Dentro do contexto criado nas últimas décadas pelo desenvolvimento das tecnologias da informação, a possibilidade de elaboração e divulgação de notícias falsas chegou a patamares antes inimagináveis, seja no alcance territorial, na velocidade da propagação ou na quantidade de pessoas alcançadas. A facilitação da difusão de notícias falsas permitiu o aumentou do impacto causado por elas tornando muito grave e de difícil reparação o dano à imagem da pessoa objeto da ação.
Não bastasse a magnitude da lesão moral, a adoção de medidas legais contra os perpetradores é quase impossível, considerando os referenciais legais que dispomos no Brasil. A informação falsa pode ter origem em um único canal de comunicação, mas logo é copiada, enviada e compartilhada em páginas de perfis públicos e particulares nas redes sociais e em grupos privados de mensagens. Como se diz vulgarmente, não dá para processar a internet.
Esse fenômeno, conhecido no Brasil pelo seu termo anglófono, fake news, tornou-se foco de preocupação nacional principalmente a partir das Eleições Gerais de 2018. O Google apresentou pico histórico de interesse pelo termo no país em outubro daquele ano, mês em que ocorreram as votações. Antes mesmo do término das eleições, pesquisas já apontavam a grande divulgação de informações falsas sobre candidatos durante aquele período eleitoral. Eleições decididas em razão de falsas informações representam uma violação ao princípio democrático, pois impedem que os eleitores tomem a decisão com base em fatos verdadeiros.
Diante da nova realidade, a comunidade jurídica passou a discutir como tratar e incluir o tema no ordenamento brasileiro. O Direito Penal não ficou à margem da discussão e a criminalização das fake news passou a integrar os debates. De um lado, os defensores da criminalização apontavam os efeitos nefastos que a propagação de notícias falsas poderia causar e a necessidade de proteger bens jurídicos mais importantes do que a honra. Por outro lado, havia quem apontasse a ineficiência do Direito Penal no combate às fake news em outros ordenamentos, além da dificuldade em realizar esse combate sem violar a liberdade de expressão ou cometer censura.
A despeito das discussões doutrinárias, a primeira resposta legislativa surgiu no âmbito do Direito Penal Eleitoral. Em 2019, foi aprovada a Lei nº 13.834/2019, que incluiu o art. 326-A no Código Eleitoral. Esse artigo criminalizou a prática de denunciação caluniosa eleitoral, ou seja, "dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral". No entanto, foi no seu §3º que o novo dispositivo revelou a preocupação do legislador com o fenômeno das fake news, ao prever as mesmas penas do caput para "quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído".
Dessa forma, podemos dizer que as fake news já são criminalizadas no contexto específico do Direito Eleitoral. No entanto, a especificidade da matéria não cobre o amplo conjunto de situações em que a divulgação de informações falsas pode causar graves danos.
Em 2020, o interesse pelo tema das fake news voltou a crescer diante do contexto da pandemia de Covid-19. A grande circulação de desinformação (informações sabidamente falsas ou não verificadas) sobre a doença dificultou a propagação de informações técnicas capazes de auxiliar no combate ao vírus. Dessa forma, mais uma vez as fake news se mostraram capazes de atingir bens jurídicos além da imagem e da honra da vítima, expondo à perigo a saúde pública do país inteiro.
Em resposta, foram apresentados inúmeros novos projetos legislativos de tratamento jurídico do tema, mas nem todos traziam a criminalização das fake news como forma de combate ao fenômeno. Dentre eles, foi aprovado pelo Senado Federal o PL 2630/2020, de autoria do Senador Alessandro Vieira (CIDADANIA/SE), que pretende instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.
A versão do texto aprovada pelo Senado e remetida à Câmara dos Deputados em julho deste ano não previa nenhuma forma de criminalização, porém, alguns Deputados já apresentaram propostas e substitutivos para alterar o PL e criminalizar condutas relacionadas às fake news.
No final de setembro, o Deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), coordenador de um Grupo de Trabalho criado para debater o PL na Câmara, apresentou proposta de substitutivo ao Presidente da Casa, Deputado Rodrigo Maia, com dispositivo que prevê pena de 05 (cinco) anos para quem for responsável por disseminar notícias falsas e promover, constituir ou financiar serviços de robôs e de disparos em massa. Ainda não há data para a votar o Projeto das Fake News na Câmara.
Além disso, há outros projetos paralelos, como o PL 1416/2020, de autoria da Deputada Marília Arraes (PT/PE), que inclui no rol dos crimes de responsabilidade a conduta de "divulgar ou compartilhar informação falsa, sem fundamento ou difamatória".
A pluralidade de propostas de substitutivos e de PLs torna incerto o futuro da criminalização das fake news no país, restando aos órgãos de persecução penal, por enquanto, a alternativa de utilizar dispositivos penais correlatos para processar quem propaga as informações falsas.
Fora do âmbito eleitoral, a única forma de se responsabilizar criminalmente os propagadores de fake news é através da penalização de outras condutas praticadas por eles em concurso com a divulgação da falsa informação. Via de regra, trata-se dos crimes contra a honra objetiva: calúnia e difamação. O §1º do art. 138 inclusive prevê pena para quem propaga ou divulga a imputação caluniosa, quando sabe não ser verdadeira.
No entanto, os crimes contra a honra têm pena bastante inferior àquela prevista para o crime de denunciação caluniosa eleitoral ou àquelas apresentadas nos projetos de leis atualmente em trâmite, o que indica a desproporcionalidade das penas atuais frente à gravidade da conduta.
Além disso, nem todas as informações falsas divulgadas implicam no ataque a honra de alguém, como foi o caso das fake news no âmbito da pandemia do Covid-19. É possível considerar que os danos podem ser maiores do que qualquer imputação caluniosa seria capaz de causar, mas não seria possível responsabilizar seus autores.
No atual cenário de modernização do ordenamento jurídico brasileiro frente às novas tecnologias, a discussão acerca das fake news é apenas mais uma que se soma a outros temas relevantes como a proteção de dados pessoais e a regulamentação da internet 5G.
*Yuri Sahione é advogado, sócio da área de Compliance, Penal Econômico e Investigações do Cescon Barrieu