No Brasil costumamos endeusar certas figuras, sem que elas tenham reais méritos. Enquanto crucificamos outras, não raro em razão de suas boas qualidades. Também não é frequente que alguém saia em defesa de outrem, a enfrentar maré de descrédito ou a queda em desgraça.
Oliveira Lima, diplomata e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, foi Secretário de Legação do Embaixador Salvador de Mendonça e em suas “Memórias”, publicadas dez anos depois de sua morte, enaltece a figura a quem serviu. Começa por dizer que não foram Joaquim Nabuco e o Barão do Rio Branco os autores da façanha de aproximação e fortalecimento dos laços entre Brasil e Estados Unidos. Na verdade, tudo começou com Dom João VI, que fundou um império americano de Dom Pedro I, que declarou que o império pertencia ao sistema americano e, principalmente, de Dom Pedro II, que concretizou a solidez do relacionamento.
Quanto a Salvador Mendonça, seus serviços foram prestados em silêncio e ele sofreu campanha de difamação, movida pelo proprietário do “Jornal do Comércio”, José Carlos Rodrigues. Este residira alguns anos em Nova Iorque e, por falta de um convênio de extradição, continuou a usufruir de sua fortuna com o resgate das estradas de ferro inglesas no Brasil.
Valendo-se da liberdade de imprensa, lançou José Carlos contra Salvador a pecha de desonesto. Este replicou, enérgica e brilhantemente, no texto “Ajuste de contas”, “que ninguém porém quis ler – numa terra em que já foi reeleito onze vezes vice-presidente do Senado o Sr. Azeredo, alter ego político de Pinheiro Machado, por uma associação de interesses” que representa “a visão encarnada do Crime acamaradado com o Vício”.
Acerta Oliveira Lima ao afirmar: “Todos os povos soem ser ingratos para com seus homens públicos: raras são as exceções. Na democracia ateniense não houve pior mal. No Brasil ele é comum. Com Dom Pedro foi mais um caso de covardia do que de ingratidão. Os soldados boçais foram levados por oficiais eivados de um jacobinismo barato, como Sólon e Joaquim Ignácio (este último, quando inspetor da região de Pernambuco, fazia ainda questão pessoal de que as ruas do Imperador e da Imperatriz não voltassem a ter estas designações), os quais, combinados com certos chefes republicanos, embelecaram o marechal Deodoro, ferido no seu orgulho”.
Cita Oliveira Lima em seguida, três casos de supina e revoltante ingratidão brasileira. O primeiro envolve o Barão de Penedo, “o mais notável dos nossos diplomatas do império após haver sido conspícuo advogado e parlamentar, por mais de 30 anos ministro em Londres”. Aos 85 anos, quis vir morrer sob o céu pátrio. Os cinco anos que aqui viveu, foram de solidão. “Na morte, igual indiferença o acompanhou, até por parte do Ministro das Relações Exteriores, que era Rio Branco” e que fora tão beneficiado por Penedo.
O outro caso foi com Jaceguai, “o ‘barão da frente’ da poesia heroica de José Bonifácio o moço...Dizia Joaquim Nabuco que se Jaceguai tivesse sido inglês, não poderia transitar por Piccadilly sem que os seus compatriotas todos se descobrissem à sua passagem”. Pois esse herói morreu desacompanhado e ao seu féretro pouquíssimas pessoas compareceram.
O terceiro foi com o próprio Salvador de Mendonça, gravemente enfermo numa cainha da Gávea, onde lutava com as enfermidades e a falta de recursos. Isso porque foi constante a sua prodigalidade fidalga. Enquanto ministro, dava lindos banquetes às suas custas, “porque ainda não se estabelecera a prática, inaugurada por Nabuco, de solicitar do ministério extraordinários para festas, chegando Rio Branco, cuja virtude não era certamente a economia, a alarmar-se porque, ao que dizia, os jantares de Nabuco em Washington tinham custado num ano mais de quinhentos contos não previstos no orçamento”.
Fôssemos elencar as ingratidões que ocorrem no Brasil, realizaríamos obra de muitos volumes. Uma sucessão infinita de baixezas, de fissuras de caráter que fazem pensar que a natureza humana é um projeto fracassado. O avanço da ciência e de sua serva, a tecnologia, não conseguiu lapidar a consciência a ponto de tornar a gratidão uma prática rotineira. Algum dia o conseguirá?
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras