A ciência que praticamos é racista. A epistemologia científica mundialmente aceita foi construída a partir da invisibilização das diferentes epistemologias praticadas por povos indígenas, africanos e asiáticos. A medicina oriental, bem como o conhecimento indígena acerca de ervas foram depreciados; no caso dos negros, foram desconsiderados os filósofos que primeiro trouxeram a questão racial como componente fundamental na estruturação da sociedade.
O efeito mais evidente desse racismo talvez se dê nas ciências biológicas. Foi com um atraso de quase meio século que se desenvolveram pesquisas dedicadas a doenças que afetam grupos étnicos sub-representados e as camadas mais pobres da sociedade (majoritariamente negra), como a anemia falciforme ou a doença de Chagas, entre outras muitas.
Os diferentes campos das ciências exatas também sofrem. Grupos sub-representados trazem novas abordagens e roupagens a velhos e recentes problemas científicos. O exemplo mais contundente vem dos programadores de inteligência artificial, que penam para erradicar a reprodução de estereótipos racistas dos julgamentos de valor de seus softwares.
Mas não é apenas isso. Num contingente de pesquisadores cuja esmagadora maioria é de homens brancos, questões sobre a diversidade em geral passam ao largo. Não raro, laureados com honrarias científicas são todos brancos, bem como brancos são aqueles que recebem os maiores montantes para realização de suas pesquisas. E assim se materializa a profecia anunciada de uma elite científica quase toda branca, predominantemente masculina.
O mundo científico parece ter acordado para o problema. São inúmeros os manifestos de diferentes associações científicas, e cito um que me tocou particularmente, por ser da minha área de atuação. O presidente e demais membros da American Geophysical Union (União Americana de Geofísica) firmaram um compromisso para erradicar o viés racista da seleção de seus prêmios de excelência científica. A beleza da mensagem é que ela abrange dois problemas correlatos: de um lado, reconhece o peso do racismo em escolhas supostamente pautadas apenas na excelência acadêmica (note-se que a excelência é branca!); de outro, alerta para o número exíguo de cientistas negros formados pelo ensino superior, também estruturado pelo racismo.
Não houve uma manifestação sequer entre as associações científicas brasileiras (dentre as quais incluo sociedades, academias e agências de fomento federais e estaduais). O silêncio foi, e é, ensurdecedor.
Num país em que mais de 90% dos professores universitários são brancos - ainda que a população negra represente mais da metade de seus habitantes -, seria de se esperar o reconhecimento do papel do racismo na constituição étnico-racial de nosso corpo científico. Se considerarmos que não existe racismo no meio científico, nos resta a aceitação das teses de superioridade intelectual branca e o resgate de conceitos raciais que em teoria foram abandonados no início do século XX.
Nós, cientistas negros brasileiros, temos dificuldade em respirar o ar que emana desse ciclo vicioso que falha em reconhecer excelência entre os poucos negros que superaram a exclusividade das ciências, ao mesmo tempo que desfavorece a formação de novos intelectuais negros.
A única coisa que me vêm à mente ao constatar a naturalização desses números é a hipocrisia com que a questão é tratada. Enquanto aplaudimos iniciativas americanas e europeias, fingimos não ver que a ciência brasileira talvez seja o exemplo mais gritante de privilégio branco do globo.
*Adriana Alves é geóloga e professora da USP. Esta coluna foi produzida especialmente para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios.