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‘O homicídio começa a ser parte do negócio’, diz delegado da PF sobre milícias nos crimes ambientais


Agostinho Gomes Cascardo Jr., que pesquisa o assunto há uma década e dirigiu a PF em Rondônia, alerta para avanço de facções violentas que veem na exploração ilegal de madeira e no garimpo clandestino oportunidade de expansão de negócios e ampliação de lucros

Por Rayssa Motta
Atualização:
Foto: Arquivo pessoal
Entrevista com Agostinho Gomes Cascardo JrDelegado de Polícia Federal

Com cifras bilionárias, os crimes ambientais vêm atraindo facções criminosas e grupos de milicianos que veem na exploração ilegal de madeira e no garimpo clandestino uma oportunidade para expandir os negócios ilícitos, ampliar os lucros e minimizar os riscos. O resultado é uma “profissionalização” dos crimes ambientais e o aumento da violência no mercado paralelo de madeira e minérios, afirma o delegado de Polícia Federal Agostinho Gomes Cascardo Jr.

Estudioso do tema há uma década, Cascardo Jr foi superintendente regional da PF em Rondônia, onde enfrentou o crime organizado que se instala na floresta. Atualmente, é adido da Polícia Federal na Bolívia.

Para o delegado, o desmatamento e o garimpo ilegais alcançaram o status de criminalidade organizada. “Com essa base miliciana ou de facções criminosas, o homicídio começa a ser parte do negócio”, afirma ao Estadão.

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O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, em junho de 2022, expôs a intersecção entre o crime organizado e a exploração ambiental.

No artigo Polícia Federal, Desmatamento e Crime Ambiental Organizado: Desafios e Perspectivas na Proteção da Floresta Amazônica, escrito em coautoria com o também delegado Franco Perazzoni, Cascardo Jr descreve como os grupos especializados em crimes ambientais têm usado técnicas cada vez mais complexas para operar à margem da lei. O texto faz parte do livro Crimes Ambientais na Amazônia: Lições e Desafios da Linha de Frente.

“A criminalidade, quando começa a envolver muitas pessoas, chega ao nível de criminalidade ambiental organizada. Uma estrutura piramidal, com divisão de tarefas, em que o objeto principal é o crime. Essa tem sido uma atividade muito lucrativa e, por isso, tem se disseminado”, pontua Cascardo Jr.

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Desmatamento avança na Amazônia pelas mãos do crime organizado. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Para o delegado, o investimento em capacitação é essencial para fazer frente ao avanço do crime organizado em matéria ambiental. A Operação Ganância, por exemplo, identificou um engenhoso esquema de lavagem de dinheiro obtido a partir da exploração ilegal de ouro em reservas indígenas em Rondônia. Os criminosos usaram criptoativos para lavar R$ 5 bilhões. Agentes federais treinados em tecnologia blockchain conseguiram identificar a fraude.

A tecnologia tem sido uma aliada da PF. A partir de imagens de satélite de sistemas gratuitos, como o da Nasa, os policiais são capazes de constatar o avanço do desmatamento sem precisar se deslocar às regiões atingidas, sobretudo nas áreas remotas. “A análise de imagem de satélite é uma viagem no tempo. É possível ver o passado e comparar com a situação atual”, explica o delegado. Drones também têm sido usados para sobrevoar regiões onde há suspeita da ação de milícias e facções.

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Em janeiro de 2023, o Ministério da Justiça criou um departamento, na Polícia Federal, para intensificar o combate aos crimes contra o meio ambiente. Subordinada diretamente ao diretor-geral da PF, a Diretoria de Crimes Ambientais da Amazônia (Damaz) coordena as Delegacias de Polícia Ambiental instaladas nas 27 superintendências da corporação em todo o País.

Para o delegado, além de aumentar a repressão, é preciso estimular o manejo florestal sustentável. Os custos de operar dentro da lei, afirma, são “altíssimos”.

“Os lucros da atividade criminosa são tão grandes que esses grupos conseguem pagar propina, falsificação de documentos, laudos ideologicamente falsos de especialistas e sobra muito dinheiro.”

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Outra estratégia da PF tem sido associar os crimes ambientais, que têm penas pequenas, a delitos como lavagem de dinheiro, corrupção e organização criminosa, passíveis de sanções mais duras. O objetivo é avançar na punição das lideranças e não apenas quem tem a motosserra na mão.

Garimpo e desmatamento ilegais têm atraído facções e milícias, detecta delegado. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Leia a entrevista com o delegado Agostinho Gomes Cascardo Jr.:

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No artigo o sr aborda o desmatamento ilegal como um ramo do crime organizado. Pode reconstituir como esses gupos dedicados à exploração ilegal de madeira e minérios foram se “profissionalizando”? Há quanto tempo eles alcançaram o nível de organização descrito no texto?

Há várias mudanças na vertente do crime ambiental para ele chegar ao crime ambiental organizado. Não é mais verdade que o desmatamento, principalmente na Amazônia, decorre de uma expansão agrícola. Artigos científicos já demonstram isso. A madeira passou por várias fases. Inicialmente, ela era um problema. Era preciso desmatar para fazer a pastagem ou agricultura. Na segunda fase, ela vira um subproduto para o agricultor e para o pecuarista. Na terceira fase, a atual, a madeira é o produto principal. Então muita terra é desmatada e fica vazia. Não necessariamente vai gerar pecuária ou agricultura. E a extração madeireira gera muito dinheiro. Os lucros da atividade criminosa são tão grandes que esses grupos conseguem pagar propina, falsificação de documentos, laudos ideologicamente falsos de especialistas e sobra muito dinheiro. Então isso começou a ser objeto de crime. A criminalidade, quando começa a envolver muitas pessoas, chega ao nível de criminalidade ambiental organizada. Uma estrutura piramidal, com divisão de tarefas, em que o objeto principal é o crime. Essa tem sido uma atividade muito lucrativa e, por isso, tem se disseminado. Ela tem atraído as organizações criminosas que se originam de madeireiros e garimpeiros ilegais, facções criminosas brasileiras, as duas mais famosas, e a milícia também. A gente tem notícia até de pessoas que deixam o tráfico para entrar para a criminalidade ambiental organizada, porque os lucros são similares e os riscos muito baixos.

O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no Vale do Javari, trouxe essa intersecção à tona. Pode detalhar melhor esse ponto?

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As milícias e as facções criminosas estão migrando para o crime ambiental pela alta lucratividade e baixo risco. E isso gera mais violência, porque esses grupos não têm problema em matar pessoas. Com essa base miliciana ou de facções criminosas, o homicídio começa a ser parte do negócio.

O artigo descreve a complexidade das técnicas usadas por essas organizações criminosas para operar e se manter à margem da repressão do Estado, como divisão em núcleos, comunicação cifrada, corrupção de agentes públicos, ameaça e coação, uso de criptoativos para lavar dinheiro. Essa é uma realidade há décadas no tráfico de drogas, armas e outros crimes. Existe alguma particularidade em relação a esses grupos especializados nos crimes ambientais ou eles estão seguindo o que já vinha sendo usado em outros ramos da criminalidade organizada?

A tendência é usar o que já vem sendo usado em outros ramos do crime. É uma questão comercial. O crime é um comércio. As organizações começam a enfrentar problemas e esses problemas são dirimidos com outras técnicas. A obrigatoriedade de laudos é driblada pelo suborno a engenheiros, geógrafos e geólogos. A necessidade de lavar o dinheiro faz com que recorram aos criptoativos. E assim por diante.

Os criminosos investigados na Operação Ganância, por exemplo, que extraíam ouro de reserva indígena ilegalmente, lavaram R$ 5 bilhões com criptoativos. É um negócio extremamente engenhoso. Se a Polícia Federal não tivesse um pessoal capacitado, não ia descobrir nunca. Os policiais federais fizeram um rastreio na Blockchain e descobriram que essa organização criminosa criou uma criptomoeda e rapidamente vendeu US$ 1 bilhão no ICO (Initial Coin Offering), só que para eles mesmos. E quem fez isso? Uma facção criminosa de tráfico? Não, uma organização criminosa especializada na extração ilegal de ouro de reservas indígenas.

O artigo aborda também a dificuldade de atuação nos locais de extração, por falta de pessoal especializado e de um aparato logístico adequado. Como a tecnologia ajuda nas investigações?

A gente pode fazer, por exemplo, uma modelagem matemática no Python (linguagem de programação) em que o sistema de informação geográfica consegue detectar áreas suspeitas de mineração, usando parâmetros da vida policial. Como ele fez isso? Ele detecta o nível de clorofila. Depois, esses dados são cruzados com informações de demarcação poligonal, ou seja, de um processo minerário. Em seguida, é observado se há permissão de lavra garimpeira. Por fim, o analista que opera aquele sistema checa os casos suspeitos por meio de imagens de alta resolução espectral, geralmente da Nasa ou da agência espacial europeia, que são gratuitas, para descartar alertas não relevantes. Uma região que virou uma lagoa, por exemplo. Então os policiais só têm que se deslocar – ou mandar drones, nos casos de difícil acesso – para os pontos suspeitos. Isso a gente chama de investigação orientada pelos dados e não pela hipótese.

A análise de imagem de satélite é uma viagem no tempo. É possível ver o passado e comparar com a situação atual, o que permite detectar quando uma região foi desmatada. Os dados de geolocalização de dispositivos móveis são outro recurso para checar versões dos investigados. Com pessoal capacitado, a gente consegue um resultado muito melhor que o convencional. E a Polícia Federal investe muito em capacitação. Recentemente, policiais federais fizeram cursos sobre sistema de informação geográfica, em Toronto, análise de dados, na IBM, e sobre tecnologia blockchain na Universidade de Berkeley (Califórnia). Essas capacitações permitiram investigações de altíssimo nível.

A extração e o comércio ilegal de produtos florestais e minerais e de pedras preciosas movimentam “valores estratosféricos”, para citar uma expressão que vocês usam no texto. O artigo chama a atenção também para o custo, financeiro mesmo, de operar dentro da legalidade nesses setores. Seria o caso de aumentar o trade-off, ou seja, tornar a repressão e as sanções mais custosas ou isso não resolveria o problema?

O que a gente aprende em criminologia é que não existe bem uma relação entre a pena e o crime. A questão talvez seja estimular o manejo florestal sustentável, como manda a lei. Os bloqueios sanitários internacionais, por exemplo, oferecem um excelente estímulo comercial para a agropecuária. Não há uma necessidade de comprovação de origem semelhante para a madeira. Na Europa, o Ipê Amarelo é vendido a preço de Pinus, porque não existe barreira praticamente nenhuma. A madeira é exportada com nota fiscal. Me parece muito mais interessante, além de aumentar a repressão, tornar o manejo florestal sustentável mais atraente. Até porque, hoje, a Polícia Federal busca associar os crimes ambientais, que têm penas pequenas, com delitos como lavagem de dinheiro, corrupção e organização criminosa, que têm penas altíssimas. Talvez a gente precise desestimular esses crimes na questão financeira.

Com cifras bilionárias, os crimes ambientais vêm atraindo facções criminosas e grupos de milicianos que veem na exploração ilegal de madeira e no garimpo clandestino uma oportunidade para expandir os negócios ilícitos, ampliar os lucros e minimizar os riscos. O resultado é uma “profissionalização” dos crimes ambientais e o aumento da violência no mercado paralelo de madeira e minérios, afirma o delegado de Polícia Federal Agostinho Gomes Cascardo Jr.

Estudioso do tema há uma década, Cascardo Jr foi superintendente regional da PF em Rondônia, onde enfrentou o crime organizado que se instala na floresta. Atualmente, é adido da Polícia Federal na Bolívia.

Para o delegado, o desmatamento e o garimpo ilegais alcançaram o status de criminalidade organizada. “Com essa base miliciana ou de facções criminosas, o homicídio começa a ser parte do negócio”, afirma ao Estadão.

O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, em junho de 2022, expôs a intersecção entre o crime organizado e a exploração ambiental.

No artigo Polícia Federal, Desmatamento e Crime Ambiental Organizado: Desafios e Perspectivas na Proteção da Floresta Amazônica, escrito em coautoria com o também delegado Franco Perazzoni, Cascardo Jr descreve como os grupos especializados em crimes ambientais têm usado técnicas cada vez mais complexas para operar à margem da lei. O texto faz parte do livro Crimes Ambientais na Amazônia: Lições e Desafios da Linha de Frente.

“A criminalidade, quando começa a envolver muitas pessoas, chega ao nível de criminalidade ambiental organizada. Uma estrutura piramidal, com divisão de tarefas, em que o objeto principal é o crime. Essa tem sido uma atividade muito lucrativa e, por isso, tem se disseminado”, pontua Cascardo Jr.

Desmatamento avança na Amazônia pelas mãos do crime organizado. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Para o delegado, o investimento em capacitação é essencial para fazer frente ao avanço do crime organizado em matéria ambiental. A Operação Ganância, por exemplo, identificou um engenhoso esquema de lavagem de dinheiro obtido a partir da exploração ilegal de ouro em reservas indígenas em Rondônia. Os criminosos usaram criptoativos para lavar R$ 5 bilhões. Agentes federais treinados em tecnologia blockchain conseguiram identificar a fraude.

A tecnologia tem sido uma aliada da PF. A partir de imagens de satélite de sistemas gratuitos, como o da Nasa, os policiais são capazes de constatar o avanço do desmatamento sem precisar se deslocar às regiões atingidas, sobretudo nas áreas remotas. “A análise de imagem de satélite é uma viagem no tempo. É possível ver o passado e comparar com a situação atual”, explica o delegado. Drones também têm sido usados para sobrevoar regiões onde há suspeita da ação de milícias e facções.

Em janeiro de 2023, o Ministério da Justiça criou um departamento, na Polícia Federal, para intensificar o combate aos crimes contra o meio ambiente. Subordinada diretamente ao diretor-geral da PF, a Diretoria de Crimes Ambientais da Amazônia (Damaz) coordena as Delegacias de Polícia Ambiental instaladas nas 27 superintendências da corporação em todo o País.

Para o delegado, além de aumentar a repressão, é preciso estimular o manejo florestal sustentável. Os custos de operar dentro da lei, afirma, são “altíssimos”.

“Os lucros da atividade criminosa são tão grandes que esses grupos conseguem pagar propina, falsificação de documentos, laudos ideologicamente falsos de especialistas e sobra muito dinheiro.”

Outra estratégia da PF tem sido associar os crimes ambientais, que têm penas pequenas, a delitos como lavagem de dinheiro, corrupção e organização criminosa, passíveis de sanções mais duras. O objetivo é avançar na punição das lideranças e não apenas quem tem a motosserra na mão.

Garimpo e desmatamento ilegais têm atraído facções e milícias, detecta delegado. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Leia a entrevista com o delegado Agostinho Gomes Cascardo Jr.:

No artigo o sr aborda o desmatamento ilegal como um ramo do crime organizado. Pode reconstituir como esses gupos dedicados à exploração ilegal de madeira e minérios foram se “profissionalizando”? Há quanto tempo eles alcançaram o nível de organização descrito no texto?

Há várias mudanças na vertente do crime ambiental para ele chegar ao crime ambiental organizado. Não é mais verdade que o desmatamento, principalmente na Amazônia, decorre de uma expansão agrícola. Artigos científicos já demonstram isso. A madeira passou por várias fases. Inicialmente, ela era um problema. Era preciso desmatar para fazer a pastagem ou agricultura. Na segunda fase, ela vira um subproduto para o agricultor e para o pecuarista. Na terceira fase, a atual, a madeira é o produto principal. Então muita terra é desmatada e fica vazia. Não necessariamente vai gerar pecuária ou agricultura. E a extração madeireira gera muito dinheiro. Os lucros da atividade criminosa são tão grandes que esses grupos conseguem pagar propina, falsificação de documentos, laudos ideologicamente falsos de especialistas e sobra muito dinheiro. Então isso começou a ser objeto de crime. A criminalidade, quando começa a envolver muitas pessoas, chega ao nível de criminalidade ambiental organizada. Uma estrutura piramidal, com divisão de tarefas, em que o objeto principal é o crime. Essa tem sido uma atividade muito lucrativa e, por isso, tem se disseminado. Ela tem atraído as organizações criminosas que se originam de madeireiros e garimpeiros ilegais, facções criminosas brasileiras, as duas mais famosas, e a milícia também. A gente tem notícia até de pessoas que deixam o tráfico para entrar para a criminalidade ambiental organizada, porque os lucros são similares e os riscos muito baixos.

O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no Vale do Javari, trouxe essa intersecção à tona. Pode detalhar melhor esse ponto?

As milícias e as facções criminosas estão migrando para o crime ambiental pela alta lucratividade e baixo risco. E isso gera mais violência, porque esses grupos não têm problema em matar pessoas. Com essa base miliciana ou de facções criminosas, o homicídio começa a ser parte do negócio.

O artigo descreve a complexidade das técnicas usadas por essas organizações criminosas para operar e se manter à margem da repressão do Estado, como divisão em núcleos, comunicação cifrada, corrupção de agentes públicos, ameaça e coação, uso de criptoativos para lavar dinheiro. Essa é uma realidade há décadas no tráfico de drogas, armas e outros crimes. Existe alguma particularidade em relação a esses grupos especializados nos crimes ambientais ou eles estão seguindo o que já vinha sendo usado em outros ramos da criminalidade organizada?

A tendência é usar o que já vem sendo usado em outros ramos do crime. É uma questão comercial. O crime é um comércio. As organizações começam a enfrentar problemas e esses problemas são dirimidos com outras técnicas. A obrigatoriedade de laudos é driblada pelo suborno a engenheiros, geógrafos e geólogos. A necessidade de lavar o dinheiro faz com que recorram aos criptoativos. E assim por diante.

Os criminosos investigados na Operação Ganância, por exemplo, que extraíam ouro de reserva indígena ilegalmente, lavaram R$ 5 bilhões com criptoativos. É um negócio extremamente engenhoso. Se a Polícia Federal não tivesse um pessoal capacitado, não ia descobrir nunca. Os policiais federais fizeram um rastreio na Blockchain e descobriram que essa organização criminosa criou uma criptomoeda e rapidamente vendeu US$ 1 bilhão no ICO (Initial Coin Offering), só que para eles mesmos. E quem fez isso? Uma facção criminosa de tráfico? Não, uma organização criminosa especializada na extração ilegal de ouro de reservas indígenas.

O artigo aborda também a dificuldade de atuação nos locais de extração, por falta de pessoal especializado e de um aparato logístico adequado. Como a tecnologia ajuda nas investigações?

A gente pode fazer, por exemplo, uma modelagem matemática no Python (linguagem de programação) em que o sistema de informação geográfica consegue detectar áreas suspeitas de mineração, usando parâmetros da vida policial. Como ele fez isso? Ele detecta o nível de clorofila. Depois, esses dados são cruzados com informações de demarcação poligonal, ou seja, de um processo minerário. Em seguida, é observado se há permissão de lavra garimpeira. Por fim, o analista que opera aquele sistema checa os casos suspeitos por meio de imagens de alta resolução espectral, geralmente da Nasa ou da agência espacial europeia, que são gratuitas, para descartar alertas não relevantes. Uma região que virou uma lagoa, por exemplo. Então os policiais só têm que se deslocar – ou mandar drones, nos casos de difícil acesso – para os pontos suspeitos. Isso a gente chama de investigação orientada pelos dados e não pela hipótese.

A análise de imagem de satélite é uma viagem no tempo. É possível ver o passado e comparar com a situação atual, o que permite detectar quando uma região foi desmatada. Os dados de geolocalização de dispositivos móveis são outro recurso para checar versões dos investigados. Com pessoal capacitado, a gente consegue um resultado muito melhor que o convencional. E a Polícia Federal investe muito em capacitação. Recentemente, policiais federais fizeram cursos sobre sistema de informação geográfica, em Toronto, análise de dados, na IBM, e sobre tecnologia blockchain na Universidade de Berkeley (Califórnia). Essas capacitações permitiram investigações de altíssimo nível.

A extração e o comércio ilegal de produtos florestais e minerais e de pedras preciosas movimentam “valores estratosféricos”, para citar uma expressão que vocês usam no texto. O artigo chama a atenção também para o custo, financeiro mesmo, de operar dentro da legalidade nesses setores. Seria o caso de aumentar o trade-off, ou seja, tornar a repressão e as sanções mais custosas ou isso não resolveria o problema?

O que a gente aprende em criminologia é que não existe bem uma relação entre a pena e o crime. A questão talvez seja estimular o manejo florestal sustentável, como manda a lei. Os bloqueios sanitários internacionais, por exemplo, oferecem um excelente estímulo comercial para a agropecuária. Não há uma necessidade de comprovação de origem semelhante para a madeira. Na Europa, o Ipê Amarelo é vendido a preço de Pinus, porque não existe barreira praticamente nenhuma. A madeira é exportada com nota fiscal. Me parece muito mais interessante, além de aumentar a repressão, tornar o manejo florestal sustentável mais atraente. Até porque, hoje, a Polícia Federal busca associar os crimes ambientais, que têm penas pequenas, com delitos como lavagem de dinheiro, corrupção e organização criminosa, que têm penas altíssimas. Talvez a gente precise desestimular esses crimes na questão financeira.

Com cifras bilionárias, os crimes ambientais vêm atraindo facções criminosas e grupos de milicianos que veem na exploração ilegal de madeira e no garimpo clandestino uma oportunidade para expandir os negócios ilícitos, ampliar os lucros e minimizar os riscos. O resultado é uma “profissionalização” dos crimes ambientais e o aumento da violência no mercado paralelo de madeira e minérios, afirma o delegado de Polícia Federal Agostinho Gomes Cascardo Jr.

Estudioso do tema há uma década, Cascardo Jr foi superintendente regional da PF em Rondônia, onde enfrentou o crime organizado que se instala na floresta. Atualmente, é adido da Polícia Federal na Bolívia.

Para o delegado, o desmatamento e o garimpo ilegais alcançaram o status de criminalidade organizada. “Com essa base miliciana ou de facções criminosas, o homicídio começa a ser parte do negócio”, afirma ao Estadão.

O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, em junho de 2022, expôs a intersecção entre o crime organizado e a exploração ambiental.

No artigo Polícia Federal, Desmatamento e Crime Ambiental Organizado: Desafios e Perspectivas na Proteção da Floresta Amazônica, escrito em coautoria com o também delegado Franco Perazzoni, Cascardo Jr descreve como os grupos especializados em crimes ambientais têm usado técnicas cada vez mais complexas para operar à margem da lei. O texto faz parte do livro Crimes Ambientais na Amazônia: Lições e Desafios da Linha de Frente.

“A criminalidade, quando começa a envolver muitas pessoas, chega ao nível de criminalidade ambiental organizada. Uma estrutura piramidal, com divisão de tarefas, em que o objeto principal é o crime. Essa tem sido uma atividade muito lucrativa e, por isso, tem se disseminado”, pontua Cascardo Jr.

Desmatamento avança na Amazônia pelas mãos do crime organizado. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Para o delegado, o investimento em capacitação é essencial para fazer frente ao avanço do crime organizado em matéria ambiental. A Operação Ganância, por exemplo, identificou um engenhoso esquema de lavagem de dinheiro obtido a partir da exploração ilegal de ouro em reservas indígenas em Rondônia. Os criminosos usaram criptoativos para lavar R$ 5 bilhões. Agentes federais treinados em tecnologia blockchain conseguiram identificar a fraude.

A tecnologia tem sido uma aliada da PF. A partir de imagens de satélite de sistemas gratuitos, como o da Nasa, os policiais são capazes de constatar o avanço do desmatamento sem precisar se deslocar às regiões atingidas, sobretudo nas áreas remotas. “A análise de imagem de satélite é uma viagem no tempo. É possível ver o passado e comparar com a situação atual”, explica o delegado. Drones também têm sido usados para sobrevoar regiões onde há suspeita da ação de milícias e facções.

Em janeiro de 2023, o Ministério da Justiça criou um departamento, na Polícia Federal, para intensificar o combate aos crimes contra o meio ambiente. Subordinada diretamente ao diretor-geral da PF, a Diretoria de Crimes Ambientais da Amazônia (Damaz) coordena as Delegacias de Polícia Ambiental instaladas nas 27 superintendências da corporação em todo o País.

Para o delegado, além de aumentar a repressão, é preciso estimular o manejo florestal sustentável. Os custos de operar dentro da lei, afirma, são “altíssimos”.

“Os lucros da atividade criminosa são tão grandes que esses grupos conseguem pagar propina, falsificação de documentos, laudos ideologicamente falsos de especialistas e sobra muito dinheiro.”

Outra estratégia da PF tem sido associar os crimes ambientais, que têm penas pequenas, a delitos como lavagem de dinheiro, corrupção e organização criminosa, passíveis de sanções mais duras. O objetivo é avançar na punição das lideranças e não apenas quem tem a motosserra na mão.

Garimpo e desmatamento ilegais têm atraído facções e milícias, detecta delegado. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Leia a entrevista com o delegado Agostinho Gomes Cascardo Jr.:

No artigo o sr aborda o desmatamento ilegal como um ramo do crime organizado. Pode reconstituir como esses gupos dedicados à exploração ilegal de madeira e minérios foram se “profissionalizando”? Há quanto tempo eles alcançaram o nível de organização descrito no texto?

Há várias mudanças na vertente do crime ambiental para ele chegar ao crime ambiental organizado. Não é mais verdade que o desmatamento, principalmente na Amazônia, decorre de uma expansão agrícola. Artigos científicos já demonstram isso. A madeira passou por várias fases. Inicialmente, ela era um problema. Era preciso desmatar para fazer a pastagem ou agricultura. Na segunda fase, ela vira um subproduto para o agricultor e para o pecuarista. Na terceira fase, a atual, a madeira é o produto principal. Então muita terra é desmatada e fica vazia. Não necessariamente vai gerar pecuária ou agricultura. E a extração madeireira gera muito dinheiro. Os lucros da atividade criminosa são tão grandes que esses grupos conseguem pagar propina, falsificação de documentos, laudos ideologicamente falsos de especialistas e sobra muito dinheiro. Então isso começou a ser objeto de crime. A criminalidade, quando começa a envolver muitas pessoas, chega ao nível de criminalidade ambiental organizada. Uma estrutura piramidal, com divisão de tarefas, em que o objeto principal é o crime. Essa tem sido uma atividade muito lucrativa e, por isso, tem se disseminado. Ela tem atraído as organizações criminosas que se originam de madeireiros e garimpeiros ilegais, facções criminosas brasileiras, as duas mais famosas, e a milícia também. A gente tem notícia até de pessoas que deixam o tráfico para entrar para a criminalidade ambiental organizada, porque os lucros são similares e os riscos muito baixos.

O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no Vale do Javari, trouxe essa intersecção à tona. Pode detalhar melhor esse ponto?

As milícias e as facções criminosas estão migrando para o crime ambiental pela alta lucratividade e baixo risco. E isso gera mais violência, porque esses grupos não têm problema em matar pessoas. Com essa base miliciana ou de facções criminosas, o homicídio começa a ser parte do negócio.

O artigo descreve a complexidade das técnicas usadas por essas organizações criminosas para operar e se manter à margem da repressão do Estado, como divisão em núcleos, comunicação cifrada, corrupção de agentes públicos, ameaça e coação, uso de criptoativos para lavar dinheiro. Essa é uma realidade há décadas no tráfico de drogas, armas e outros crimes. Existe alguma particularidade em relação a esses grupos especializados nos crimes ambientais ou eles estão seguindo o que já vinha sendo usado em outros ramos da criminalidade organizada?

A tendência é usar o que já vem sendo usado em outros ramos do crime. É uma questão comercial. O crime é um comércio. As organizações começam a enfrentar problemas e esses problemas são dirimidos com outras técnicas. A obrigatoriedade de laudos é driblada pelo suborno a engenheiros, geógrafos e geólogos. A necessidade de lavar o dinheiro faz com que recorram aos criptoativos. E assim por diante.

Os criminosos investigados na Operação Ganância, por exemplo, que extraíam ouro de reserva indígena ilegalmente, lavaram R$ 5 bilhões com criptoativos. É um negócio extremamente engenhoso. Se a Polícia Federal não tivesse um pessoal capacitado, não ia descobrir nunca. Os policiais federais fizeram um rastreio na Blockchain e descobriram que essa organização criminosa criou uma criptomoeda e rapidamente vendeu US$ 1 bilhão no ICO (Initial Coin Offering), só que para eles mesmos. E quem fez isso? Uma facção criminosa de tráfico? Não, uma organização criminosa especializada na extração ilegal de ouro de reservas indígenas.

O artigo aborda também a dificuldade de atuação nos locais de extração, por falta de pessoal especializado e de um aparato logístico adequado. Como a tecnologia ajuda nas investigações?

A gente pode fazer, por exemplo, uma modelagem matemática no Python (linguagem de programação) em que o sistema de informação geográfica consegue detectar áreas suspeitas de mineração, usando parâmetros da vida policial. Como ele fez isso? Ele detecta o nível de clorofila. Depois, esses dados são cruzados com informações de demarcação poligonal, ou seja, de um processo minerário. Em seguida, é observado se há permissão de lavra garimpeira. Por fim, o analista que opera aquele sistema checa os casos suspeitos por meio de imagens de alta resolução espectral, geralmente da Nasa ou da agência espacial europeia, que são gratuitas, para descartar alertas não relevantes. Uma região que virou uma lagoa, por exemplo. Então os policiais só têm que se deslocar – ou mandar drones, nos casos de difícil acesso – para os pontos suspeitos. Isso a gente chama de investigação orientada pelos dados e não pela hipótese.

A análise de imagem de satélite é uma viagem no tempo. É possível ver o passado e comparar com a situação atual, o que permite detectar quando uma região foi desmatada. Os dados de geolocalização de dispositivos móveis são outro recurso para checar versões dos investigados. Com pessoal capacitado, a gente consegue um resultado muito melhor que o convencional. E a Polícia Federal investe muito em capacitação. Recentemente, policiais federais fizeram cursos sobre sistema de informação geográfica, em Toronto, análise de dados, na IBM, e sobre tecnologia blockchain na Universidade de Berkeley (Califórnia). Essas capacitações permitiram investigações de altíssimo nível.

A extração e o comércio ilegal de produtos florestais e minerais e de pedras preciosas movimentam “valores estratosféricos”, para citar uma expressão que vocês usam no texto. O artigo chama a atenção também para o custo, financeiro mesmo, de operar dentro da legalidade nesses setores. Seria o caso de aumentar o trade-off, ou seja, tornar a repressão e as sanções mais custosas ou isso não resolveria o problema?

O que a gente aprende em criminologia é que não existe bem uma relação entre a pena e o crime. A questão talvez seja estimular o manejo florestal sustentável, como manda a lei. Os bloqueios sanitários internacionais, por exemplo, oferecem um excelente estímulo comercial para a agropecuária. Não há uma necessidade de comprovação de origem semelhante para a madeira. Na Europa, o Ipê Amarelo é vendido a preço de Pinus, porque não existe barreira praticamente nenhuma. A madeira é exportada com nota fiscal. Me parece muito mais interessante, além de aumentar a repressão, tornar o manejo florestal sustentável mais atraente. Até porque, hoje, a Polícia Federal busca associar os crimes ambientais, que têm penas pequenas, com delitos como lavagem de dinheiro, corrupção e organização criminosa, que têm penas altíssimas. Talvez a gente precise desestimular esses crimes na questão financeira.

Entrevista por Rayssa Motta

Repórter do 'Estadão' em São Paulo. Cobre Judiciário e Política. É jornalista formada pela Uerj e mestranda em Ciência Política na USP.

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