Para fins da aplicação ou não das regras restritivas de direitos destinadas a estrangeiros é preciso distinguir operações de M&A envolvendo sociedades patrimoniais daquelas relativas a sociedades operacionais titulares de imóveis rurais.
A Lei Federal nº 5.709/1971 contemplou restrições a estrangeiros apenas em relação a aquisições diretas de imóveis rurais. Foi o Decreto Federal nº 74.965/1974 que, ao regulamentar a Lei Federal nº 5.709/1971, estendeu as restrições também para a “alienação de imóvel rural para pessoa física ou jurídica estrangeira, em casos como o de fusão ou incorporação de empresas, de alteração do controle acionário da sociedade, ou de transformação de pessoa jurídica nacional para pessoa jurídica estrangeira” (art. 20).
Nos parece que o objetivo da ampliação das restrições às operações de M&A foi o de alcançar as operações societárias envolvendo sociedades meramente patrimoniais e especulativas, em que não haveria, por parte do estrangeiro, qualquer intenção de tornar as terras produtivas, mas meramente a de aguardar a valorização imobiliária para posterior venda. Esse comportamento, além de ser contrário à função social da propriedade, na concepção do legislador, afetaria a segurança nacional.
Em um dos pareceres jurídicos das Comissões do Senado Federal envolvidas para avaliar a juridicidade do Projeto de Lei nº 127/1971, que originou a Lei Federal nº 5.709/1971, foram feitas as seguintes considerações:
“Com a transformação dêste projeto em lei - não é demais repetir -, sôbre inscrever-se, em nosso direito legislado, normas tendentes a resguardar o interêsse nacional contra as investidas de especuladores internacionais não interessados no nosso progresso, mas, sim, em impedir o desenvolvimento econômico do Brasil, vem a legislação projetada ao encontro dos interesses dos próprios imigrantes que, vindos de outras terras aqui aportem, desejosos de trabalhar ao lado dos brasileiros pelo progresso desta terra que a todos recebe e abriga, igualmente, sem distinção de raça credo ou côr, a todos tratando como irmãos, pois êsse é o espírito de nossa gente.”
A finalidade da Lei Federal nº 5.709/1971 e, por consequência, do Decreto que a regulamentou, era a de coibir a aquisição de terras por estrangeiros que vinham para o Brasil sem o objetivo de destiná-las a atividades econômicas adequadas e favorecendo a especulação imobiliária. Foram regras especiais, para situações determinadas e restritas, com destinatários certos, ou seja, estrangeiros que, por não terem interesse em tornar as terras brasileiras produtivas, não seriam bem-vindos ao Brasil. Por esse motivo, as restrições não podem ser aplicadas indistintamente, inviabilizando ou embaraçando todo e qualquer investimento de estrangeiros no Brasil.
A mesma finalidade pode ser vista em relação aos arrendamentos. A Lei Federal nº 8.629/1993, que estabeleceu restrições para que estrangeiro residente no País e a pessoa jurídica autorizada a funcionar no Brasil pudessem arrendar imóveis, visa regulamentar a reforma agrária. O contexto em que inserida a referida regra restritiva de direitos é o do necessário aproveitamento da terra conforme a sua função social, sob pena de desapropriação para fins de reforma agrária (art. 2º).
Por isso é que a aquisição de sociedades patrimoniais por estrangeiros passou a ser condicionada à destinação da terra “à implantação de projetos agrícolas, pecuários, industriais, ou de colonização, vinculados aos seus objetivos estatutários” (art. 5º da Lei Federal nº 5.709/1971). Ao mencionar que o imóvel deverá ser destinado à “implantação de projetos agrícolas”, a Lei deixa claro que, no momento da aquisição ou do arrendamento, ainda não há atividade agrícola no imóvel rural. É algo futuro, a ser realizado pelo adquirente ou arrendatário para que a sociedade patrimonial passe a ser operacional e confira a melhor destinação possível ao imóvel rural em razão das suas características.
Se a sociedade é operacional, sua aquisição visa justamente à manutenção ou aperfeiçoamento da operação econômica e produtiva dos ativos, abrangendo as atividades da sociedade como um todo, o que inclui empregados, passivos, tributos, licenças, maquinário, fornecedores, sistemas, patrimônio imobilizado etc. Até por isso o preço do negócio jurídico não diz respeito unicamente à terra em si, mas ao conjunto de ativos destinados ao desenvolvimento de determinada atividade econômica.
E se, porventura, a função social dos imóveis deixar de ser cumprida após a aquisição da sociedade operacional por estrangeiros, o Estado poderá, no limite, desapropriar a área para fins de reforma agrária (artigos 184 e 186 da Constituição Federal).
Também sob o espectro da regra de nulidade prevista no art. 19 do Decreto Federal nº 74.965/1974, não haveria sentido na aplicação das restrições a operações de M&A de sociedades operacionais.
Em uma operação societária, a venda e compra é celebrada no âmbito das ações ou cotas da sociedade, e não no plano dos imóveis. Para transações que envolvem a aquisição de participações societárias em sociedades meramente patrimoniais, a nulidade da transação atinge indiretamente quase que exclusivamente os imóveis, que são os ativos representativos da sociedade.
Mas, para operações relativas a sociedades operacionais, em que existe uma ampla e complexa gama de atividades que são desenvolvidas pela sociedade, a nulidade atingiria a operação como um todo, afetando empregados, fornecedores, prestadores de serviços e toda uma coletividade vinculada à cadeia produtiva. Seria, sem dúvida, medida desproporcional e irrazoável, não admitida no nosso ordenamento jurídico.
Conclui-se que as restrições a operações societárias envolvendo sociedades equiparadas a sociedades estrangeiras proprietárias ou arrendatárias de imóveis rurais foram estabelecidas com o objetivo de afastar investimentos com caráter especulativo. Foram medidas restritivas e excepcionais para buscar o melhor uso possível da terra por sociedades estrangeiras segundo os ditames que permeiam o conceito da função social da propriedade rural e que não deveriam ser aplicadas a operações de M&A que tenham por objeto sociedades operacionais.
*Vilmar Carreiro, advogado imobiliário do Stocche Forbes