O Tribunal Superior Eleitoral barrou nesta segunda-feira, 9, mais uma ofensiva contra as urnas eletrônicas, agora respondendo questionamentos das Forças Armadas que tentaram colocar sob suspeita o processo eleitoral - encampando alegações de Jair Bolsonaro. No entanto, depoimentos colhidos pela Polícia Federal indicam que a articulação em torno das alegações, sem provas, contra o sistema eletrônico de votação datam já do primeiro ano do governo Bolsonaro, mobilizando militares que integram a cúpula do Executivo e ainda a Agência Brasileira de Inteligência.
Os depoimentos em questão giram em torno de uma reunião realizada às vésperas da live que Bolsonaro fez em julho de 2021 para atacar o sistema eletrônico de votação. Como mostrou o Estadão em dezembro, a Polícia Federal concluiu que o chefe do Executivo 'agiu deliberadamente' para promover desinformação sobre as urnas eletrônicas em um evento 'previamente estruturado com o escopo de defender uma teoria conspiratória'.
LEIA A ÍNTEGRA DO RELATÓRIO DA PF
O perito Ivo de Carvalho Peixinho, responsável pela unidade de tecnologia e capacitação da Divisão de Repressão de Crimes Cibernéticos, foi convidado para participar do encontro no Palácio do Planalto. À PF, ele relatou que 'em 2019 ou 2020 foi encaminhado pela ABIN, um pedido de informações sobre ocorrências ou atividades envolvendo urnas eletrônicas nas eleições'.
Os investigadores quiseram ouvir Peixinho sobre relatório de atividades de análise do código fonte dos sistemas eleitorais e Teste Público de Segurança, cujos trechos foram reproduzidos por Bolsonaro na live do dia 29 de julho de 2020. O perito ressaltou que os documentos 'de forma nenhuma' apontam para qualquer tipo de fraude nas eleições, nem indicam 'vulnerabilidades aptas a permitir manipulação de votos no processo eleitoral'.
Sobre a reunião que antecedeu a live presidencial, Peixinho narrou que chegou a ser procurado por um assessor do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que sugeriu que ele e um outro perito fossem até a sede da pasta para, junto com o ministro Anderson Torres, irem ao encontro.
Peixinho recusou o convite e só encontrou o ministro da Justiça antes de entrar no gabinete do presidente da República. À PF, o perito narrou que, em tal ocasião, Torres 'informou que seria realizado uma apresentação e que eles deveriam posteriormente informar ao ministro sobre suas impressões sobre o tema'.
Ainda de acordo com Peixinho, oito pessoas estavam na reunião: o coronel da reserva Eduardo Gomes da Silva, que apareceu na live presidencial; o general Luís Eduardo Ramos, então chefe da Casa Civil; o delegado Alexandre Ramagem, então diretor da ABIN; o ministro da Justiça; um perito chamado Polastro; e dois assessores não identificados.
Durante o encontro, foram realizadas duas apresentações, uma feita pelo dono de uma empresa de informática e outra pelo coronel Eduardo. Ao final, Peixinho e Polastro foram questionados sobre o que acharam das exposições, sendo que o primeiro sugeriu que os documentos fossem encaminhados à PF. No entanto, segundo o perito, o general Ramos afirmou que a medida 'não seria possível' pois o documento seria apresentado em 'coletiva' pelo presidente.
O dono da empresa de informática citado por Peixinho é Marcelo Abrieli, que elaborou a planilha usada por Bolsonaro na live de julho de 2020 para espalhar desinformação sobre as urnas eletrônicas. Segundo a PF, Marcelo Abrieli elaborou o documento com base exclusivamente em dados fornecidos em portal de notícias, na tentativa de identificar 'padrões matemáticos'.
Em depoimento, ele negou ter conhecimento formal sobre matemática, probabilidade e informática, alegando ser autodidata. Questionado sobre seu conhecimento dos sistemas do TSE e dos mecanismos de segurança do processo eleitoral, Abrieli disse que 'tem um pouco de conhecimento', adquirido 'conversando com algumas pessoas, estudando e lendo', mas sem conversar com pessoas que atuam na corte eleitoral.
Abrieli relatou aos investigadores que, no final de 2019, recebeu uma ligação do general Ramos para que o empresário agendasse uma reunião no Palácio do Planalto, com o chefe do Executivo, para tratar do tema 'indícios de fraude nas urnas eletrônicas'. Segundo o depoente, estavam presentes no encontro Ramos, Bolsonaro e 'cerca de outras oito pessoas'.
O empresário disse que a reunião durou cerca de uma hora, que falou sobre suas 'informações' e apontou que outras pessoas fizeram apresentações sobre 'possível fraude nas urnas'. Abrieli disse não se recordar do conteúdo da apresentação das outras pessoas, mas sabia informar 'que tudo girava sobre o mesmo tema, ou seja, possível fraude das urnas eletrônicas'.
Abrieli voltou a ter contato com Bolsonaro em 'junho ou julho' de 2021, segundo o depoimento à PF. Ele narrou ter recebido, mais uma vez, uma ligação de Ramos, que disse estar acompanhado de Bolsonaro. O então chefe da Casa Civil chegou a colocar a ligação em viva voz, para que o empresário conversasse com o chefe do Executivo. Abrieli disse que, em tal diálogo, 'foi avisado que estavam reunindo várias informações sobre possível fraude nas urnas eletrônicas' e que Ramos pediu que ele falasse sobre suas 'informações'. Em seguida, o empresário disse que ouviu de Ramos que o coronel Eduardo entraria em contato, uma vez que ele estava 'auxiliando o presidente na coletânea das informações'.
Milícias Digitais
Ao solicitar que o caso fosse apensado ao inquérito das milícias digitais, a Polícia Federal apontou que, pelas 'narrativas das pessoas envolvidas', a live presidencial de julho de 2020 foi um 'evento previamente estruturado com o escopo de defender uma teoria conspiratória que os participantes já sabiam inconsistente, seja pelos alertas lançados pelos peritos criminais federais, seja porque a mesma fonte que forneceu o suporte (pesquisas na internet) também fornece dados que se contrapõem às conclusões alcançadas'.
"Mesmo com a possibilidade de realização de processos formais de verificação da confiabilidade e veracidade dos dados utilizados, o que poderia ser feito inclusive por órgãos do governo, nada foi checado", frisou a delegada Denisse Dias Rosas Ribeiro no documento entregue ao Supremo em setembro e tornado público em dezembro.
Segundo a delegada, as oitivas realizadas no âmbito do inquérito 'permitiram verificar que o processo de preparação e realização da live foi feita de maneira enviesada, isto é, procedeu-se a uma busca consciente por dados que reforçassem um discurso previamente tendente a apontar vulnerabilidades e/ou possíveis fraudes no sistema eleitoral, ignorando deliberadamente a existência de dados que se contrapunham a narrativa desejada, quase todos disponíveis em.0059778 fontes abertas ou de domínio de órgãos públicos'.
Denisse viu 'inconsistências' em pontos 'relevantes' dos depoimentos, mas entendeu que os relatos 'convergem em apontar que houve vontade livre e consciente dos envolvidos em promover, apoiar ou subsidiar o processo de construção da narrativa baseada em premissas falsas ou em dados desconstextualizados, divulgada na live do dia 29 de julho de 2021'.
"As pessoas diretamente envolvidas na produção e difusão não possuíam a capacidade de "deter ou ter acesso à informação buscada ou aos dados de interesse aptos a explicar o que se pretendia difundir. Significa dizer que tais pessoas não detinham competências para fazerem as insinuações e afirmações que foram feitas na live presidencial. Exceto em relação aos peritos criminais federais, identificou-se nas pessoas ouvidas a falta de conhecimento (formal e informal), a inexistência de habilidade para lidar com as informações disponíveis e ausência de atitude adequada para querer se aprofundar e checar a consistência e plausibilidade das afirmações, evitando que se promovesse a desinformação", ressaltou.