A maior tragédia ambiental da história do Rio Grande do Sul afetou mais de dois milhões de pessoas e deixou mais de 150 mortos. Além de cuidar dos danos emocionais e planejar a reconstrução de mais de 400 municípios, vítimas e autoridades precisam também manter um olhar atento aos direitos do consumidor. No começo de maio, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, divulgou uma nota técnica para orientar os órgãos estaduais e municipais sobre como fiscalizar preço, quantidade e segurança de produtos e serviços em uma situação de vulnerabilidade como a enfrentada pelos gaúchos.
Um ponto a ser acompanhado é o aumento abusivo dos preços. Entre os dias 3 e 5 de maio, o Procon de Porto Alegre registrou aumento de 20% no preço do litro da gasolina em postos de combustíveis localizados nas principais avenidas da cidade. Os preços explodiram nas bombas. O litro saltou de R$ 5,47 para R$ 6,59, em apenas 48 horas. Quatro postos foram intimados a justificar a súbita elevação que agravou ainda mais o cenário de desolamento e desamparo do consumidor.
Um aumento é considerado abusivo quando não existe explicação válida, conforme estabelece o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). “Imagine que o posto de gasolina já tinha combustível no seu estoque e cobrava R$ 5 por litro, mas a partir de uma situação de calamidade pública, ele passa a cobrar R$ 8 pela mesma quantidade, por um item que já estava no estoque. Não houve um aumento do fornecedor para o posto de gasolina, na verdade, houve um aumento do posto de gasolina para o consumidor”, explica o advogado Marco Antonio Araújo Júnior, membro da Comissão Nacional de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“Esse aumento injustificado é visto como uma prática abusiva, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, e pode até configurar um crime contra a economia popular”, destaca Araújo Júnior . “É diferente do que aconteceria se a gasolina já fosse vendida por um preço mais alto para o posto de combustível, porque o fornecedor teve mais gastos devido aos bloqueios nas estradas ou dificuldades para chegar de avião, por exemplo. O estabelecimento poderia fazer o repasse desse aumento para o cliente. Então, nem todo aumento será abusivo, mas é importante avaliar em qual circunstância ele ocorreu.”
A variação de preço também atingiu produtos essenciais, como água, alimentos e itens de higiene pessoal.
O Ministério Público estadual criou um canal exclusivo para essas denúncias e recebeu mais de 200 reclamações nas primeiras 24 horas. Em uma fiscalização na capital gaúcha, as equipes do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) encontraram um homem com um caminhão-pipa que cobrava R$ 380 por mil litros de água. Antes das enchentes, o valor cobrado era de R$ 60, quase sete vezes menos. Em outro estabelecimento, os agentes encontraram galões de água comercializados por R$ 60, mas que, na verdade, deveriam custar cerca de R$ 7.
“Os comerciantes podem receber notificações do Procon municipal e estadual, da Senacon ou até mesmo da agência reguladora de sua categoria. A multa aplicada por essa autuação não vai para o cliente, mas sim para algum fundo de defesa do consumidor”, afirma Araújo Júnior.
O advogado explica que é possível pedir uma indenização por danos morais ou materiais, caso a pessoa se sinta diretamente lesada pelos preços praticados. “O consumidor pode solicitar uma indenização judicialmente. Se for pelo Juizado Especial Cível, as causas de até 20 salários mínimos não precisam de advogado, mas as ações de 20 a 40 salários mínimos precisam. Já na Justiça Comum, todas as causas exigem a representação de um advogado”, esclarece.
As denúncias podem ser feitas para o MPRS por meio do e-mail precoabusivo@mprs.mp.br.
Serviços suspensos não podem ser cobrados
A Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), responsável por atender pouco mais da metade da população gaúcha, divulgou que, até a sexta-feira (17), mais de cem mil imóveis permaneciam sem abastecimento de água na Região Metropolitana de Porto Alegre.
No dia 10 de maio, a empresa anunciou, em parceria com o Ministério Público e a Defensoria Pública, o Programa de Apoio aos Impactados pelos Eventos Climáticos.
As casas que sofreram alagamentos terão isenção da conta de água em maio e junho. As vítimas elegíveis para a tarifa social estarão isentas do pagamento da conta por seis meses.
“Os serviços essenciais que foram suspensos, como energia elétrica e água, não podem ser cobrados pelo período em que eles não foram fornecidos. Da mesma maneira, os serviços particulares que não foram prestados, não podem ser cobrados. Por exemplo, se o consumidor tinha contratado um plano de internet, mas a empresa não conseguiu entregar e ele foi suspenso, a instituição tem que fazer o abatimento na conta proporcional aos dias em que não prestou o serviço”, aponta o advogado da Comissão Nacional de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)..
Ao contrário do ocorrido com a Enel, que recebeu uma multa de R$ 165 milhões da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) por falhas no restabelecimento da energia em São Paulo após um temporal em 3 de novembro do ano passado, Araújo Júnior acredita que as empresas gaúchas não serão punidas pelo desabastecimento.
“Elas também são vítimas desse desastre natural. Essa situação entra no conceito de força maior, que é uma excludente de responsabilidade. Ou seja, a empresa não tem condições de prestar os serviços da maneira que deveria prestar, mas não é uma questão relacionada a falta de organização da empresa ou a falta de contingente de funcionários. É um problema que afeta todo o Estado”, afirma. “É diferente do caso de São Paulo porque a Enel demorou para restabelecer os serviços mesmo com a situação normalizada, enquanto o Rio Grande do Sul ainda não se recuperou e muitas cidades ainda estão debaixo da água”.
A Associação Nacional dos Bureaus de Crédito (ANBC), que representa o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), Serasa Experian, Equifax/Boa Vista e Quod, informou que suspendeu a negativação de devedores gaúchos por 60 dias, desde 1º de maio.
Igor Britto, diretor de Relações Institucionais do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), defende que a medida é essencial. “As receitas das pessoas em situações de calamidade são radicalmente atingidas. Pelo menos as medidas coercitivas devem ser paralisadas, como a inclusão do nome no SPC, além de proibir o débito automático de empréstimos consignados e a suspensão do serviço de telefonia para aqueles que estão inadimplentes.”
Britto afirma que participou de uma reunião com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e as principais empresas do ramo, onde propôs a proibição da suspensão do serviço telefônico por falta de pagamento em áreas afetadas pelas enchentes, mas o projeto foi rejeitado.
O Idec acredita que seja necessário criar um Marco Legal de Defesa de Consumidores Vítimas de Eventos Climáticos Extremos. “O primeiro ponto essencial nesse documento é uma lei que ajude a evitar o superendividamento do consumidor em uma situação de calamidade pública, que é quando os débitos superam os créditos. O ideal seria a suspensão temporária das cobranças, sem aplicação de juros ou multa, das principais dívidas essenciais, como de telefonia, internet, energia e água, além das dívidas financeiras, como financiamento de carro ou de casa e empréstimo consignado”, explica Britto.
“Nos admira que após tantas tragédias esse plano ainda não tenha sido elaborado, seja pelo presidente da República, Congresso ou até as agências reguladoras. Por exemplo, o Banco Central poderia criar os direitos do consumidor em meio a uma tragédia para o setor financeiro e a Aneel para o setor elétrico.”
O Ministério da Justiça e Segurança Pública já adiantou que a segunda edição do ‘Renegocia’, previsto para julho e agosto, deve contar com critérios especiais para as vítimas das enchentes.
Quem pode ser indenizado?
Enquanto tentam contabilizar os danos, os gaúchos também precisam olhar para o futuro. De acordo com Araújo Júnior, os consumidores provavelmente não terão direito a indenizações por parte do Estado. “Os eventos climáticos são previsíveis, mas não é possível saber quais estragos serão causados. Assim, a Justiça não costuma entender essas situações como passíveis de compensações”, avalia.
Já as vítimas que possuem seguros devem analisar cuidadosamente o contrato para compreender suas garantias. “O que prevalece no contrato com uma seguradora são as cláusulas contratuais, que podem variar de um cliente para outro. Por exemplo, algumas empresas indenizarão os consumidores que sofreram prejuízos com seus veículos, caso uma das cláusulas contratuais preveja ressarcimento em situações de alagamentos ou enchentes. Outros acordos podem não ter esse tipo de cobertura”, alerta.