A descoberta de intensas, desastrosas e inaceitáveis irregularidades na condução da Lava Jato causou uma reversão da opinião pública. Até à exposição pública dessas irregularidades, havia no país uma percepção, que acredito majoritária, de que o Brasil, especialmente no sistema judiciário penal, tivesse mudado de patamar. Por um curto período grande parte da população acreditou que, finalmente, a Justiça penal seria igual para todos. Criminosos de colarinho branco e de larga projeção social, empresarial e política estavam no banco dos réus, vários deles recolhidos a presídios. Alguns conferiram indiscutível credibilidade às suas confissões, concomitantes à prova material de seus crimes constituída pela devolução aos cofres públicos de fortunas incalculáveis.
Quando vieram ao conhecimento do grande público as ilegalidades praticadas sob a bandeira da Lava Jato, que já eram desde sempre denunciadas por um pequeno número de criminalistas, as reações se manifestaram em três diferentes grandes correntes de opinião. Todas elevadas à máxima potência pelas decisões judiciais que anularam processos e condenações ilegais, mas acabaram resultando na prescrição e na impunidade de muitos crimes de corrupção.
A primeira dessas correntes se forma pela massa da população que se entrega à frustração e ao desânimo, na crença de que não há o que dê jeito no Brasil. Essa parcela da sociedade acredita que o sistema judiciário é ineficiente, e os mais levianos falam em conivência. Estaríamos, pois, predestinados a ser um país corrupto.
Uma outra corrente de opinião, da qual certamente fazem parte muitos dos que foram acusados ou condenados pela Lava Jato, procura criar uma narrativa ideológica segundo a qual se devem deixar embaixo do tapete, ou submeter à anestesia da memória social, os muitos crimes de corrupção que efetivamente ocorreram. A versão de que esses crimes efetivamente ocorreram deveria ser tratada como um grande equívoco histórico. A estes convém a deturpada narrativa de que tudo foi uma grande conspiração do Departamento de Estado norte americano, com o objetivo de destruir as empresas brasileiras de infraestrutura e petróleo, que estariam incomodando o mercado internacional, apresentando-se com competitividade na disputa de grandes obras fora do Brasil.
Fundados na simbiose entre o desânimo de muitos e a articulação mistificadora de poucos, mas eficientes detratores da verdade, os corruptos atuais se sentem revigorados e entusiasmados com o que interpretam como certeza da impunidade. Para os corruptos atuais, o enterro (merecido) da Lava Jato é um soar de cornetas chamando e reunindo para o ataque aos cofres públicos, aqueles que, em debandada, até recentemente fugiam dos golpes de espada da deusa da Justiça.
A terceira corrente procura observar todos esses fatos de uma distância segura e panorâmica, que lhe permita visão de contexto e em perspectiva. Os que se movem por essa forma de pensar acreditam em uma evolução histórica na qual atuam forças culturais e econômicas de médio e longo prazos.
O combate à corrupção não é apenas uma bandeira ética ou moral. É, na realidade, uma exigência do capitalismo atual. Explica-se.
A competição entre os empreendedores capitalistas é da essência do capitalismo. Mercado é o local, físico ou virtual, em que os agentes da produção econômica se encontram para, competindo entre si, pôr em prática a lei da oferta e da procura. O mercado tem regras. A primeira e principal é justamente a lei da oferta e da procura. A segunda é a liberdade empreender, de comprar e de vender. A terceira e não menos importante é a competição entre os seus agentes. É a livre concorrência entre os agentes do mercado que mantém o capitalismo.
Exatamente por isso, há séculos os sistemas de autopreservação do capitalismo criaram mecanismos de combate aos trusts, aos cartéis, ao dumping e a toda forma de concorrência desleal. Essas práticas corrompem as estruturas do capitalismo.
Os diferentes sistemas de proteção do mercado sempre estiveram atentos às relações competitivas privadas entre agentes produtores, e, paralelamente às relações destes com os consumidores. São clássicos, e já duram séculos, os institutos de defesa da livre iniciativa e de repressão à concorrência desleal. Tudo para permitir o natural funcionamento do mercado e dos seus agentes, entre os quais estão os consumidores.
Nos últimos vinte anos, especialmente desde o Sarbanes-Oxley Act (2002), o capitalismo se deu conta de que não basta combater a corrupção desse sistema nas relações privadas. É indispensável evitar a corrupção nas relações das empresas privadas com o Estado. Empresas que obedecem às leis não conseguem competir com empresas que corrompem o Estado.
Dessa constatação óbvia surgiram, em vários países do mundo, as políticas de compliance. A integridade empresarial passou a ser requisito inegociável para todos os países que pretendam participar do comércio internacional e das atividades industriais e de serviços que lhe são inerentes.
Portanto, se o Brasil pretende ser protagonista relevante na economia mundial, terá que persistir no combate à corrupção. E aprender as lições pelas quais pagou caro.
A Lava Jato revelou um mar de lama fétida, mas sucumbiu pela ideia lunática de que a Justiça pudesse escrever o Direito por linhas tortas. A corrosão do sistema judiciário para evitar o devido processo legal não é pior nem melhor do que a corrupção do sistema econômico.
Isso não significa que se tenha restabelecido definitivamente a impunidade dos agentes públicos e do colarinho branco.
As regras capitalistas de repressão à concorrência desleal continuam válidas e o sistema econômico está cada dia mais atento ao absurdo de ter boa parte da arrecadação tributária e das receitas de estatais desviadas pela corrupção. São as estruturas econômicas que dão sustentação as estruturas políticas.
Forçadas pelas regras de compliance a se comportar com integridade, as empresas afinadas com princípios do capitalismo competitivo, e conscientes do custo de sua violação, não demorarão para se dar conta do risco tóxico que representam os políticos corruptos.
*Celso Cintra Mori é sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados. Membro do Conselho do Instituto dos Advogados de São Paulo (ex-vice-presidente). Ex-conselheiro da AASP - Associação dos Advogados de São Paulo e da secção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil. Ex-presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados