuais e busca proteger o usuário de boa-fé.
Nesse ponto, é preciso analisar o funcionamento desse mercado em prol do usuário, ou seja, a lacuna existente na lei não obriga a empresa digital a moderar o seu conteúdo com padrões de conformidade, havendo apenas um entendimento abstrato e genérico dessa aplicação.
Fato é que a redação do artigo 19 do Marco Civil causa, para uns, a sensação de inércia diante de players que detêm poder inimaginável na sociedade digital. Por outro lado, muitos temem potencial supressão da liberdade de expressão.
Para aquecer o debate, a Suprema Corte dos EUA, na quinta-feira dia 18 de maio de 2023, reconheceu vitória significativa às plataformas digitais. A decisão emanada da corte americana isentou as redes sociais de responsabilidade no que diz respeito a conteúdo terrorista postado por seus usuários. A análise feita pelos magistrados ressaltou a importância das plataformas para a comunicação e interação mundiais, argumentando que não fora possível identificar um fio de responsabilidade legal direta dos apps no que diz respeito a ataques terroristas específicos.
Dada a complexidade do tema, soluções simples não surgem como alternativas. Logo, a responsabilização das plataformas para monitorarem o ambiente sócio-digital requer amplo conhecimento dos diversos interesses em jogo. Os argumentos de todos os possíveis interessados e atingidos pela decisão devem ser sopesados em busca do melhor cenário para os usuários da internet no país. Urge aperfeiçoar o ordenamento legal, a fim de garantir maior segurança jurídica e, é claro, segurança digital.
Referências
https://portal.fgv.br/artigos/artigo-19-marco-civil-internet-merece-audiencia-publica
*Renata Opice Blum, bacharelanda do 8.º semestre do curso de direito do Centro Universitário Armando Álvares Penteado; Guilherme Guimarães Vieira, advogado formado pelo Centro Universitário Armando Álvares Penteado, ambos integrantes do Grupo de Estudos de Direito Digital, sob coordenação do Prof. Dr. Luiz Fernando Prudente do Amaral, professor titular de direito do Centro Universitário Armando Álvares Penteado