Há cerca de cinquenta anos, o Nobel de economia Milton Friedman[i] afirmou que a única responsabilidade social de uma empresa seria gerar lucro. De lá para cá a visão sobre o propósito das organizações empresariais alterou significativamente. Além da expectativa de lucro, essencial para a manutenção do negócio, há uma preocupação crescente a respeito das externalidades geradas pelas empresas com relação às pessoas e ao meio ambiente e uma maior reflexão sobre o papel das organizações. O propósito das empresas, como destaca o professor Colin Mayer[ii], da Universidade de Oxford, é gerar soluções lucrativas para os problemas das pessoas e do planeta e não lucrar a partir da produção de problemas para as pessoas e o planeta.
Esse ponto de inflexão, em muito traduzido pelo movimento ESG (environmental, social and governance), assumiu uma importância tão significativa que legislações estrangeiras vêm estendendo obrigações de compliance em direitos humanos e meio ambiente não só para as empresas em suas próprias estruturas, mas também para as suas cadeias de fornecedores diretos e indiretos.
O recente caso de trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves (RS), que se soma a outros ocorridos no setor de vestuário e de café, traz a questão ao centro do debate. Em nota, as empresas contratantes da mão de obra alegaram desconhecimento das violações, afirmando que ocorreram nas estruturas de empresa terceirizada. Tal posicionamento levanta o debate sobre a extrema relevância do compliance em cadeia para as organizações.
O 'S' do acrônimo ESG está em voga. O olhar para o social das empresas representa uma demanda crescente da sociedade, e a tentativa de se esquivar pela mera alegação de desconhecimento de uma violação aos direitos humanos num fornecedor torna-se cada vez mais frágil para empresas que prezam pela continuidade dos seus negócios.
A preocupação em adotar valores ESG e fazer com que este padrão se estenda à sua cadeia produtiva, não apenas contribui com o cumprimento da legislação, como também agrega valor e reputação junto a seus clientes, empregados, investidores e à sociedade como um todo. Caso um fornecedor, seja direto ou indireto, viole pressupostos sociais, ambientais e de governança, além do censurável dano humano e socioambiental, a empresa contratante restará exposta negativamente.
Visando combater tais condutas, têm sido aprovadas diversas normativas internacionais, a exemplo da Lei da Escravidão Moderna (Reino Unido, 2015), da Lei de Vigilância (França, 2017) e da lei aprovada na Alemanha, em julho de 2021, com entrada em vigor em janeiro de 2023, denominada Lei de Due Diligence da Cadeia de Fornecimento (LkSG). Essa última visa instituir obrigações de compliance em cadeia, objetivando coibir violações aos direitos humanos e ao meio ambiente, aplicando-se a empresas sediadas na Alemanha ou às filiais de empresas estrangeiras localizadas naquele país. Ela requer também a adequação de fornecedores que atendam organizações situadas em solo germânico, gerando, portanto, a possibilidade de responsabilização de empresas brasileiras.
No Brasil, em 2018, foi publicado o Decreto n° 9.571, que instituiu obrigações às empresas em relação à proteção dos direitos humanos e ao meio ambiente em suas atividades, estendendo tais obrigações a suas cadeias de suprimentos, que devem ser continuamente monitoradas e avaliadas. Em que pese a existência dessas diretrizes, a natureza jurídica do Decreto acaba por retirar o senso de obrigatoriedade de seu cumprimento, ainda que haja precedentes de sua aplicação.
Como solução a essa problemática, bem como em resposta à demanda crescente pela atenção aos direitos humanos nas cadeias de fornecimento no país, está em tramitação o Projeto de Lei n° 572/22. A intenção é criar o Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas, aumentando a abrangência de proteção a esses direitos fundamentais, prevendo um rol de obrigações ao Estado e às empresas e punições como resposta às violações.
O Projeto de Lei é a primeira medida brasileira que institui efetivas obrigações e penalidades para as empresas em prol da proteção dos direitos humanos na cadeia de suprimentos, atribuindo também papel preponderante ao Estado. Antes de sua conversão em lei, contudo, é preciso que haja uma ampla discussão pela sociedade, para que venha realmente a contribuir com mudanças significativas, sem, no entanto, imputar ônus de difícil ou impossível cumprimento pelas organizações brasileiras.
Enquanto isso, as empresas brasileiras podem se antecipar e, inspiradas nos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos (Guiding Principles) da ONU, nas diversas legislações estrangeiras e no Decreto 9.571/2018, já passarem a adotar práticas de compliance em cadeia, evitando situações absurdas de afronta aos direitos humanos, que podem lhes trazer irreparáveis danos reputacionais.
*Bianca Molicone e Jade Rischard, advogadas da área de Compliance, Proteção de Dados e Regulação de Novas Tecnologias do Pessoa & Pessoa Advogados
[i] "There is one and only one social responsibility of business--to use its resources and engage in activities designed to increase its profits so long as it stays within the rules of the game, which is to say, engages in open and free competition without deception fraud.". FRIEDMAN, Milton. The Social Responsibility of Business is to Increase its Profits. The New York Times, 13.Set.1970, p. 17.
[ii] MAYER, Colin. The Future of the Corporation and the Economics of Purpose. Finance Working Paper N° 710/2020, November 2020, ECGI, p. 2.