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Com quem fica o animal de estimação do casal que se separa?


Por Regina Beatriz Tavares da Silva
Regina Beatriz Tavares da Silva. CRÉDITO: DIVULGAÇÃO  

Se um casal tem um cão ou um gato, que é da estimação dos dois, ocorrendo a separação, com quem ficará o animal?

O animalzinho deverá ser objeto de partilha, como se fosse uma bicicleta ou um carro?

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Quem teria direito a esse animal na partilha seria o consorte que o tem em seu nome, quando há o seu registro de nascimento?

Quando o casal tem filhos menores de idade, a resposta é fácil, porque o casal procura acomodar a situação, deixando o animal com as crianças ou adolescentes, para o bem destes que sentiriam muita falta do cãozinho ou do gatinho se dele fossem afastados. Onde o filho estiver, o bichinho estará, seja com o pai, seja com a mãe.

Mas, quando o casal não tem filhos, por não existir esse motivo de solução consensual da situação e também porque os donos do animal se apegam, na ausência de prole, ainda mais ao animalzinho, surge o conflito.

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Já existem litígios judiciais de disputa da posse ou guarda dos animais.

O pensamento correto dos Tribunais é de que o animal não pode ser objeto de partilha, como se fosse uma coisa.

Há sentimentos envolvidos, o chamado afeto, que é recíproco, ou seja, de ambos os cônjuges pelo animal e do animal pelo marido e pela mulher.

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A proteção judicial deve ser dada, portanto, às pessoas e ao bichinho.

Não há lei no Brasil para regular esse assunto, tendo chegado o momento do Congresso Nacional movimentar-se para regular a matéria, diante de tantos casos que aparecem, em razão do número crescente de animais domésticos.

Diante da falta de lei, uma pergunta se impõe: é possível o estabelecimento de guarda de animais?

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Poderia se aplicada, por analogia ou semelhança, a lei que regula a guarda de filhos menores de idade ou maiores com deficiência mental?

Um Juiz poderia estabelecer a guarda compartilhada de um animal de estimação? Ou mesmo, a guarda exclusiva ou unilateral do marido ou da mulher, com regulamentação das visitas do outro consorte? Nas hipóteses em que somente um deles tem afeto verdadeiro pelo bichinho ou mesmo ou outro cônjuge não dá atenção ou até maltrata o animalzinho de algum modo, este último poderia ser impedido de ver o animal, como pode ocorrer na guarda de filhos?

Tradicionalmente, a guarda é definida como o direito e ao mesmo tempo o dever dos genitores de terem seus filhos sob seus cuidados e responsabilidade, cuidando de sua alimentação, saúde, educação, moradia etc. Ou seja, trata-se de instituto destinado a regular a relação entre pais e filhos.

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Mas o animal não se equipara a um ser humano, embora o afeto que nutrimos por nossos cães e gatos seja equiparável ao que temos por esses adoráveis animaizinhos. A Constituição Federal, em seu art. 225, dispõe que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e que, para a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedando-se, ainda, qualquer prática que coloque em risco sua função ecológica, provoque a extinção de espécies ou submeta os animais a crueldade. Está aí, portanto, o fundamento constitucional da proteção dos animais no Brasil.

Também a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, chamada de Lei dos Crimes Ambientais, tutela os animais, colocando-os a salvo de qualquer tratamento abusivo, maus-tratos, ferimentos ou mutilações.

Desde 1934, o Decreto 24.645, de 10 de julho, estabelecia medidas de proteção aos animais, colocando-os sob a tutela do Estado e protegendo-os contra abusos e crueldades. A solução da questão posta sobre a aplicação analógica ou não das normas legais sobre a guarda de filhos aos animais de estimação, passa pela análise do famoso - e hoje tão desgastado - princípio da dignidade da pessoa humana. Kant, em seu livro Fundamentos da Metafísica dos Costumes, é peremptório ao afirmar que coisas tem preço, os homens, dignidade. Daí, inclusive, afirmar-se ser redundante a expressão "dignidade da pessoa humana", pois a dignidade não poderia ser atributo de outro ser.

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Essa concepção fruto do racionalismo iluminista antropocentrista, fundada no homem como razão, vontade e autoconsciência, corresponde ao que o saudoso Professor Antônio Junqueira de Azevedo, em seu famoso trabalho "Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana", chamou de concepção insular da dignidade. Trata-se de uma concepção que aparta homem e natureza, colocando-os em níveis diversos como sujeito e objeto, respectivamente. Tal concepção, na tentativa de definir a especificidade do homem com relação aos demais animais não humanos, limita-se à inteligência, à vontade ou, também, à autoconsciência.

O mencionado autor, no entanto, propugna pela superação desse paradigma em prol do que denomina concepção própria de uma nova ética, que alicerça a concepção de dignidade em um "homem como ser integrado à natureza, participante especial do fluxo vital que a perpassa há bilhões de anos, e cuja nota específica não está na razão e na vontade, que também os animais superiores possuem, ou na autoconsciência, que pelo menos os chimpanzés também têm, e sim, em rumo inverso, na capacidade do homem sair de si, reconhecer no outro um igual, usar a linguagem, dialogar e, ainda, principalmente, na sua vocação para o amor, como entrega espiritual a outrem". E complementa: "(...) a etologia comprova o que qualquer bom observador, não contaminado pelo racionalismo europeu, sabe: animais, como cavalos, cachorros, macacos etc. pensam e querem. (...)".

Aliás, já afirmara Aristóteles que somos tão animais sociais quanto as abelhas, mas com a especificidade de falarmos por meio da linguagem, que não se limita à mera comunicação. Por fim, destaca Antônio Junqueira de Azevedo que é preciso não confundir vontade com liberdade. É possível que se admita que animais não sejam livres, na medida que suas decisões são determinadas pela natureza e suas circunstâncias - o que poderíamos chamar de instinto -, mas, se assim for, a diferença com relação ao ser humano não seria apenas de grau e complexidade? Essa vinculação direta entre a dignidade da pessoa humana e o direitos dos animais tornou-se explícita com a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de 15 de outubro de 1978, aprovada pela UNESCO e pela ONU, segundo a qual o respeito dispensado pelos homens e mulheres aos animais está relacionado com o respeito entre eles próprios.

Enfim, é preciso que superemos a concepção insular de dignidade e admitamos queos animais não podem, efetivamente, ser tratados como simples coisas, não são res, na expressão latina. O animal não é, por exemplo, uma bicicleta ou um carro, do qual se possa dispor livremente ou que possa ser submetido à partilha de bens. São seres que possuem uma natureza especial. O Código Civil Alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), por exemplo, o famoso BGB, alterou em 1990 seu título "Coisas" (Sachen) para que nele passasse a constar "Coisas. Animais" (Sachen. Tiere), e cujo § 90-A dispõe, categoricamente, que "os animais não são coisas. Os animais são tutelados por lei específica. Se nada estiver previsto, aplicam-se as disposições válidas para as coisas".

O Código Civil brasileiro de 1916 fazia referência aos semoventes, ao tratar dos animais, sem chamá-los de coisas, o que não ocorreu no Código Civil de 2002 de nosso país.

Nesse sentido, no Recurso Especial nº 1.115.916-MG, de relatoria do Ministro Humberto Martins, o STJ afirmou que "não se pode entender que seres, como cães e gatos (...) possam ser considerados como coisas (...). A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade de equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor".

Não foi outro o entendimento do Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Carlos Alberto Garbi, relator de Recurso de Apelação no qual, após amplo levantamento doutrinário e interdisciplinar, concluiu que "o animal em disputa pelas partes não pode ser considerado como coisa" e determinou o estabelecimento do regime de guarda alternada do animal de estimação. De acordo com o voto do Desembargador Carlos Alberto Garbi, a moderna doutrina de diversos países civilizados destaca a necessidade de superação daquela vetusta concepção insular de dignidade. A autora italiana Francesca Rescigno, por exemplo, destaca que o homem ou a mulher não são os únicos sujeitos dignos de consideração moral. O jurista espanhol Santiago Muñoz Machado afirma que deve existir um complexo de princípios e disposições que protegem os animais. António Pereira da Costa, jurista português chega a afirmar que a sensibilidade dos animais os torna merecedores de tutela jurídica.

Fernando Araújo, em sua célebre obra "A hora dos animais", após criticar a insistência do homem em medir os animais de acordo com uma régua antropocêntrica, destaca, com muita sabedoria e dose habitual de humor, que seria "tão razoável esperar de uma zebra que partilhe dos processos mentais humanos como o seria esperar que o homem tivesse pele listrada".

No mesmo sentido, a Desembargadora Christine Santini, em Agravo de Instrumento por ela relatado no Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão liminar de sua lavra, com atenção sensível ao caso, decisão essa que foi mantida pela Turma Julgadora no acórdão, decidiu pela convivência em fins de semana alternados de um gato de estimação com seus donos, agora divorciados, destacando não se tratar de discussão em torno de filho, mas, sim, de animal. De acordo com a decisão, o gato, por ser um animal territorialista, mereceria o tratamento diferenciado que lhe foi conferido no caso, sem guarda alternada, mas passando alguns dias na casa do marido e vivendo a maior parte do tempo na residência da mulher.

Importa destacar que o estabelecimento da "guarda" é muito mais importante do que o estabelecimento de simples regime de convivência, vulgarmente chamado de regime de visitas, pois confere aos donos do animal a possibilidade de atuar, efetivamente, nos cuidados, como, por exemplo, na escolha do veterinário, da alimentação, da forma de realizar a higiene etc. O simples direito de visita não permite a intervenção em favor do animal em caso de maus tratos ou de comportamento desidioso daquele que efetivamente fica com a posse do animal. Os donos querem, de fato, participar dos cuidados do animal, da escolha do veterinário, dos remédios eventualmente necessários, da ração mais indicada, etc., possibilidade que o simples regime de convivência não lhes confere. Se ambos nutrem afeto pelo animal e o animal por eles, seja um gato, seja um cachorro, é preciso uma efetiva regulamentação da guarda.

Importa mencionar que não basta a guarda alternada do animal, pois não é desejável que o animal de estimação fique submetido a cuidados diversos a depender daquele que exerce a guarda em determinado momento. Imagine-se os malefícios que poderiam ser gerados ao animal se ele fosse submetido a dois tratamentos distintos por dois veterinários distintos, por exemplo.

É fundamental, portanto, o estabelecimento da guarda compartilhada destes animais em atenção à natureza especial destes seres, mesmo na ausência de legislação específica sobre o tema. Aliás, espera-se que os legisladores se sensibilizem para que haja rápida regulamentação da guarda de animais, pois posse é de coisa e guarda é de ser, seja humano, seja animal.

Tampouco basta o registro do animal como se fosse propriedade de apenas um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros, pois é o animal que, em realidade, escolhe o seu dono, sendo o caso dos mendigos paradigmático nesse sentido, vez que se estabelece, nestes casos, verdadeiro vínculo de afeto que independe, por exemplo, da boa alimentação e do conforto que pode ser proporcionado ao animal. Essa lembrança foi realizada, com muita sensibilidade, pelo Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior no supra referido Recurso de Agravo de Instrumento. Cada animal tem suas especificidades. Eles sentem, sofrem, ficam nervosos, criam relações de afeto e de desafeto.

De fato, não podemos confundir animal com ser humano. Animal de estimação não é filho e esta articulista destaca essa distinção. No entanto, de acordo com o valores de uma nova era, não podemos esquecer da ligação afetiva que temos com os animais domésticos.

*Regina Beatriz Tavares da Silva é presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões), Doutora em Direito pela USP e advogada.

Regina Beatriz Tavares da Silva. CRÉDITO: DIVULGAÇÃO  

Se um casal tem um cão ou um gato, que é da estimação dos dois, ocorrendo a separação, com quem ficará o animal?

O animalzinho deverá ser objeto de partilha, como se fosse uma bicicleta ou um carro?

Quem teria direito a esse animal na partilha seria o consorte que o tem em seu nome, quando há o seu registro de nascimento?

Quando o casal tem filhos menores de idade, a resposta é fácil, porque o casal procura acomodar a situação, deixando o animal com as crianças ou adolescentes, para o bem destes que sentiriam muita falta do cãozinho ou do gatinho se dele fossem afastados. Onde o filho estiver, o bichinho estará, seja com o pai, seja com a mãe.

Mas, quando o casal não tem filhos, por não existir esse motivo de solução consensual da situação e também porque os donos do animal se apegam, na ausência de prole, ainda mais ao animalzinho, surge o conflito.

Já existem litígios judiciais de disputa da posse ou guarda dos animais.

O pensamento correto dos Tribunais é de que o animal não pode ser objeto de partilha, como se fosse uma coisa.

Há sentimentos envolvidos, o chamado afeto, que é recíproco, ou seja, de ambos os cônjuges pelo animal e do animal pelo marido e pela mulher.

A proteção judicial deve ser dada, portanto, às pessoas e ao bichinho.

Não há lei no Brasil para regular esse assunto, tendo chegado o momento do Congresso Nacional movimentar-se para regular a matéria, diante de tantos casos que aparecem, em razão do número crescente de animais domésticos.

Diante da falta de lei, uma pergunta se impõe: é possível o estabelecimento de guarda de animais?

Poderia se aplicada, por analogia ou semelhança, a lei que regula a guarda de filhos menores de idade ou maiores com deficiência mental?

Um Juiz poderia estabelecer a guarda compartilhada de um animal de estimação? Ou mesmo, a guarda exclusiva ou unilateral do marido ou da mulher, com regulamentação das visitas do outro consorte? Nas hipóteses em que somente um deles tem afeto verdadeiro pelo bichinho ou mesmo ou outro cônjuge não dá atenção ou até maltrata o animalzinho de algum modo, este último poderia ser impedido de ver o animal, como pode ocorrer na guarda de filhos?

Tradicionalmente, a guarda é definida como o direito e ao mesmo tempo o dever dos genitores de terem seus filhos sob seus cuidados e responsabilidade, cuidando de sua alimentação, saúde, educação, moradia etc. Ou seja, trata-se de instituto destinado a regular a relação entre pais e filhos.

Mas o animal não se equipara a um ser humano, embora o afeto que nutrimos por nossos cães e gatos seja equiparável ao que temos por esses adoráveis animaizinhos. A Constituição Federal, em seu art. 225, dispõe que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e que, para a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedando-se, ainda, qualquer prática que coloque em risco sua função ecológica, provoque a extinção de espécies ou submeta os animais a crueldade. Está aí, portanto, o fundamento constitucional da proteção dos animais no Brasil.

Também a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, chamada de Lei dos Crimes Ambientais, tutela os animais, colocando-os a salvo de qualquer tratamento abusivo, maus-tratos, ferimentos ou mutilações.

Desde 1934, o Decreto 24.645, de 10 de julho, estabelecia medidas de proteção aos animais, colocando-os sob a tutela do Estado e protegendo-os contra abusos e crueldades. A solução da questão posta sobre a aplicação analógica ou não das normas legais sobre a guarda de filhos aos animais de estimação, passa pela análise do famoso - e hoje tão desgastado - princípio da dignidade da pessoa humana. Kant, em seu livro Fundamentos da Metafísica dos Costumes, é peremptório ao afirmar que coisas tem preço, os homens, dignidade. Daí, inclusive, afirmar-se ser redundante a expressão "dignidade da pessoa humana", pois a dignidade não poderia ser atributo de outro ser.

Essa concepção fruto do racionalismo iluminista antropocentrista, fundada no homem como razão, vontade e autoconsciência, corresponde ao que o saudoso Professor Antônio Junqueira de Azevedo, em seu famoso trabalho "Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana", chamou de concepção insular da dignidade. Trata-se de uma concepção que aparta homem e natureza, colocando-os em níveis diversos como sujeito e objeto, respectivamente. Tal concepção, na tentativa de definir a especificidade do homem com relação aos demais animais não humanos, limita-se à inteligência, à vontade ou, também, à autoconsciência.

O mencionado autor, no entanto, propugna pela superação desse paradigma em prol do que denomina concepção própria de uma nova ética, que alicerça a concepção de dignidade em um "homem como ser integrado à natureza, participante especial do fluxo vital que a perpassa há bilhões de anos, e cuja nota específica não está na razão e na vontade, que também os animais superiores possuem, ou na autoconsciência, que pelo menos os chimpanzés também têm, e sim, em rumo inverso, na capacidade do homem sair de si, reconhecer no outro um igual, usar a linguagem, dialogar e, ainda, principalmente, na sua vocação para o amor, como entrega espiritual a outrem". E complementa: "(...) a etologia comprova o que qualquer bom observador, não contaminado pelo racionalismo europeu, sabe: animais, como cavalos, cachorros, macacos etc. pensam e querem. (...)".

Aliás, já afirmara Aristóteles que somos tão animais sociais quanto as abelhas, mas com a especificidade de falarmos por meio da linguagem, que não se limita à mera comunicação. Por fim, destaca Antônio Junqueira de Azevedo que é preciso não confundir vontade com liberdade. É possível que se admita que animais não sejam livres, na medida que suas decisões são determinadas pela natureza e suas circunstâncias - o que poderíamos chamar de instinto -, mas, se assim for, a diferença com relação ao ser humano não seria apenas de grau e complexidade? Essa vinculação direta entre a dignidade da pessoa humana e o direitos dos animais tornou-se explícita com a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de 15 de outubro de 1978, aprovada pela UNESCO e pela ONU, segundo a qual o respeito dispensado pelos homens e mulheres aos animais está relacionado com o respeito entre eles próprios.

Enfim, é preciso que superemos a concepção insular de dignidade e admitamos queos animais não podem, efetivamente, ser tratados como simples coisas, não são res, na expressão latina. O animal não é, por exemplo, uma bicicleta ou um carro, do qual se possa dispor livremente ou que possa ser submetido à partilha de bens. São seres que possuem uma natureza especial. O Código Civil Alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), por exemplo, o famoso BGB, alterou em 1990 seu título "Coisas" (Sachen) para que nele passasse a constar "Coisas. Animais" (Sachen. Tiere), e cujo § 90-A dispõe, categoricamente, que "os animais não são coisas. Os animais são tutelados por lei específica. Se nada estiver previsto, aplicam-se as disposições válidas para as coisas".

O Código Civil brasileiro de 1916 fazia referência aos semoventes, ao tratar dos animais, sem chamá-los de coisas, o que não ocorreu no Código Civil de 2002 de nosso país.

Nesse sentido, no Recurso Especial nº 1.115.916-MG, de relatoria do Ministro Humberto Martins, o STJ afirmou que "não se pode entender que seres, como cães e gatos (...) possam ser considerados como coisas (...). A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade de equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor".

Não foi outro o entendimento do Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Carlos Alberto Garbi, relator de Recurso de Apelação no qual, após amplo levantamento doutrinário e interdisciplinar, concluiu que "o animal em disputa pelas partes não pode ser considerado como coisa" e determinou o estabelecimento do regime de guarda alternada do animal de estimação. De acordo com o voto do Desembargador Carlos Alberto Garbi, a moderna doutrina de diversos países civilizados destaca a necessidade de superação daquela vetusta concepção insular de dignidade. A autora italiana Francesca Rescigno, por exemplo, destaca que o homem ou a mulher não são os únicos sujeitos dignos de consideração moral. O jurista espanhol Santiago Muñoz Machado afirma que deve existir um complexo de princípios e disposições que protegem os animais. António Pereira da Costa, jurista português chega a afirmar que a sensibilidade dos animais os torna merecedores de tutela jurídica.

Fernando Araújo, em sua célebre obra "A hora dos animais", após criticar a insistência do homem em medir os animais de acordo com uma régua antropocêntrica, destaca, com muita sabedoria e dose habitual de humor, que seria "tão razoável esperar de uma zebra que partilhe dos processos mentais humanos como o seria esperar que o homem tivesse pele listrada".

No mesmo sentido, a Desembargadora Christine Santini, em Agravo de Instrumento por ela relatado no Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão liminar de sua lavra, com atenção sensível ao caso, decisão essa que foi mantida pela Turma Julgadora no acórdão, decidiu pela convivência em fins de semana alternados de um gato de estimação com seus donos, agora divorciados, destacando não se tratar de discussão em torno de filho, mas, sim, de animal. De acordo com a decisão, o gato, por ser um animal territorialista, mereceria o tratamento diferenciado que lhe foi conferido no caso, sem guarda alternada, mas passando alguns dias na casa do marido e vivendo a maior parte do tempo na residência da mulher.

Importa destacar que o estabelecimento da "guarda" é muito mais importante do que o estabelecimento de simples regime de convivência, vulgarmente chamado de regime de visitas, pois confere aos donos do animal a possibilidade de atuar, efetivamente, nos cuidados, como, por exemplo, na escolha do veterinário, da alimentação, da forma de realizar a higiene etc. O simples direito de visita não permite a intervenção em favor do animal em caso de maus tratos ou de comportamento desidioso daquele que efetivamente fica com a posse do animal. Os donos querem, de fato, participar dos cuidados do animal, da escolha do veterinário, dos remédios eventualmente necessários, da ração mais indicada, etc., possibilidade que o simples regime de convivência não lhes confere. Se ambos nutrem afeto pelo animal e o animal por eles, seja um gato, seja um cachorro, é preciso uma efetiva regulamentação da guarda.

Importa mencionar que não basta a guarda alternada do animal, pois não é desejável que o animal de estimação fique submetido a cuidados diversos a depender daquele que exerce a guarda em determinado momento. Imagine-se os malefícios que poderiam ser gerados ao animal se ele fosse submetido a dois tratamentos distintos por dois veterinários distintos, por exemplo.

É fundamental, portanto, o estabelecimento da guarda compartilhada destes animais em atenção à natureza especial destes seres, mesmo na ausência de legislação específica sobre o tema. Aliás, espera-se que os legisladores se sensibilizem para que haja rápida regulamentação da guarda de animais, pois posse é de coisa e guarda é de ser, seja humano, seja animal.

Tampouco basta o registro do animal como se fosse propriedade de apenas um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros, pois é o animal que, em realidade, escolhe o seu dono, sendo o caso dos mendigos paradigmático nesse sentido, vez que se estabelece, nestes casos, verdadeiro vínculo de afeto que independe, por exemplo, da boa alimentação e do conforto que pode ser proporcionado ao animal. Essa lembrança foi realizada, com muita sensibilidade, pelo Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior no supra referido Recurso de Agravo de Instrumento. Cada animal tem suas especificidades. Eles sentem, sofrem, ficam nervosos, criam relações de afeto e de desafeto.

De fato, não podemos confundir animal com ser humano. Animal de estimação não é filho e esta articulista destaca essa distinção. No entanto, de acordo com o valores de uma nova era, não podemos esquecer da ligação afetiva que temos com os animais domésticos.

*Regina Beatriz Tavares da Silva é presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões), Doutora em Direito pela USP e advogada.

Regina Beatriz Tavares da Silva. CRÉDITO: DIVULGAÇÃO  

Se um casal tem um cão ou um gato, que é da estimação dos dois, ocorrendo a separação, com quem ficará o animal?

O animalzinho deverá ser objeto de partilha, como se fosse uma bicicleta ou um carro?

Quem teria direito a esse animal na partilha seria o consorte que o tem em seu nome, quando há o seu registro de nascimento?

Quando o casal tem filhos menores de idade, a resposta é fácil, porque o casal procura acomodar a situação, deixando o animal com as crianças ou adolescentes, para o bem destes que sentiriam muita falta do cãozinho ou do gatinho se dele fossem afastados. Onde o filho estiver, o bichinho estará, seja com o pai, seja com a mãe.

Mas, quando o casal não tem filhos, por não existir esse motivo de solução consensual da situação e também porque os donos do animal se apegam, na ausência de prole, ainda mais ao animalzinho, surge o conflito.

Já existem litígios judiciais de disputa da posse ou guarda dos animais.

O pensamento correto dos Tribunais é de que o animal não pode ser objeto de partilha, como se fosse uma coisa.

Há sentimentos envolvidos, o chamado afeto, que é recíproco, ou seja, de ambos os cônjuges pelo animal e do animal pelo marido e pela mulher.

A proteção judicial deve ser dada, portanto, às pessoas e ao bichinho.

Não há lei no Brasil para regular esse assunto, tendo chegado o momento do Congresso Nacional movimentar-se para regular a matéria, diante de tantos casos que aparecem, em razão do número crescente de animais domésticos.

Diante da falta de lei, uma pergunta se impõe: é possível o estabelecimento de guarda de animais?

Poderia se aplicada, por analogia ou semelhança, a lei que regula a guarda de filhos menores de idade ou maiores com deficiência mental?

Um Juiz poderia estabelecer a guarda compartilhada de um animal de estimação? Ou mesmo, a guarda exclusiva ou unilateral do marido ou da mulher, com regulamentação das visitas do outro consorte? Nas hipóteses em que somente um deles tem afeto verdadeiro pelo bichinho ou mesmo ou outro cônjuge não dá atenção ou até maltrata o animalzinho de algum modo, este último poderia ser impedido de ver o animal, como pode ocorrer na guarda de filhos?

Tradicionalmente, a guarda é definida como o direito e ao mesmo tempo o dever dos genitores de terem seus filhos sob seus cuidados e responsabilidade, cuidando de sua alimentação, saúde, educação, moradia etc. Ou seja, trata-se de instituto destinado a regular a relação entre pais e filhos.

Mas o animal não se equipara a um ser humano, embora o afeto que nutrimos por nossos cães e gatos seja equiparável ao que temos por esses adoráveis animaizinhos. A Constituição Federal, em seu art. 225, dispõe que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e que, para a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedando-se, ainda, qualquer prática que coloque em risco sua função ecológica, provoque a extinção de espécies ou submeta os animais a crueldade. Está aí, portanto, o fundamento constitucional da proteção dos animais no Brasil.

Também a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, chamada de Lei dos Crimes Ambientais, tutela os animais, colocando-os a salvo de qualquer tratamento abusivo, maus-tratos, ferimentos ou mutilações.

Desde 1934, o Decreto 24.645, de 10 de julho, estabelecia medidas de proteção aos animais, colocando-os sob a tutela do Estado e protegendo-os contra abusos e crueldades. A solução da questão posta sobre a aplicação analógica ou não das normas legais sobre a guarda de filhos aos animais de estimação, passa pela análise do famoso - e hoje tão desgastado - princípio da dignidade da pessoa humana. Kant, em seu livro Fundamentos da Metafísica dos Costumes, é peremptório ao afirmar que coisas tem preço, os homens, dignidade. Daí, inclusive, afirmar-se ser redundante a expressão "dignidade da pessoa humana", pois a dignidade não poderia ser atributo de outro ser.

Essa concepção fruto do racionalismo iluminista antropocentrista, fundada no homem como razão, vontade e autoconsciência, corresponde ao que o saudoso Professor Antônio Junqueira de Azevedo, em seu famoso trabalho "Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana", chamou de concepção insular da dignidade. Trata-se de uma concepção que aparta homem e natureza, colocando-os em níveis diversos como sujeito e objeto, respectivamente. Tal concepção, na tentativa de definir a especificidade do homem com relação aos demais animais não humanos, limita-se à inteligência, à vontade ou, também, à autoconsciência.

O mencionado autor, no entanto, propugna pela superação desse paradigma em prol do que denomina concepção própria de uma nova ética, que alicerça a concepção de dignidade em um "homem como ser integrado à natureza, participante especial do fluxo vital que a perpassa há bilhões de anos, e cuja nota específica não está na razão e na vontade, que também os animais superiores possuem, ou na autoconsciência, que pelo menos os chimpanzés também têm, e sim, em rumo inverso, na capacidade do homem sair de si, reconhecer no outro um igual, usar a linguagem, dialogar e, ainda, principalmente, na sua vocação para o amor, como entrega espiritual a outrem". E complementa: "(...) a etologia comprova o que qualquer bom observador, não contaminado pelo racionalismo europeu, sabe: animais, como cavalos, cachorros, macacos etc. pensam e querem. (...)".

Aliás, já afirmara Aristóteles que somos tão animais sociais quanto as abelhas, mas com a especificidade de falarmos por meio da linguagem, que não se limita à mera comunicação. Por fim, destaca Antônio Junqueira de Azevedo que é preciso não confundir vontade com liberdade. É possível que se admita que animais não sejam livres, na medida que suas decisões são determinadas pela natureza e suas circunstâncias - o que poderíamos chamar de instinto -, mas, se assim for, a diferença com relação ao ser humano não seria apenas de grau e complexidade? Essa vinculação direta entre a dignidade da pessoa humana e o direitos dos animais tornou-se explícita com a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de 15 de outubro de 1978, aprovada pela UNESCO e pela ONU, segundo a qual o respeito dispensado pelos homens e mulheres aos animais está relacionado com o respeito entre eles próprios.

Enfim, é preciso que superemos a concepção insular de dignidade e admitamos queos animais não podem, efetivamente, ser tratados como simples coisas, não são res, na expressão latina. O animal não é, por exemplo, uma bicicleta ou um carro, do qual se possa dispor livremente ou que possa ser submetido à partilha de bens. São seres que possuem uma natureza especial. O Código Civil Alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), por exemplo, o famoso BGB, alterou em 1990 seu título "Coisas" (Sachen) para que nele passasse a constar "Coisas. Animais" (Sachen. Tiere), e cujo § 90-A dispõe, categoricamente, que "os animais não são coisas. Os animais são tutelados por lei específica. Se nada estiver previsto, aplicam-se as disposições válidas para as coisas".

O Código Civil brasileiro de 1916 fazia referência aos semoventes, ao tratar dos animais, sem chamá-los de coisas, o que não ocorreu no Código Civil de 2002 de nosso país.

Nesse sentido, no Recurso Especial nº 1.115.916-MG, de relatoria do Ministro Humberto Martins, o STJ afirmou que "não se pode entender que seres, como cães e gatos (...) possam ser considerados como coisas (...). A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade de equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor".

Não foi outro o entendimento do Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Carlos Alberto Garbi, relator de Recurso de Apelação no qual, após amplo levantamento doutrinário e interdisciplinar, concluiu que "o animal em disputa pelas partes não pode ser considerado como coisa" e determinou o estabelecimento do regime de guarda alternada do animal de estimação. De acordo com o voto do Desembargador Carlos Alberto Garbi, a moderna doutrina de diversos países civilizados destaca a necessidade de superação daquela vetusta concepção insular de dignidade. A autora italiana Francesca Rescigno, por exemplo, destaca que o homem ou a mulher não são os únicos sujeitos dignos de consideração moral. O jurista espanhol Santiago Muñoz Machado afirma que deve existir um complexo de princípios e disposições que protegem os animais. António Pereira da Costa, jurista português chega a afirmar que a sensibilidade dos animais os torna merecedores de tutela jurídica.

Fernando Araújo, em sua célebre obra "A hora dos animais", após criticar a insistência do homem em medir os animais de acordo com uma régua antropocêntrica, destaca, com muita sabedoria e dose habitual de humor, que seria "tão razoável esperar de uma zebra que partilhe dos processos mentais humanos como o seria esperar que o homem tivesse pele listrada".

No mesmo sentido, a Desembargadora Christine Santini, em Agravo de Instrumento por ela relatado no Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão liminar de sua lavra, com atenção sensível ao caso, decisão essa que foi mantida pela Turma Julgadora no acórdão, decidiu pela convivência em fins de semana alternados de um gato de estimação com seus donos, agora divorciados, destacando não se tratar de discussão em torno de filho, mas, sim, de animal. De acordo com a decisão, o gato, por ser um animal territorialista, mereceria o tratamento diferenciado que lhe foi conferido no caso, sem guarda alternada, mas passando alguns dias na casa do marido e vivendo a maior parte do tempo na residência da mulher.

Importa destacar que o estabelecimento da "guarda" é muito mais importante do que o estabelecimento de simples regime de convivência, vulgarmente chamado de regime de visitas, pois confere aos donos do animal a possibilidade de atuar, efetivamente, nos cuidados, como, por exemplo, na escolha do veterinário, da alimentação, da forma de realizar a higiene etc. O simples direito de visita não permite a intervenção em favor do animal em caso de maus tratos ou de comportamento desidioso daquele que efetivamente fica com a posse do animal. Os donos querem, de fato, participar dos cuidados do animal, da escolha do veterinário, dos remédios eventualmente necessários, da ração mais indicada, etc., possibilidade que o simples regime de convivência não lhes confere. Se ambos nutrem afeto pelo animal e o animal por eles, seja um gato, seja um cachorro, é preciso uma efetiva regulamentação da guarda.

Importa mencionar que não basta a guarda alternada do animal, pois não é desejável que o animal de estimação fique submetido a cuidados diversos a depender daquele que exerce a guarda em determinado momento. Imagine-se os malefícios que poderiam ser gerados ao animal se ele fosse submetido a dois tratamentos distintos por dois veterinários distintos, por exemplo.

É fundamental, portanto, o estabelecimento da guarda compartilhada destes animais em atenção à natureza especial destes seres, mesmo na ausência de legislação específica sobre o tema. Aliás, espera-se que os legisladores se sensibilizem para que haja rápida regulamentação da guarda de animais, pois posse é de coisa e guarda é de ser, seja humano, seja animal.

Tampouco basta o registro do animal como se fosse propriedade de apenas um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros, pois é o animal que, em realidade, escolhe o seu dono, sendo o caso dos mendigos paradigmático nesse sentido, vez que se estabelece, nestes casos, verdadeiro vínculo de afeto que independe, por exemplo, da boa alimentação e do conforto que pode ser proporcionado ao animal. Essa lembrança foi realizada, com muita sensibilidade, pelo Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior no supra referido Recurso de Agravo de Instrumento. Cada animal tem suas especificidades. Eles sentem, sofrem, ficam nervosos, criam relações de afeto e de desafeto.

De fato, não podemos confundir animal com ser humano. Animal de estimação não é filho e esta articulista destaca essa distinção. No entanto, de acordo com o valores de uma nova era, não podemos esquecer da ligação afetiva que temos com os animais domésticos.

*Regina Beatriz Tavares da Silva é presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões), Doutora em Direito pela USP e advogada.

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