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Opinião|Como proteger crianças e adolescentes na internet? Considerações sobre os desafios de uma geração digital


Por Ricardo Campos
Ricardo Campos. Foto: Arquivo pessoal

Há quase duas décadas, em 1996, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNESCO) instituiu um grupo de trabalho, integrado por especialistas, com o intuito de fixar as bases mundiais para a educação do século seguinte. Da comissão, resultou o estudo Educação: um tesouro a descobrir, com apresentação dos pilares da educação: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos e aprender a ser. À época, vivia-se a popularização do computador comercial e a disseminação do primeiro sistema operacional com interfaces gráficas, o Windows 95, marcando o início da internet comercial como a conhecemos hoje.

As iniciativas apresentadas no estudo da UNESCO estão intrinsecamente conectadas, não apenas por sua contemporaneidade, mas também por meio do pilar do "aprender a fazer" apresentado, o qual defende que a educação não deve focalizar exclusivamente na preparação profissional visando à futura entrada no mercado de trabalho. Isso se deve ao fato de que o modelo predominante, de natureza cognitivo-informativa e voltado à inovação, tornou obsoleta a concepção tradicional de formação profissional fixa. Em vez disso, surge a ênfase na competência pessoal, fundamentada em aspectos como habilidades comunicativas, capacidade de colaboração em equipe, iniciativa e adaptabilidade em um ambiente em constante transformação, características centrais do atual contexto industrial.

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As aprendizagens fundamentais destacadas na virada do século pelo documento institucional continuam de extrema relevância para as crianças e adolescentes do presente, nativos digitais que têm o virtual como o principal locus para criação e desenvolvimento de suas relações sociais, para o lazer e para a realização de suas atividades escolares. Para eles, a transversalidade dos saberes, a necessidade constante de aquisição de novos conhecimentos e a plasticidade profissional são elementos naturais das relações profissionais e pessoais das quais fazem parte.

No entanto, a imersão tecnológica, possibilitada por dispositivos como computadores, smartphones, aplicativos, redes sociais e jogos eletrônicos que permitem interações em tempo real entre múltiplos jogadores através de mensagens de texto, áudio e vídeo, vai além de fomentar o desenvolvimento de diversas competências pessoais e habilidades sociais. Essa imersão também introduz crianças e adolescentes em um ambiente problemático, caracterizado por uma série de riscos. Alguns desses riscos derivam das interações interpessoais que ocorrem nesse cenário, enquanto outros surgem da relação entre os usuários e as plataformas utilizadas, bem como da manipulação dos dados pessoais resultante dos serviços, mesmo que gratuitos.

A legislação nacional busca dar conta desse fenômeno, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e o Marco Civil da Internet, de 2014, além de previsões contidas em legislações esparsas. Contudo, o direito pátrio ainda não consegue fazer frente ao fenômeno multifacetado e complexo que é a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital. A iniciativa mais recente, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais de 2018, abordou o tema de maneira sucinta, indicando que os dados pessoais de crianças e adolescentes são considerados de natureza sensível e o tratamento deve ser realizado com base no seu melhor interesse, com foco quase exclusivo no conceito de consentimento, a ser obtido por parte de pais e responsáveis e utilizado como fundamento legal para o tratamento de dados pessoais realizado. A legislação em vigor falha por ser sucinta na abordagem geral sobre o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, que são coletados e utilizados em inúmeras situações, em ambiente analógico e digital, além de não possuir dispositivos específicos destinados à regulamentação de situações já plenamente inseridas no tecido social, como plataformas educacionais, jogos eletrônicos, brinquedos inteligentes, criação de contas de usuários em redes sociais por crianças e adolescentes, entre tantos outros.

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Em perspectiva comparada, vislumbram-se diversas as iniciativas de regulamentação da proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Nos Estados Unidos, pioneiro na elaboração de legislação focada na proteção da privacidade de crianças, o Children's Online Protection Privacy Act (COPPA) de 1998 foi revisto em 2013 para adequar-se ao novo ambiente virtual e possibilitar maior controle dos pais e responsáveis sobre os dados pessoais de crianças coletados online. O Reino Unido editou em 2019 o "Age Appropriate Design Code" ("Children's Code"), um código incidente para aplicativos, sites, videogames, redes sociais e brinquedos inteligentes que são ou podem ser utilizados por crianças, com normas que indicam, entre outros, a necessidade de busca por altos padrões de privacidade em produtos e serviços oferecidos para essa faixa etária, minimização de coleta e de armazenamento dos dados. Já a Alemanha, em 2021, aprovou alterações na sua Lei de Proteção a? Juventude (Jugendschutzgesetzes) e, dentre as emendas, destacam-se aquelas que determinam que sejam adotadas configurações que limitem os riscos às crianças e aos adolescentes, com base na sua idade, e a criação de mecanismos de ajuda e denúncia dentro das próprias plataformas.

Torna-se cada vez mais crucial a elaboração de uma legislação nacional que esteja à altura desafios decorrentes do uso da internet e de dispositivos conectados online por menores de idade. Indubitavelmente, a aquisição e o aprimoramento das competências pessoais essenciais para cidadãos e profissionais deste século ocorrem principalmente no meio digital e têm início desde tenra idade. No entanto, essa inserção em ambientes virtuais não pode ocorrer sem um modelo de governança estruturado e cuidadosamente planejado para garantir a proteção de seus direitos e interesses. O progresso tecnológico deve ser concebido como uma via para promover a integração social e proporcionar oportunidades de desenvolvimento intelectual; deve, também, ser sempre gerenciado de forma prudente para mitigar os riscos que surgem do tratamento inadequado e excessivo dos dados pessoais de crianças e adolescentes, tendo em vista, sobretudo, seu estágio peculiar de desenvolvimento.

*Ricardo Campos é doutor e mestre em Direito pela Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Docente na Goethe Universität Frankfurt am Main. Diretor do Legal Grounds Institute. Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Advogado

Ricardo Campos. Foto: Arquivo pessoal

Há quase duas décadas, em 1996, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNESCO) instituiu um grupo de trabalho, integrado por especialistas, com o intuito de fixar as bases mundiais para a educação do século seguinte. Da comissão, resultou o estudo Educação: um tesouro a descobrir, com apresentação dos pilares da educação: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos e aprender a ser. À época, vivia-se a popularização do computador comercial e a disseminação do primeiro sistema operacional com interfaces gráficas, o Windows 95, marcando o início da internet comercial como a conhecemos hoje.

As iniciativas apresentadas no estudo da UNESCO estão intrinsecamente conectadas, não apenas por sua contemporaneidade, mas também por meio do pilar do "aprender a fazer" apresentado, o qual defende que a educação não deve focalizar exclusivamente na preparação profissional visando à futura entrada no mercado de trabalho. Isso se deve ao fato de que o modelo predominante, de natureza cognitivo-informativa e voltado à inovação, tornou obsoleta a concepção tradicional de formação profissional fixa. Em vez disso, surge a ênfase na competência pessoal, fundamentada em aspectos como habilidades comunicativas, capacidade de colaboração em equipe, iniciativa e adaptabilidade em um ambiente em constante transformação, características centrais do atual contexto industrial.

As aprendizagens fundamentais destacadas na virada do século pelo documento institucional continuam de extrema relevância para as crianças e adolescentes do presente, nativos digitais que têm o virtual como o principal locus para criação e desenvolvimento de suas relações sociais, para o lazer e para a realização de suas atividades escolares. Para eles, a transversalidade dos saberes, a necessidade constante de aquisição de novos conhecimentos e a plasticidade profissional são elementos naturais das relações profissionais e pessoais das quais fazem parte.

No entanto, a imersão tecnológica, possibilitada por dispositivos como computadores, smartphones, aplicativos, redes sociais e jogos eletrônicos que permitem interações em tempo real entre múltiplos jogadores através de mensagens de texto, áudio e vídeo, vai além de fomentar o desenvolvimento de diversas competências pessoais e habilidades sociais. Essa imersão também introduz crianças e adolescentes em um ambiente problemático, caracterizado por uma série de riscos. Alguns desses riscos derivam das interações interpessoais que ocorrem nesse cenário, enquanto outros surgem da relação entre os usuários e as plataformas utilizadas, bem como da manipulação dos dados pessoais resultante dos serviços, mesmo que gratuitos.

A legislação nacional busca dar conta desse fenômeno, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e o Marco Civil da Internet, de 2014, além de previsões contidas em legislações esparsas. Contudo, o direito pátrio ainda não consegue fazer frente ao fenômeno multifacetado e complexo que é a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital. A iniciativa mais recente, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais de 2018, abordou o tema de maneira sucinta, indicando que os dados pessoais de crianças e adolescentes são considerados de natureza sensível e o tratamento deve ser realizado com base no seu melhor interesse, com foco quase exclusivo no conceito de consentimento, a ser obtido por parte de pais e responsáveis e utilizado como fundamento legal para o tratamento de dados pessoais realizado. A legislação em vigor falha por ser sucinta na abordagem geral sobre o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, que são coletados e utilizados em inúmeras situações, em ambiente analógico e digital, além de não possuir dispositivos específicos destinados à regulamentação de situações já plenamente inseridas no tecido social, como plataformas educacionais, jogos eletrônicos, brinquedos inteligentes, criação de contas de usuários em redes sociais por crianças e adolescentes, entre tantos outros.

Em perspectiva comparada, vislumbram-se diversas as iniciativas de regulamentação da proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Nos Estados Unidos, pioneiro na elaboração de legislação focada na proteção da privacidade de crianças, o Children's Online Protection Privacy Act (COPPA) de 1998 foi revisto em 2013 para adequar-se ao novo ambiente virtual e possibilitar maior controle dos pais e responsáveis sobre os dados pessoais de crianças coletados online. O Reino Unido editou em 2019 o "Age Appropriate Design Code" ("Children's Code"), um código incidente para aplicativos, sites, videogames, redes sociais e brinquedos inteligentes que são ou podem ser utilizados por crianças, com normas que indicam, entre outros, a necessidade de busca por altos padrões de privacidade em produtos e serviços oferecidos para essa faixa etária, minimização de coleta e de armazenamento dos dados. Já a Alemanha, em 2021, aprovou alterações na sua Lei de Proteção a? Juventude (Jugendschutzgesetzes) e, dentre as emendas, destacam-se aquelas que determinam que sejam adotadas configurações que limitem os riscos às crianças e aos adolescentes, com base na sua idade, e a criação de mecanismos de ajuda e denúncia dentro das próprias plataformas.

Torna-se cada vez mais crucial a elaboração de uma legislação nacional que esteja à altura desafios decorrentes do uso da internet e de dispositivos conectados online por menores de idade. Indubitavelmente, a aquisição e o aprimoramento das competências pessoais essenciais para cidadãos e profissionais deste século ocorrem principalmente no meio digital e têm início desde tenra idade. No entanto, essa inserção em ambientes virtuais não pode ocorrer sem um modelo de governança estruturado e cuidadosamente planejado para garantir a proteção de seus direitos e interesses. O progresso tecnológico deve ser concebido como uma via para promover a integração social e proporcionar oportunidades de desenvolvimento intelectual; deve, também, ser sempre gerenciado de forma prudente para mitigar os riscos que surgem do tratamento inadequado e excessivo dos dados pessoais de crianças e adolescentes, tendo em vista, sobretudo, seu estágio peculiar de desenvolvimento.

*Ricardo Campos é doutor e mestre em Direito pela Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Docente na Goethe Universität Frankfurt am Main. Diretor do Legal Grounds Institute. Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Advogado

Ricardo Campos. Foto: Arquivo pessoal

Há quase duas décadas, em 1996, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNESCO) instituiu um grupo de trabalho, integrado por especialistas, com o intuito de fixar as bases mundiais para a educação do século seguinte. Da comissão, resultou o estudo Educação: um tesouro a descobrir, com apresentação dos pilares da educação: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos e aprender a ser. À época, vivia-se a popularização do computador comercial e a disseminação do primeiro sistema operacional com interfaces gráficas, o Windows 95, marcando o início da internet comercial como a conhecemos hoje.

As iniciativas apresentadas no estudo da UNESCO estão intrinsecamente conectadas, não apenas por sua contemporaneidade, mas também por meio do pilar do "aprender a fazer" apresentado, o qual defende que a educação não deve focalizar exclusivamente na preparação profissional visando à futura entrada no mercado de trabalho. Isso se deve ao fato de que o modelo predominante, de natureza cognitivo-informativa e voltado à inovação, tornou obsoleta a concepção tradicional de formação profissional fixa. Em vez disso, surge a ênfase na competência pessoal, fundamentada em aspectos como habilidades comunicativas, capacidade de colaboração em equipe, iniciativa e adaptabilidade em um ambiente em constante transformação, características centrais do atual contexto industrial.

As aprendizagens fundamentais destacadas na virada do século pelo documento institucional continuam de extrema relevância para as crianças e adolescentes do presente, nativos digitais que têm o virtual como o principal locus para criação e desenvolvimento de suas relações sociais, para o lazer e para a realização de suas atividades escolares. Para eles, a transversalidade dos saberes, a necessidade constante de aquisição de novos conhecimentos e a plasticidade profissional são elementos naturais das relações profissionais e pessoais das quais fazem parte.

No entanto, a imersão tecnológica, possibilitada por dispositivos como computadores, smartphones, aplicativos, redes sociais e jogos eletrônicos que permitem interações em tempo real entre múltiplos jogadores através de mensagens de texto, áudio e vídeo, vai além de fomentar o desenvolvimento de diversas competências pessoais e habilidades sociais. Essa imersão também introduz crianças e adolescentes em um ambiente problemático, caracterizado por uma série de riscos. Alguns desses riscos derivam das interações interpessoais que ocorrem nesse cenário, enquanto outros surgem da relação entre os usuários e as plataformas utilizadas, bem como da manipulação dos dados pessoais resultante dos serviços, mesmo que gratuitos.

A legislação nacional busca dar conta desse fenômeno, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e o Marco Civil da Internet, de 2014, além de previsões contidas em legislações esparsas. Contudo, o direito pátrio ainda não consegue fazer frente ao fenômeno multifacetado e complexo que é a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital. A iniciativa mais recente, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais de 2018, abordou o tema de maneira sucinta, indicando que os dados pessoais de crianças e adolescentes são considerados de natureza sensível e o tratamento deve ser realizado com base no seu melhor interesse, com foco quase exclusivo no conceito de consentimento, a ser obtido por parte de pais e responsáveis e utilizado como fundamento legal para o tratamento de dados pessoais realizado. A legislação em vigor falha por ser sucinta na abordagem geral sobre o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, que são coletados e utilizados em inúmeras situações, em ambiente analógico e digital, além de não possuir dispositivos específicos destinados à regulamentação de situações já plenamente inseridas no tecido social, como plataformas educacionais, jogos eletrônicos, brinquedos inteligentes, criação de contas de usuários em redes sociais por crianças e adolescentes, entre tantos outros.

Em perspectiva comparada, vislumbram-se diversas as iniciativas de regulamentação da proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Nos Estados Unidos, pioneiro na elaboração de legislação focada na proteção da privacidade de crianças, o Children's Online Protection Privacy Act (COPPA) de 1998 foi revisto em 2013 para adequar-se ao novo ambiente virtual e possibilitar maior controle dos pais e responsáveis sobre os dados pessoais de crianças coletados online. O Reino Unido editou em 2019 o "Age Appropriate Design Code" ("Children's Code"), um código incidente para aplicativos, sites, videogames, redes sociais e brinquedos inteligentes que são ou podem ser utilizados por crianças, com normas que indicam, entre outros, a necessidade de busca por altos padrões de privacidade em produtos e serviços oferecidos para essa faixa etária, minimização de coleta e de armazenamento dos dados. Já a Alemanha, em 2021, aprovou alterações na sua Lei de Proteção a? Juventude (Jugendschutzgesetzes) e, dentre as emendas, destacam-se aquelas que determinam que sejam adotadas configurações que limitem os riscos às crianças e aos adolescentes, com base na sua idade, e a criação de mecanismos de ajuda e denúncia dentro das próprias plataformas.

Torna-se cada vez mais crucial a elaboração de uma legislação nacional que esteja à altura desafios decorrentes do uso da internet e de dispositivos conectados online por menores de idade. Indubitavelmente, a aquisição e o aprimoramento das competências pessoais essenciais para cidadãos e profissionais deste século ocorrem principalmente no meio digital e têm início desde tenra idade. No entanto, essa inserção em ambientes virtuais não pode ocorrer sem um modelo de governança estruturado e cuidadosamente planejado para garantir a proteção de seus direitos e interesses. O progresso tecnológico deve ser concebido como uma via para promover a integração social e proporcionar oportunidades de desenvolvimento intelectual; deve, também, ser sempre gerenciado de forma prudente para mitigar os riscos que surgem do tratamento inadequado e excessivo dos dados pessoais de crianças e adolescentes, tendo em vista, sobretudo, seu estágio peculiar de desenvolvimento.

*Ricardo Campos é doutor e mestre em Direito pela Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Docente na Goethe Universität Frankfurt am Main. Diretor do Legal Grounds Institute. Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Advogado

Ricardo Campos. Foto: Arquivo pessoal

Há quase duas décadas, em 1996, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNESCO) instituiu um grupo de trabalho, integrado por especialistas, com o intuito de fixar as bases mundiais para a educação do século seguinte. Da comissão, resultou o estudo Educação: um tesouro a descobrir, com apresentação dos pilares da educação: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos e aprender a ser. À época, vivia-se a popularização do computador comercial e a disseminação do primeiro sistema operacional com interfaces gráficas, o Windows 95, marcando o início da internet comercial como a conhecemos hoje.

As iniciativas apresentadas no estudo da UNESCO estão intrinsecamente conectadas, não apenas por sua contemporaneidade, mas também por meio do pilar do "aprender a fazer" apresentado, o qual defende que a educação não deve focalizar exclusivamente na preparação profissional visando à futura entrada no mercado de trabalho. Isso se deve ao fato de que o modelo predominante, de natureza cognitivo-informativa e voltado à inovação, tornou obsoleta a concepção tradicional de formação profissional fixa. Em vez disso, surge a ênfase na competência pessoal, fundamentada em aspectos como habilidades comunicativas, capacidade de colaboração em equipe, iniciativa e adaptabilidade em um ambiente em constante transformação, características centrais do atual contexto industrial.

As aprendizagens fundamentais destacadas na virada do século pelo documento institucional continuam de extrema relevância para as crianças e adolescentes do presente, nativos digitais que têm o virtual como o principal locus para criação e desenvolvimento de suas relações sociais, para o lazer e para a realização de suas atividades escolares. Para eles, a transversalidade dos saberes, a necessidade constante de aquisição de novos conhecimentos e a plasticidade profissional são elementos naturais das relações profissionais e pessoais das quais fazem parte.

No entanto, a imersão tecnológica, possibilitada por dispositivos como computadores, smartphones, aplicativos, redes sociais e jogos eletrônicos que permitem interações em tempo real entre múltiplos jogadores através de mensagens de texto, áudio e vídeo, vai além de fomentar o desenvolvimento de diversas competências pessoais e habilidades sociais. Essa imersão também introduz crianças e adolescentes em um ambiente problemático, caracterizado por uma série de riscos. Alguns desses riscos derivam das interações interpessoais que ocorrem nesse cenário, enquanto outros surgem da relação entre os usuários e as plataformas utilizadas, bem como da manipulação dos dados pessoais resultante dos serviços, mesmo que gratuitos.

A legislação nacional busca dar conta desse fenômeno, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e o Marco Civil da Internet, de 2014, além de previsões contidas em legislações esparsas. Contudo, o direito pátrio ainda não consegue fazer frente ao fenômeno multifacetado e complexo que é a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital. A iniciativa mais recente, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais de 2018, abordou o tema de maneira sucinta, indicando que os dados pessoais de crianças e adolescentes são considerados de natureza sensível e o tratamento deve ser realizado com base no seu melhor interesse, com foco quase exclusivo no conceito de consentimento, a ser obtido por parte de pais e responsáveis e utilizado como fundamento legal para o tratamento de dados pessoais realizado. A legislação em vigor falha por ser sucinta na abordagem geral sobre o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, que são coletados e utilizados em inúmeras situações, em ambiente analógico e digital, além de não possuir dispositivos específicos destinados à regulamentação de situações já plenamente inseridas no tecido social, como plataformas educacionais, jogos eletrônicos, brinquedos inteligentes, criação de contas de usuários em redes sociais por crianças e adolescentes, entre tantos outros.

Em perspectiva comparada, vislumbram-se diversas as iniciativas de regulamentação da proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Nos Estados Unidos, pioneiro na elaboração de legislação focada na proteção da privacidade de crianças, o Children's Online Protection Privacy Act (COPPA) de 1998 foi revisto em 2013 para adequar-se ao novo ambiente virtual e possibilitar maior controle dos pais e responsáveis sobre os dados pessoais de crianças coletados online. O Reino Unido editou em 2019 o "Age Appropriate Design Code" ("Children's Code"), um código incidente para aplicativos, sites, videogames, redes sociais e brinquedos inteligentes que são ou podem ser utilizados por crianças, com normas que indicam, entre outros, a necessidade de busca por altos padrões de privacidade em produtos e serviços oferecidos para essa faixa etária, minimização de coleta e de armazenamento dos dados. Já a Alemanha, em 2021, aprovou alterações na sua Lei de Proteção a? Juventude (Jugendschutzgesetzes) e, dentre as emendas, destacam-se aquelas que determinam que sejam adotadas configurações que limitem os riscos às crianças e aos adolescentes, com base na sua idade, e a criação de mecanismos de ajuda e denúncia dentro das próprias plataformas.

Torna-se cada vez mais crucial a elaboração de uma legislação nacional que esteja à altura desafios decorrentes do uso da internet e de dispositivos conectados online por menores de idade. Indubitavelmente, a aquisição e o aprimoramento das competências pessoais essenciais para cidadãos e profissionais deste século ocorrem principalmente no meio digital e têm início desde tenra idade. No entanto, essa inserção em ambientes virtuais não pode ocorrer sem um modelo de governança estruturado e cuidadosamente planejado para garantir a proteção de seus direitos e interesses. O progresso tecnológico deve ser concebido como uma via para promover a integração social e proporcionar oportunidades de desenvolvimento intelectual; deve, também, ser sempre gerenciado de forma prudente para mitigar os riscos que surgem do tratamento inadequado e excessivo dos dados pessoais de crianças e adolescentes, tendo em vista, sobretudo, seu estágio peculiar de desenvolvimento.

*Ricardo Campos é doutor e mestre em Direito pela Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Docente na Goethe Universität Frankfurt am Main. Diretor do Legal Grounds Institute. Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Advogado

Ricardo Campos. Foto: Arquivo pessoal

Há quase duas décadas, em 1996, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNESCO) instituiu um grupo de trabalho, integrado por especialistas, com o intuito de fixar as bases mundiais para a educação do século seguinte. Da comissão, resultou o estudo Educação: um tesouro a descobrir, com apresentação dos pilares da educação: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos e aprender a ser. À época, vivia-se a popularização do computador comercial e a disseminação do primeiro sistema operacional com interfaces gráficas, o Windows 95, marcando o início da internet comercial como a conhecemos hoje.

As iniciativas apresentadas no estudo da UNESCO estão intrinsecamente conectadas, não apenas por sua contemporaneidade, mas também por meio do pilar do "aprender a fazer" apresentado, o qual defende que a educação não deve focalizar exclusivamente na preparação profissional visando à futura entrada no mercado de trabalho. Isso se deve ao fato de que o modelo predominante, de natureza cognitivo-informativa e voltado à inovação, tornou obsoleta a concepção tradicional de formação profissional fixa. Em vez disso, surge a ênfase na competência pessoal, fundamentada em aspectos como habilidades comunicativas, capacidade de colaboração em equipe, iniciativa e adaptabilidade em um ambiente em constante transformação, características centrais do atual contexto industrial.

As aprendizagens fundamentais destacadas na virada do século pelo documento institucional continuam de extrema relevância para as crianças e adolescentes do presente, nativos digitais que têm o virtual como o principal locus para criação e desenvolvimento de suas relações sociais, para o lazer e para a realização de suas atividades escolares. Para eles, a transversalidade dos saberes, a necessidade constante de aquisição de novos conhecimentos e a plasticidade profissional são elementos naturais das relações profissionais e pessoais das quais fazem parte.

No entanto, a imersão tecnológica, possibilitada por dispositivos como computadores, smartphones, aplicativos, redes sociais e jogos eletrônicos que permitem interações em tempo real entre múltiplos jogadores através de mensagens de texto, áudio e vídeo, vai além de fomentar o desenvolvimento de diversas competências pessoais e habilidades sociais. Essa imersão também introduz crianças e adolescentes em um ambiente problemático, caracterizado por uma série de riscos. Alguns desses riscos derivam das interações interpessoais que ocorrem nesse cenário, enquanto outros surgem da relação entre os usuários e as plataformas utilizadas, bem como da manipulação dos dados pessoais resultante dos serviços, mesmo que gratuitos.

A legislação nacional busca dar conta desse fenômeno, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e o Marco Civil da Internet, de 2014, além de previsões contidas em legislações esparsas. Contudo, o direito pátrio ainda não consegue fazer frente ao fenômeno multifacetado e complexo que é a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital. A iniciativa mais recente, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais de 2018, abordou o tema de maneira sucinta, indicando que os dados pessoais de crianças e adolescentes são considerados de natureza sensível e o tratamento deve ser realizado com base no seu melhor interesse, com foco quase exclusivo no conceito de consentimento, a ser obtido por parte de pais e responsáveis e utilizado como fundamento legal para o tratamento de dados pessoais realizado. A legislação em vigor falha por ser sucinta na abordagem geral sobre o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, que são coletados e utilizados em inúmeras situações, em ambiente analógico e digital, além de não possuir dispositivos específicos destinados à regulamentação de situações já plenamente inseridas no tecido social, como plataformas educacionais, jogos eletrônicos, brinquedos inteligentes, criação de contas de usuários em redes sociais por crianças e adolescentes, entre tantos outros.

Em perspectiva comparada, vislumbram-se diversas as iniciativas de regulamentação da proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Nos Estados Unidos, pioneiro na elaboração de legislação focada na proteção da privacidade de crianças, o Children's Online Protection Privacy Act (COPPA) de 1998 foi revisto em 2013 para adequar-se ao novo ambiente virtual e possibilitar maior controle dos pais e responsáveis sobre os dados pessoais de crianças coletados online. O Reino Unido editou em 2019 o "Age Appropriate Design Code" ("Children's Code"), um código incidente para aplicativos, sites, videogames, redes sociais e brinquedos inteligentes que são ou podem ser utilizados por crianças, com normas que indicam, entre outros, a necessidade de busca por altos padrões de privacidade em produtos e serviços oferecidos para essa faixa etária, minimização de coleta e de armazenamento dos dados. Já a Alemanha, em 2021, aprovou alterações na sua Lei de Proteção a? Juventude (Jugendschutzgesetzes) e, dentre as emendas, destacam-se aquelas que determinam que sejam adotadas configurações que limitem os riscos às crianças e aos adolescentes, com base na sua idade, e a criação de mecanismos de ajuda e denúncia dentro das próprias plataformas.

Torna-se cada vez mais crucial a elaboração de uma legislação nacional que esteja à altura desafios decorrentes do uso da internet e de dispositivos conectados online por menores de idade. Indubitavelmente, a aquisição e o aprimoramento das competências pessoais essenciais para cidadãos e profissionais deste século ocorrem principalmente no meio digital e têm início desde tenra idade. No entanto, essa inserção em ambientes virtuais não pode ocorrer sem um modelo de governança estruturado e cuidadosamente planejado para garantir a proteção de seus direitos e interesses. O progresso tecnológico deve ser concebido como uma via para promover a integração social e proporcionar oportunidades de desenvolvimento intelectual; deve, também, ser sempre gerenciado de forma prudente para mitigar os riscos que surgem do tratamento inadequado e excessivo dos dados pessoais de crianças e adolescentes, tendo em vista, sobretudo, seu estágio peculiar de desenvolvimento.

*Ricardo Campos é doutor e mestre em Direito pela Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Docente na Goethe Universität Frankfurt am Main. Diretor do Legal Grounds Institute. Coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Advogado

Opinião por Ricardo Campos

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