A tragédia se consuma ante a naturalidade com que se a encara: dizer que setembro foi o mês campeão nas queimadas é absorvido, como se isso fosse normal. Não se apavorar com a notícia de que setembro representou mais de cento e seis mil quilômetros quadrados destruídos pelo fogo, no ritmo alucinante com que exterminamos nossas florestas, é tão grave como a própria desaparição desse patrimônio de que nos descuidamos. Culposa e até dolosamente.
Agosto, um mês aziago, que os antigos diziam ser “mês do cachorro louco”, mostrou um país envolto em fumaça. Mas setembro seria pior: se em agosto queimamos cinquenta e seis mil quilômetros quadrados, o aumento foi de oitenta e oito por cento! Números que deveriam envergonhar os brasileiros. Que deveriam comover o Poder Público.
São evidências comprovadas pelo Monitor do Fogo da plataforma MapBiomas e computados pelo sistema BD de queimadas do Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. De que adianta anunciar números dantescos: em agosto, mais de sessenta e oito mil focos de incêndio. Em setembro, superaram os oitenta e três mil focos.
Entregou-se ao fogo insaciável, converteu-se em cinza, sinônimo do fracasso da política ecológica tupiniquim, uma área equivalente ao Estado de Roraima. E mais de setenta e três por cento dela era o que ainda restava de cobertura vegetal nativa, principalmente florestas. Para completar a desgraça, mais da metade dessa área atingida fica na Amazônia, tão citada e tão maltratada.
Os Estados que registraram as maiores perdas foram Mato Grosso, Pará e Tocantins. As cidades que estão no topo desse ranking infeliz são Corumbá e São Félix do Xingu. Não é possível acusar-se o El Niño, responsável pela seca inclemente. Pois a maior parte desse fogo foi ateado por humanos. Os incêndios espontâneos decorrem de raios e as chuvas não foram frequentes neste ano. Reconhecer a ação criminosa e nada fazer para encarcerar os dendroclastas é bizarro.
Esse prejuízo é incalculável. Destruir a biodiversidade significa o comprometimento do futuro da subsistência de qualquer espécie de vida num planeta que é vítima da insanidade, da insensatez e da ignorância dos humanos, exatamente os que se arvoram de integrarem a primícia da criação, os únicos animais considerados “racionais”.
Tudo é irracional na defesa do patrimônio natural dos brasileiros. A ineficiência dos esquemas de tutela. A falácia das sanções pecuniárias. Embora se apliquem multas, elas representam um fictício simbolismo, despido até de qualquer aspecto moral, eis que a moral tupiniquim está no necrotério, prestes a ser sepultada.
O Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais lavrou quase cem autos de infração, incidindo sobre os agentes de queimadas criminosas. Fala-se em soma de duzentos e vinte e quatro milhões de reais. Mas é preciso investigar se essas multas são recebidas. A experiência no Brasil é que tudo isso não passa de cortina de fumaça. Por vários obstáculos. Um deles, o não se levar a sério a regularização fundiária. Nem sempre se sabe quem é o proprietário da área devastada. Principalmente na Amazônia, onde o domínio tem vários “andares”. Basta uma declaração para se aceitar que alguém seja dono de uma área situada na região em que a criminalidade organizada, sofisticada e internacional impõe suas regras.
Em seguida, a ineficiência do setor estatal encarregado da execução da multa. A maior parte delas prescreve, ante a omissão da burocracia. Em terceiro, a magnanimidade nefasta da Justiça brasileira. Uma estrutura que levou ao quadro surreal de quatro instâncias a serem percorridas, até que se vislumbre uma decisão que deveria ser definitiva. Mas que ainda é submetida a inúmeras revisões e reapreciações, pois convivemos com um caótico esquema recursal.
Esta nação condena o seu futuro. Está desistindo de ser um exemplo para o mundo, embora provida, pela própria natureza ou pela Providência Divina, como queiram, de um fabuloso tesouro, de uma exuberante biodiversidade, tudo lançado às chamas, como se nada valesse.
Esse o país que já foi considerada promissora promessa verde, em seguida convertido em pária ambiental e hoje cenário macabro de brasas fumegantes e cinzas mortas, tradução melancólica de um povo incapaz de zelar por aquilo que lhe foi entregue para administrar.
Resta fazer o réquiem pela floresta destruída e aguardar o caos.