Promessa de campanha do então candidato Jair Bolsonaro (sem partido), a flexibilização do porte de armas e munições acompanhou o presidente desde que ele assumiu o cargo.
Apesar das reuniões frequentes com lobistas e empresários do setor e das cobranças dirigidas aos ministros, a pauta ainda enfrenta impasses de ordem jurídica. Isso porque a portaria do governo federal que, em abril, triplicou o limite para a compra de munições aos portadores de arma de fogo foi derrubada pela Justiça Federal de São Paulo. O governo chegou a apresentar recurso, mas a decisão foi referendada esta semana em segunda instância.
O Estadão mostrou, com exclusividade, que a medida foi fundamentada em pareceres de três linhas, um deles assinado por um general que já estava exonerado da Direção de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército, órgão de apoio técnico responsável por fiscalizar a aquisição de armamentos, explosivos e outros materiais controlados por lei.
Além disso, Bolsonaro está sendo investigado por possível interferência nas Forças Armadas em razão da revogação de três outras portarias que aprimoravam o rastreamento e a marcação das balas e armas de fogo. As normas, elaboradas por um Comitê Técnico do Exército, eram exigências do Ministério Público Federal e do Tribunal de Contas da União e, na prática, dificultavam o acesso do crime organizado a munições e armamentos extraviados das forças policiais do País. Elas foram anuladas pelo Ministério da Defesa menos de 24 horas após entrarem em vigor.
O próprio Exército reconheceu que a revogação dos dispositivos seguiu 'inúmeros questionamentos' e, por isso, abriu uma consulta pública, que expirou neste sábado, 4, para a proposição de edições. Apesar da iniciativa, a petição parece não ter tido êxito em garantir que a sociedade seja correta e devidamente consultada sobre a proposta.
Os processos de consulta pública contam com legislação específica que estabelece normas quanto à elaboração, redação, alteração, consolidação e encaminhamento de sugestões recebidas. O objetivo é assegurar a idoneidade do procedimento, tendo em vista o fator de legitimação que a manifestação popular confere às propostas legislativas. O procedimento aberto pelo Exército, no entanto, não cumpriu requisitos. Um deles, básico, é a ampla divulgação.
"A divulgação deve ser feita através da assessoria de imprensa da Presidência e do próprio site e meios de comunicação do Ministério da Defesa", diz o advogado constitucionalista Adib Abdouni. "Este tipo de questão, como influencia diretamente a população, não pode ser tratada em um âmbito administrativo restrito", complementa.
A reportagem apurou que agentes públicos que pesquisam ou trabalham para combater o tráfico de armas e o crime organizado, incluindo promotores e procuradores, não foram avisados da consulta. Além disso, o formulário ficou no ar por apenas cinco dias, de 29 de junho a 4 de julho.
Para Bruno Langeani, porta-voz da ONG Instituto Sou da Paz, a iniciativa serve apenas para responder a ações na Justiça que seguiram a revogação das portarias e 'criar uma justificativa' para que o Exército tenha voltado atrás na proposta inicial. "Nos parece que é mais uma questão pró-forma, tanto olhando pelo tempo em que a consulta ficou no ar, que até para nós que cobrimos esse assunto há 20 anos foi curto, quanto pelo histórico: o Exército nunca fez isso. Eles revogaram portarias que traziam uma série de avanços para o trabalho da polícia por clara interferência do presidente, que deu uma canetada, e agora parece que estão tentando criar uma justificativa para voltar atrás", diz.
Embora não tenha sido divulgada nas redes sociais oficiais do governo, núcleos pró-armas prontamente se reuniram para enviar as demandas no formulário disponibilizado no site da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados. A obrigatoriedade de gravação do nome do importador no corpo dos armamentos é um dos principais pontos que desagrada lobistas, uma vez que gera aumento no custo de produção.
"A gente apresenta as nossas propostas e o Exército sempre tem sido bastante razoável conosco. Tudo o que a gente apresenta para eles de forma fundamentada, eles normalmente têm acatado", disse o presidente da Associação Brasileira de Atiradores Civis (Abate), Arnaldo Adasz, em transmissão ao vivo para chamar os membros a deixarem suas manifestações.
O advogado César Mello, influenciador digital armamentista, também fez uma live no último dia 29, quando a consulta foi lançada, pedindo que os seguidores se posicionassem para 'atingir o objetivo final que é frustrar o uso da consulta pública para homologar uma coisa que já está decidida'. "Cada um vai fazer o seu texto individualmente com pequenas variações para demonstrar que sim, existe uma coordenação, óbvio, mas é a opinião individual de cada um", disse.
A Associação Nacional Movimento Pró Armas (AMPA) lançou um documento de 160 páginas com comentários sobre as normas reguladoras. O arquivo foi disponibilizado online em portal pró-armas com o aviso: "lembre-se de não copiar simplesmente todas as respostas".
Mudanças no texto
O Instituto Sou da Paz comparou o texto das portarias revogadas com a íntegra da minuta disponibilizada na consulta pública e encontrou uma série de pontos que já foram alterados ou suprimidos neste último. Entre eles, a obrigatoriedade do Exército compartilhar seu banco de dados para rastreamento de armas e munições com as polícias e a Secretaria Nacional de Segurança Pública, como estratégia para agilizar investigações.
As portarias também exigiam que fábricas e lojas de armas e munições guardassem registros de venda por tempo indeterminado. Na minuta da consulta, o tempo já aparece reduzido para cinco anos - quando, segundo Langeani, a média de circulação de uma arma de fogo no crime organizado é de seis a oito vezes maior, variando entre 30 e 40 anos.
Além disso, foi suprimido o trecho da proposta inicial que trazia estímulos para limitar o uso de uma mesma marcação a lotes de no máximo 10 mil munições, de modo a facilitar a identificação da origem em casos de desvios. Este ponto foi incluído por pressão do Ministério Público Federal após o assassinato da vereadora Marielle Franco. A munição usada para matar a parlamentar é de um lote de 1,8 milhão de cartuchos que, fracionado, teve destinos tão distintos quanto a venda para a Polícia Federal e o uso em uma chacina na grande São Paulo.
A exigência do uso de estojos marcados em 'recargas caseiras' também desapareceu. A munição recarregada é aquela montada manualmente preenchendo o projetil com pólvora. Sem a exigência da marcação, a munição usada por colecionadores, atiradores desportivos e caçadores, os chamados CACs, não pode ser rastreada.
COM A PALAVRA, O MINISTÉRIO DA DEFESA E A DIRETORIA DE PRODUTOS CONTROLADOS DO EXÉRCITO
"Houve ampla transparência e publicidade na divulgação da consulta pública. A consulta em questão, inclusive, foi publicada no Diário Oficial da União Nr 121, de 26 de junho de 2020, com o intuito de proporcionar maior transparência aos processos, bem como colher comentários e sugestões dos interessados e usuários sobre os Atos Normativos.
Ressalta-se que a revogação das Portarias 46, 60 e 61 foi um ato administrativo de competência do Comandante Logístico, após verificar a existência de inconsistências técnicas e diversos questionamentos dos usuários do Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados (SisFPC), determinando assim um reestudo das referidas Portarias.
Isto posto, a Consulta Eletrônica Pública se mostra um instrumento adequado para esclarecer as questões levantadas, e verificar o entendimento dos mesmos usuários sobre os conteúdos e consequências das normas em estudo.
Tendo em vista o assunto ter sido bastante debatido por ocasião da revogação das Portarias nº 46, 60 e 61, a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) entende que o período disponibilizado é adequado para colher comentários e sugestões dos interessados e usuários sobre as Normas em tela."