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Crueldade contra animais


Por Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser
Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser. Foto: MPD/Divulgação

A Constituição Federal expressamente veda a prática de crueldade contra os animais[1].

No nosso ordenamento jurídico, a prática de abuso e maus-tratos em animais configura crime ambiental (artigo 32 da Lei n° 9.605/1998[2]), a revelar o repúdio à adoção de métodos cruéis.

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Ainda, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais da Organização das Nações Unidas prevê, em seu artigo 10, que "nenhum animal deve ser usado para divertimento do homem. A exibição dos animais e os espetáculos que os utilizam são incompatíveis com a dignidade do animal".

Com bem acentuam INGO WOLFGANG SARLET e de TIAGO FENSTERSEIFER[3]:

"A Constituição Federal brasileira, no seu art. 225, §1°, VII, enuncia de forma expressa a vedação de práticas que "provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade", o que sinaliza o reconhecimento, por parte do constituinte, do valor inerente a outras formas de vida não humanas, protegendo-as, inclusive, contra a ação humana, o que revela que não está buscando proteger (ao menos diretamente e em todos os casos) apenas o ser humano. É difícil conceber que o constituinte, ao proteger a vida de espécies naturais em face da sua ameaça de extinção, estivesse a promover unicamente a proteção de algum valor instrumental de espécies naturais; pelo contrário deixou transparecer uma tutela da vida em geral nitidamente não meramente instrumental em relação ao ser humano, mas numa perspectiva concorrente e interdependente. Especialmente no que diz com à vedação de práticas cruéis contra os animais, o constituinte revela de forma clara a sua preocupação com o bem-estar dos animais não humanos e a refutação de uma visão meramente instrumental da vida animal (...) Dessa forma, está a ordem constitucional reconhecendo a vida animal como um fim em si mesmo, de modo a superar o antropocentrismo kantiano (...) A ampliação da noção de dignidade da pessoa humana (a partir do reconhecimento da sua necessária dimensão ecológica) e o reconhecimento de uma dignidade da vida não humana apontam para um releitura do clássico contrato social em direção a uma espécie de contrato socioambiental (ou ecológico), com o objetivo de contemplar um espaço para tais entes naturais no âmbito da comunidade estatal".

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Ainda, temos o artigo 193 da Constituição Bandeirante, o qual estabelece que "o Estado, mediante lei, criará um sistema de administração da qualidade ambiental, proteção, controle e desenvolvimento do meio ambiente e uso adequado dos recursos naturais, para organizar, coordenar e integrar as ações de órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, assegurada participação da coletividade, com o fim de: (...) Inciso X - proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem em risco a sua função ecológica e que provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais a crueldade, e fiscalizando a extração, produção, criação, métodos, abate, transporte, comercialização e consumo de seus espécimes e subprodutos". 

 Sobre o assunto, cabe destacar decisão proferida pelo Tribunal Pleno do Egrégio Supremo Tribunal Federal, em julgamento da ADPF 640/DF, cuja ementa segue transcrita:

"DIREITO CONSTITUCIONAL. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. DECISÕES DE ÓRGÃOS JUDICIAIS E ADMINISTRATIVOS QUE AUTORIZAM O ABATE DE ANIMAIS APREENDIDOS EM SITUAÇÕES DE MAUS-TRATOS. QUESTÃO DE RELEVANTE INTERESSE PÚBLICO ENVOLVENDO A INTERPRETAÇÃO DO ART. 225, §1º, VII, DA CF/88. CONHECIMENTO DA AÇÃO. INSTRUÇÃO DO FEITO. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO IMEDIATO DO MÉRITO. ART. 12 DA LEI 9.868/99. DECLARAÇÃO DA ILEGITIMIDADE DA INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 25, §§1º E 2º DA LEI 9.605/1998, BEM COMO DOS ARTIGOS 101, 102 E 103 DO DECRETO 6.514/2008, QUE VIOLEM AS NORMAS CONSTITUCIONAIS RELATIVAS À PROTEÇÃO DA FAUNA E À PROIBIÇÃO DA SUBMISSÃO DOS ANIMAIS À CRUELDADE. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO, NOS TERMOS DA INICIAL. 1. No caso, demonstrou-se a existência de decisões judiciais autorizando o abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos, em interpretação da legislação federal que viola a norma fundamental de proteção à fauna, prevista no art. 225, §1º, VII, da CF/88. A resistência dos órgãos administrativos à pretensão contida à inicial também demonstra a relevância constitucional da questão, o que justifica o conhecimento da ação. 2. A completa instrução do feito possibilita a conversão da ratificação de liminar em julgamento de mérito, nos termos do art. 12 da Lei 9.868/99. 3. A rigidez da Constituição de 1988 e o princípio da interpretação conforme a Constituição impedem o acolhimento de interpretações contrárias ao sentido hermenêutico do texto constitucional. 4. O art. 225, §1º, VII, da CF/88, impõe a proteção à fauna e proíbe qualquer espécie de maus-tratos aos animais, de modo a reconhecer o valor inerente a outras formas de vida não humanas, protegendo-as contra abusos. Doutrina e precedentes desta Corte. 5. As normas infraconstitucionais sobre a matéria seguem a mesma linha de raciocínio, conforme se observa do art. 25 da Lei 9.605/98, do art. art. 107 do Decreto 6.514/2008 e art. 25 da Instrução Normativa nº 19/2014 do IBAMA. 6. Ação julgada procedente para declarar a ilegitimidade da interpretação dos arts. 25, §§1º e 2º da Lei 9.605/1998, bem como dos artigos 101, 102 e 103 do Decreto 6.514/2008 e demais normas infraconstitucionais, em sentido contrário à norma do art. 225, §1º, VII, da CF/88, com a proibição de abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos"[4] (g.n.).

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No mesmo sentido, em 06-10-2016, no julgamento da ADI 4.983/CE, no qual o Tribunal Pleno do Egrégio Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da prática cultural da vaquejada, o Ministro Relator Marco Aurélio, já havia anotado que "a vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes".

Em idêntico sentido, em 09-5-2005, no julgamento da ADI 2.514/CE, em que se pretendia a proibição da "rinha de galo", acolhendo o voto do Ministro Relator Eros Grau, o Tribunal Pleno do Egrégio Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 11.366/00 do Estado de Santa Catarina, entendendo que a sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição Federal.

Todos os julgados apresentados se relacionam de forma direta com o tema em análise, o equilíbrio do meio ambiente e a proteção da fauna, a harmonizar o desenvolvimento humano com a natureza, ainda que vistos sob pontos específicos de cada caso.

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Assim, o uso de qualquer instrumento que possa vir a causar maus-tratos e/ou sofrimento aos animais deve ser repudiado, em observância ao comando da Carta Magna. Logo, mesmo que a atividade seja caracterizada como lícita e permitida pelo ordenamento jurídico, traduzindo em manifestação cultural (artigo 225, § 7º, da Constituição Federal) e livre exercício de iniciativa econômica (artigo 170 da Constituição Federal), imperioso observar a proteção também constitucional do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, § 1º, VII da Constituição Federal), compatibilizando os conteúdos normativos.

Nessa linha, é essencial pontuar que a crueldade e os maus tratos aos animais não redundam na simples apreciação de atos de pancadas, espancamento ou qualquer brutalidade reprovável aos olhos da sociedade, e sim na correta avaliação de dor e sofrimento vivenciado pelos animais em decorrência da conduta humana. E essa análise não é tão fácil e simples de realizar quando se trata de cavalos, pois estes seres vivos não expressam dor com mínimo de desconforto.

Alexander Nevzorov[5], ex-cavaleiro e fundador da escola de equitação Nevzorov Haute Ecole, que não monta desde 2008, esclarece que "o cavalo, para sua infelicidade, foi criado de tal modo que ele pode disfarçar qualquer dor, exceto a mais insuportável, até o fim, sem demonstrá-la de modo algum, e esforçando-se por não apresentar qualquer mudança em seu comportamento externo (...). Na natureza selvagem, o cavalo que demonstra dor, fraqueza ou uma enfermidade, ao mesmo tempo se condena a ser devorado (...) ou a ser rebaixado na escala hierárquica do seu rebanho."

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Cabe frisar que o ônus da prova nas ações ambientais é, em regra, do poluidor que tem todas as prerrogativas constitucionais asseguradas no art. 5º, incisos LIV, LV e LVI da Constituição Federal. Entretanto, apesar de titular de tais prerrogativas, havendo lesão ou ameaça a direito material de natureza ambiental o poluidor já sabe desde o início que é obrigado a provar tudo o que for possível e interessante para o desfecho da questão, não podendo ao final da ação alegar cerceamento de direito de defesa até porque sabia quais eram as regras diante de todo o regramento do processo ambiental.

Além disso, inverte-se o ônus da prova nas demandas ambientais primeiro porque o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é de responsabilidade e interesse público, até pela sua natureza jurídica de bem difusos, pertencente a todos de forma indistinta, bem como, porque a responsabilidade sobre os danos causados é objetiva, de acordo com o disposto no artigo 14 da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, independendo de comprovação de culpa do agente: basta que se prove o dano e o nexo de causalidade, para que haja responsabilização do agente. Por essas razões, a inversão do ônus da prova aplica-se às ações ambientais (cf. Súmula 618/STJ)[6].

Dessa forma, é perfeitamente subsumível à hipótese em tela o Princípio da Precaução, um dos princípios basilares do Direito Ambiental, o qual foi incorporado ao Direito Ambiental na "Conferência da Terra" ou ECO 92, e foi "inscrito expressamente na legislação pátria através da "Conferência sobre Mudanças do Clima", acordado pelo Brasil no âmbito da Organização das Nações Unidas por ocasião da ECO 92, e ratificada pelo Congresso Nacional via Decreto Legislativo 1, de 3 de fevereiro de 1994"[7].

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Do mesmo modo, ÁLVARO LUIZ VALERY MIRRA preleciona que "o motivo para a adoção de um posicionamento dessa natureza é simples: em muitas situações, torna-se verdadeiramente imperativa a cessão de atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente, mesmo diante de controvérsias científicas em relação aos seus efeitos nocivos. Isso porque, segundo se entende, nessas hipóteses, o dia em que se puder ter certeza absoluta dos efeitos prejudiciais das atividades questionadas, os danos por elas provocados no meio ambiente e na saúde e segurança da população terá atingido tamanha amplitude e dimensão que não poderão mais ser revertidos ou reparados - serão já nessa ocasião irreversíveis"[8].

Tal se justifica, de acordo com a Ministra CÁRMEN LÚCIA, quando do julgamento ocorrido em 01-10-2021, no Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.336.187, porque "o princípio da precaução vincula-se diretamente aos conceitos de necessidade de afastamento de perigo e adoção de segurança dos procedimentos, para garantia das gerações futuras, tornando-se efetiva a sustentabilidade ambiental das ações humanas. Esse princípio torna efetiva a busca constante de resguardo da existência humana, seja pela proteção da fauna e da flora, seja pela garantia das condições de respeito à saúde e integridade física, considerados o indivíduo e a sociedade"[9].

Diante da utilização de instrumentos que interferem no comportamento do animal, submetendo-o a maus-tratos, crueldades e atos desumanos desmedidos impõe-se a adoção de medidas destinadas a sua salvaguarda.

[1]"Art. 225 da CF/88: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". O parágrafo 1º do referido artigo 225 dispõe que "para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público...inciso VII - proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade".

[2]Art. 32, caput da Lei n° 9.605/98: Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

[3]"Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral" in Revista de Direito Público IOB n. 19, jan-fev/2008, pp. 21/25.

[4]STF, ADPF nº 640/DF, Tribunal Pleno, Rel. Ministro GILMAR MENDES, j. 20/09/2021.

[5]NEVZOROV, Alexander. The horse crucified and risen. Nevzorov Haute Ecole, 2011, pp. 82/83.

[6]REsp n. 1.818.008/RO, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13/10/2020; AgInt no TP n. 2.476/RJ, relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 1/9/2020; AgInt no AREsp n. 1.373.360/PR, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 14/10/2019; e AgInt no AREsp n. 1.311.669/SC, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 3/12/2018.

[7]Ibidem, p. 103/104.

[8]"Princípios Fundamentais do Direito Ambiental" in Revista de Direito Ambiental, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 62.

[9]ARE nº 1336187, relatora Ministra Cármen Lúcia, julgado em 01/10/2021.

*Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser, procuradora de Justiça / Ministério Público do Estado de São Paulo e associada do Movimento do Ministério Público Democrático

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica

Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser. Foto: MPD/Divulgação

A Constituição Federal expressamente veda a prática de crueldade contra os animais[1].

No nosso ordenamento jurídico, a prática de abuso e maus-tratos em animais configura crime ambiental (artigo 32 da Lei n° 9.605/1998[2]), a revelar o repúdio à adoção de métodos cruéis.

Ainda, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais da Organização das Nações Unidas prevê, em seu artigo 10, que "nenhum animal deve ser usado para divertimento do homem. A exibição dos animais e os espetáculos que os utilizam são incompatíveis com a dignidade do animal".

Com bem acentuam INGO WOLFGANG SARLET e de TIAGO FENSTERSEIFER[3]:

"A Constituição Federal brasileira, no seu art. 225, §1°, VII, enuncia de forma expressa a vedação de práticas que "provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade", o que sinaliza o reconhecimento, por parte do constituinte, do valor inerente a outras formas de vida não humanas, protegendo-as, inclusive, contra a ação humana, o que revela que não está buscando proteger (ao menos diretamente e em todos os casos) apenas o ser humano. É difícil conceber que o constituinte, ao proteger a vida de espécies naturais em face da sua ameaça de extinção, estivesse a promover unicamente a proteção de algum valor instrumental de espécies naturais; pelo contrário deixou transparecer uma tutela da vida em geral nitidamente não meramente instrumental em relação ao ser humano, mas numa perspectiva concorrente e interdependente. Especialmente no que diz com à vedação de práticas cruéis contra os animais, o constituinte revela de forma clara a sua preocupação com o bem-estar dos animais não humanos e a refutação de uma visão meramente instrumental da vida animal (...) Dessa forma, está a ordem constitucional reconhecendo a vida animal como um fim em si mesmo, de modo a superar o antropocentrismo kantiano (...) A ampliação da noção de dignidade da pessoa humana (a partir do reconhecimento da sua necessária dimensão ecológica) e o reconhecimento de uma dignidade da vida não humana apontam para um releitura do clássico contrato social em direção a uma espécie de contrato socioambiental (ou ecológico), com o objetivo de contemplar um espaço para tais entes naturais no âmbito da comunidade estatal".

Ainda, temos o artigo 193 da Constituição Bandeirante, o qual estabelece que "o Estado, mediante lei, criará um sistema de administração da qualidade ambiental, proteção, controle e desenvolvimento do meio ambiente e uso adequado dos recursos naturais, para organizar, coordenar e integrar as ações de órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, assegurada participação da coletividade, com o fim de: (...) Inciso X - proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem em risco a sua função ecológica e que provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais a crueldade, e fiscalizando a extração, produção, criação, métodos, abate, transporte, comercialização e consumo de seus espécimes e subprodutos". 

 Sobre o assunto, cabe destacar decisão proferida pelo Tribunal Pleno do Egrégio Supremo Tribunal Federal, em julgamento da ADPF 640/DF, cuja ementa segue transcrita:

"DIREITO CONSTITUCIONAL. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. DECISÕES DE ÓRGÃOS JUDICIAIS E ADMINISTRATIVOS QUE AUTORIZAM O ABATE DE ANIMAIS APREENDIDOS EM SITUAÇÕES DE MAUS-TRATOS. QUESTÃO DE RELEVANTE INTERESSE PÚBLICO ENVOLVENDO A INTERPRETAÇÃO DO ART. 225, §1º, VII, DA CF/88. CONHECIMENTO DA AÇÃO. INSTRUÇÃO DO FEITO. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO IMEDIATO DO MÉRITO. ART. 12 DA LEI 9.868/99. DECLARAÇÃO DA ILEGITIMIDADE DA INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 25, §§1º E 2º DA LEI 9.605/1998, BEM COMO DOS ARTIGOS 101, 102 E 103 DO DECRETO 6.514/2008, QUE VIOLEM AS NORMAS CONSTITUCIONAIS RELATIVAS À PROTEÇÃO DA FAUNA E À PROIBIÇÃO DA SUBMISSÃO DOS ANIMAIS À CRUELDADE. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO, NOS TERMOS DA INICIAL. 1. No caso, demonstrou-se a existência de decisões judiciais autorizando o abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos, em interpretação da legislação federal que viola a norma fundamental de proteção à fauna, prevista no art. 225, §1º, VII, da CF/88. A resistência dos órgãos administrativos à pretensão contida à inicial também demonstra a relevância constitucional da questão, o que justifica o conhecimento da ação. 2. A completa instrução do feito possibilita a conversão da ratificação de liminar em julgamento de mérito, nos termos do art. 12 da Lei 9.868/99. 3. A rigidez da Constituição de 1988 e o princípio da interpretação conforme a Constituição impedem o acolhimento de interpretações contrárias ao sentido hermenêutico do texto constitucional. 4. O art. 225, §1º, VII, da CF/88, impõe a proteção à fauna e proíbe qualquer espécie de maus-tratos aos animais, de modo a reconhecer o valor inerente a outras formas de vida não humanas, protegendo-as contra abusos. Doutrina e precedentes desta Corte. 5. As normas infraconstitucionais sobre a matéria seguem a mesma linha de raciocínio, conforme se observa do art. 25 da Lei 9.605/98, do art. art. 107 do Decreto 6.514/2008 e art. 25 da Instrução Normativa nº 19/2014 do IBAMA. 6. Ação julgada procedente para declarar a ilegitimidade da interpretação dos arts. 25, §§1º e 2º da Lei 9.605/1998, bem como dos artigos 101, 102 e 103 do Decreto 6.514/2008 e demais normas infraconstitucionais, em sentido contrário à norma do art. 225, §1º, VII, da CF/88, com a proibição de abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos"[4] (g.n.).

No mesmo sentido, em 06-10-2016, no julgamento da ADI 4.983/CE, no qual o Tribunal Pleno do Egrégio Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da prática cultural da vaquejada, o Ministro Relator Marco Aurélio, já havia anotado que "a vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes".

Em idêntico sentido, em 09-5-2005, no julgamento da ADI 2.514/CE, em que se pretendia a proibição da "rinha de galo", acolhendo o voto do Ministro Relator Eros Grau, o Tribunal Pleno do Egrégio Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 11.366/00 do Estado de Santa Catarina, entendendo que a sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição Federal.

Todos os julgados apresentados se relacionam de forma direta com o tema em análise, o equilíbrio do meio ambiente e a proteção da fauna, a harmonizar o desenvolvimento humano com a natureza, ainda que vistos sob pontos específicos de cada caso.

Assim, o uso de qualquer instrumento que possa vir a causar maus-tratos e/ou sofrimento aos animais deve ser repudiado, em observância ao comando da Carta Magna. Logo, mesmo que a atividade seja caracterizada como lícita e permitida pelo ordenamento jurídico, traduzindo em manifestação cultural (artigo 225, § 7º, da Constituição Federal) e livre exercício de iniciativa econômica (artigo 170 da Constituição Federal), imperioso observar a proteção também constitucional do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, § 1º, VII da Constituição Federal), compatibilizando os conteúdos normativos.

Nessa linha, é essencial pontuar que a crueldade e os maus tratos aos animais não redundam na simples apreciação de atos de pancadas, espancamento ou qualquer brutalidade reprovável aos olhos da sociedade, e sim na correta avaliação de dor e sofrimento vivenciado pelos animais em decorrência da conduta humana. E essa análise não é tão fácil e simples de realizar quando se trata de cavalos, pois estes seres vivos não expressam dor com mínimo de desconforto.

Alexander Nevzorov[5], ex-cavaleiro e fundador da escola de equitação Nevzorov Haute Ecole, que não monta desde 2008, esclarece que "o cavalo, para sua infelicidade, foi criado de tal modo que ele pode disfarçar qualquer dor, exceto a mais insuportável, até o fim, sem demonstrá-la de modo algum, e esforçando-se por não apresentar qualquer mudança em seu comportamento externo (...). Na natureza selvagem, o cavalo que demonstra dor, fraqueza ou uma enfermidade, ao mesmo tempo se condena a ser devorado (...) ou a ser rebaixado na escala hierárquica do seu rebanho."

Cabe frisar que o ônus da prova nas ações ambientais é, em regra, do poluidor que tem todas as prerrogativas constitucionais asseguradas no art. 5º, incisos LIV, LV e LVI da Constituição Federal. Entretanto, apesar de titular de tais prerrogativas, havendo lesão ou ameaça a direito material de natureza ambiental o poluidor já sabe desde o início que é obrigado a provar tudo o que for possível e interessante para o desfecho da questão, não podendo ao final da ação alegar cerceamento de direito de defesa até porque sabia quais eram as regras diante de todo o regramento do processo ambiental.

Além disso, inverte-se o ônus da prova nas demandas ambientais primeiro porque o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é de responsabilidade e interesse público, até pela sua natureza jurídica de bem difusos, pertencente a todos de forma indistinta, bem como, porque a responsabilidade sobre os danos causados é objetiva, de acordo com o disposto no artigo 14 da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, independendo de comprovação de culpa do agente: basta que se prove o dano e o nexo de causalidade, para que haja responsabilização do agente. Por essas razões, a inversão do ônus da prova aplica-se às ações ambientais (cf. Súmula 618/STJ)[6].

Dessa forma, é perfeitamente subsumível à hipótese em tela o Princípio da Precaução, um dos princípios basilares do Direito Ambiental, o qual foi incorporado ao Direito Ambiental na "Conferência da Terra" ou ECO 92, e foi "inscrito expressamente na legislação pátria através da "Conferência sobre Mudanças do Clima", acordado pelo Brasil no âmbito da Organização das Nações Unidas por ocasião da ECO 92, e ratificada pelo Congresso Nacional via Decreto Legislativo 1, de 3 de fevereiro de 1994"[7].

Do mesmo modo, ÁLVARO LUIZ VALERY MIRRA preleciona que "o motivo para a adoção de um posicionamento dessa natureza é simples: em muitas situações, torna-se verdadeiramente imperativa a cessão de atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente, mesmo diante de controvérsias científicas em relação aos seus efeitos nocivos. Isso porque, segundo se entende, nessas hipóteses, o dia em que se puder ter certeza absoluta dos efeitos prejudiciais das atividades questionadas, os danos por elas provocados no meio ambiente e na saúde e segurança da população terá atingido tamanha amplitude e dimensão que não poderão mais ser revertidos ou reparados - serão já nessa ocasião irreversíveis"[8].

Tal se justifica, de acordo com a Ministra CÁRMEN LÚCIA, quando do julgamento ocorrido em 01-10-2021, no Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.336.187, porque "o princípio da precaução vincula-se diretamente aos conceitos de necessidade de afastamento de perigo e adoção de segurança dos procedimentos, para garantia das gerações futuras, tornando-se efetiva a sustentabilidade ambiental das ações humanas. Esse princípio torna efetiva a busca constante de resguardo da existência humana, seja pela proteção da fauna e da flora, seja pela garantia das condições de respeito à saúde e integridade física, considerados o indivíduo e a sociedade"[9].

Diante da utilização de instrumentos que interferem no comportamento do animal, submetendo-o a maus-tratos, crueldades e atos desumanos desmedidos impõe-se a adoção de medidas destinadas a sua salvaguarda.

[1]"Art. 225 da CF/88: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". O parágrafo 1º do referido artigo 225 dispõe que "para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público...inciso VII - proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade".

[2]Art. 32, caput da Lei n° 9.605/98: Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

[3]"Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral" in Revista de Direito Público IOB n. 19, jan-fev/2008, pp. 21/25.

[4]STF, ADPF nº 640/DF, Tribunal Pleno, Rel. Ministro GILMAR MENDES, j. 20/09/2021.

[5]NEVZOROV, Alexander. The horse crucified and risen. Nevzorov Haute Ecole, 2011, pp. 82/83.

[6]REsp n. 1.818.008/RO, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13/10/2020; AgInt no TP n. 2.476/RJ, relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 1/9/2020; AgInt no AREsp n. 1.373.360/PR, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 14/10/2019; e AgInt no AREsp n. 1.311.669/SC, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 3/12/2018.

[7]Ibidem, p. 103/104.

[8]"Princípios Fundamentais do Direito Ambiental" in Revista de Direito Ambiental, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 62.

[9]ARE nº 1336187, relatora Ministra Cármen Lúcia, julgado em 01/10/2021.

*Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser, procuradora de Justiça / Ministério Público do Estado de São Paulo e associada do Movimento do Ministério Público Democrático

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica

Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser. Foto: MPD/Divulgação

A Constituição Federal expressamente veda a prática de crueldade contra os animais[1].

No nosso ordenamento jurídico, a prática de abuso e maus-tratos em animais configura crime ambiental (artigo 32 da Lei n° 9.605/1998[2]), a revelar o repúdio à adoção de métodos cruéis.

Ainda, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais da Organização das Nações Unidas prevê, em seu artigo 10, que "nenhum animal deve ser usado para divertimento do homem. A exibição dos animais e os espetáculos que os utilizam são incompatíveis com a dignidade do animal".

Com bem acentuam INGO WOLFGANG SARLET e de TIAGO FENSTERSEIFER[3]:

"A Constituição Federal brasileira, no seu art. 225, §1°, VII, enuncia de forma expressa a vedação de práticas que "provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade", o que sinaliza o reconhecimento, por parte do constituinte, do valor inerente a outras formas de vida não humanas, protegendo-as, inclusive, contra a ação humana, o que revela que não está buscando proteger (ao menos diretamente e em todos os casos) apenas o ser humano. É difícil conceber que o constituinte, ao proteger a vida de espécies naturais em face da sua ameaça de extinção, estivesse a promover unicamente a proteção de algum valor instrumental de espécies naturais; pelo contrário deixou transparecer uma tutela da vida em geral nitidamente não meramente instrumental em relação ao ser humano, mas numa perspectiva concorrente e interdependente. Especialmente no que diz com à vedação de práticas cruéis contra os animais, o constituinte revela de forma clara a sua preocupação com o bem-estar dos animais não humanos e a refutação de uma visão meramente instrumental da vida animal (...) Dessa forma, está a ordem constitucional reconhecendo a vida animal como um fim em si mesmo, de modo a superar o antropocentrismo kantiano (...) A ampliação da noção de dignidade da pessoa humana (a partir do reconhecimento da sua necessária dimensão ecológica) e o reconhecimento de uma dignidade da vida não humana apontam para um releitura do clássico contrato social em direção a uma espécie de contrato socioambiental (ou ecológico), com o objetivo de contemplar um espaço para tais entes naturais no âmbito da comunidade estatal".

Ainda, temos o artigo 193 da Constituição Bandeirante, o qual estabelece que "o Estado, mediante lei, criará um sistema de administração da qualidade ambiental, proteção, controle e desenvolvimento do meio ambiente e uso adequado dos recursos naturais, para organizar, coordenar e integrar as ações de órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, assegurada participação da coletividade, com o fim de: (...) Inciso X - proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem em risco a sua função ecológica e que provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais a crueldade, e fiscalizando a extração, produção, criação, métodos, abate, transporte, comercialização e consumo de seus espécimes e subprodutos". 

 Sobre o assunto, cabe destacar decisão proferida pelo Tribunal Pleno do Egrégio Supremo Tribunal Federal, em julgamento da ADPF 640/DF, cuja ementa segue transcrita:

"DIREITO CONSTITUCIONAL. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. DECISÕES DE ÓRGÃOS JUDICIAIS E ADMINISTRATIVOS QUE AUTORIZAM O ABATE DE ANIMAIS APREENDIDOS EM SITUAÇÕES DE MAUS-TRATOS. QUESTÃO DE RELEVANTE INTERESSE PÚBLICO ENVOLVENDO A INTERPRETAÇÃO DO ART. 225, §1º, VII, DA CF/88. CONHECIMENTO DA AÇÃO. INSTRUÇÃO DO FEITO. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO IMEDIATO DO MÉRITO. ART. 12 DA LEI 9.868/99. DECLARAÇÃO DA ILEGITIMIDADE DA INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 25, §§1º E 2º DA LEI 9.605/1998, BEM COMO DOS ARTIGOS 101, 102 E 103 DO DECRETO 6.514/2008, QUE VIOLEM AS NORMAS CONSTITUCIONAIS RELATIVAS À PROTEÇÃO DA FAUNA E À PROIBIÇÃO DA SUBMISSÃO DOS ANIMAIS À CRUELDADE. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO, NOS TERMOS DA INICIAL. 1. No caso, demonstrou-se a existência de decisões judiciais autorizando o abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos, em interpretação da legislação federal que viola a norma fundamental de proteção à fauna, prevista no art. 225, §1º, VII, da CF/88. A resistência dos órgãos administrativos à pretensão contida à inicial também demonstra a relevância constitucional da questão, o que justifica o conhecimento da ação. 2. A completa instrução do feito possibilita a conversão da ratificação de liminar em julgamento de mérito, nos termos do art. 12 da Lei 9.868/99. 3. A rigidez da Constituição de 1988 e o princípio da interpretação conforme a Constituição impedem o acolhimento de interpretações contrárias ao sentido hermenêutico do texto constitucional. 4. O art. 225, §1º, VII, da CF/88, impõe a proteção à fauna e proíbe qualquer espécie de maus-tratos aos animais, de modo a reconhecer o valor inerente a outras formas de vida não humanas, protegendo-as contra abusos. Doutrina e precedentes desta Corte. 5. As normas infraconstitucionais sobre a matéria seguem a mesma linha de raciocínio, conforme se observa do art. 25 da Lei 9.605/98, do art. art. 107 do Decreto 6.514/2008 e art. 25 da Instrução Normativa nº 19/2014 do IBAMA. 6. Ação julgada procedente para declarar a ilegitimidade da interpretação dos arts. 25, §§1º e 2º da Lei 9.605/1998, bem como dos artigos 101, 102 e 103 do Decreto 6.514/2008 e demais normas infraconstitucionais, em sentido contrário à norma do art. 225, §1º, VII, da CF/88, com a proibição de abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos"[4] (g.n.).

No mesmo sentido, em 06-10-2016, no julgamento da ADI 4.983/CE, no qual o Tribunal Pleno do Egrégio Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da prática cultural da vaquejada, o Ministro Relator Marco Aurélio, já havia anotado que "a vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes".

Em idêntico sentido, em 09-5-2005, no julgamento da ADI 2.514/CE, em que se pretendia a proibição da "rinha de galo", acolhendo o voto do Ministro Relator Eros Grau, o Tribunal Pleno do Egrégio Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 11.366/00 do Estado de Santa Catarina, entendendo que a sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição Federal.

Todos os julgados apresentados se relacionam de forma direta com o tema em análise, o equilíbrio do meio ambiente e a proteção da fauna, a harmonizar o desenvolvimento humano com a natureza, ainda que vistos sob pontos específicos de cada caso.

Assim, o uso de qualquer instrumento que possa vir a causar maus-tratos e/ou sofrimento aos animais deve ser repudiado, em observância ao comando da Carta Magna. Logo, mesmo que a atividade seja caracterizada como lícita e permitida pelo ordenamento jurídico, traduzindo em manifestação cultural (artigo 225, § 7º, da Constituição Federal) e livre exercício de iniciativa econômica (artigo 170 da Constituição Federal), imperioso observar a proteção também constitucional do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, § 1º, VII da Constituição Federal), compatibilizando os conteúdos normativos.

Nessa linha, é essencial pontuar que a crueldade e os maus tratos aos animais não redundam na simples apreciação de atos de pancadas, espancamento ou qualquer brutalidade reprovável aos olhos da sociedade, e sim na correta avaliação de dor e sofrimento vivenciado pelos animais em decorrência da conduta humana. E essa análise não é tão fácil e simples de realizar quando se trata de cavalos, pois estes seres vivos não expressam dor com mínimo de desconforto.

Alexander Nevzorov[5], ex-cavaleiro e fundador da escola de equitação Nevzorov Haute Ecole, que não monta desde 2008, esclarece que "o cavalo, para sua infelicidade, foi criado de tal modo que ele pode disfarçar qualquer dor, exceto a mais insuportável, até o fim, sem demonstrá-la de modo algum, e esforçando-se por não apresentar qualquer mudança em seu comportamento externo (...). Na natureza selvagem, o cavalo que demonstra dor, fraqueza ou uma enfermidade, ao mesmo tempo se condena a ser devorado (...) ou a ser rebaixado na escala hierárquica do seu rebanho."

Cabe frisar que o ônus da prova nas ações ambientais é, em regra, do poluidor que tem todas as prerrogativas constitucionais asseguradas no art. 5º, incisos LIV, LV e LVI da Constituição Federal. Entretanto, apesar de titular de tais prerrogativas, havendo lesão ou ameaça a direito material de natureza ambiental o poluidor já sabe desde o início que é obrigado a provar tudo o que for possível e interessante para o desfecho da questão, não podendo ao final da ação alegar cerceamento de direito de defesa até porque sabia quais eram as regras diante de todo o regramento do processo ambiental.

Além disso, inverte-se o ônus da prova nas demandas ambientais primeiro porque o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é de responsabilidade e interesse público, até pela sua natureza jurídica de bem difusos, pertencente a todos de forma indistinta, bem como, porque a responsabilidade sobre os danos causados é objetiva, de acordo com o disposto no artigo 14 da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, independendo de comprovação de culpa do agente: basta que se prove o dano e o nexo de causalidade, para que haja responsabilização do agente. Por essas razões, a inversão do ônus da prova aplica-se às ações ambientais (cf. Súmula 618/STJ)[6].

Dessa forma, é perfeitamente subsumível à hipótese em tela o Princípio da Precaução, um dos princípios basilares do Direito Ambiental, o qual foi incorporado ao Direito Ambiental na "Conferência da Terra" ou ECO 92, e foi "inscrito expressamente na legislação pátria através da "Conferência sobre Mudanças do Clima", acordado pelo Brasil no âmbito da Organização das Nações Unidas por ocasião da ECO 92, e ratificada pelo Congresso Nacional via Decreto Legislativo 1, de 3 de fevereiro de 1994"[7].

Do mesmo modo, ÁLVARO LUIZ VALERY MIRRA preleciona que "o motivo para a adoção de um posicionamento dessa natureza é simples: em muitas situações, torna-se verdadeiramente imperativa a cessão de atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente, mesmo diante de controvérsias científicas em relação aos seus efeitos nocivos. Isso porque, segundo se entende, nessas hipóteses, o dia em que se puder ter certeza absoluta dos efeitos prejudiciais das atividades questionadas, os danos por elas provocados no meio ambiente e na saúde e segurança da população terá atingido tamanha amplitude e dimensão que não poderão mais ser revertidos ou reparados - serão já nessa ocasião irreversíveis"[8].

Tal se justifica, de acordo com a Ministra CÁRMEN LÚCIA, quando do julgamento ocorrido em 01-10-2021, no Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.336.187, porque "o princípio da precaução vincula-se diretamente aos conceitos de necessidade de afastamento de perigo e adoção de segurança dos procedimentos, para garantia das gerações futuras, tornando-se efetiva a sustentabilidade ambiental das ações humanas. Esse princípio torna efetiva a busca constante de resguardo da existência humana, seja pela proteção da fauna e da flora, seja pela garantia das condições de respeito à saúde e integridade física, considerados o indivíduo e a sociedade"[9].

Diante da utilização de instrumentos que interferem no comportamento do animal, submetendo-o a maus-tratos, crueldades e atos desumanos desmedidos impõe-se a adoção de medidas destinadas a sua salvaguarda.

[1]"Art. 225 da CF/88: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". O parágrafo 1º do referido artigo 225 dispõe que "para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público...inciso VII - proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade".

[2]Art. 32, caput da Lei n° 9.605/98: Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

[3]"Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral" in Revista de Direito Público IOB n. 19, jan-fev/2008, pp. 21/25.

[4]STF, ADPF nº 640/DF, Tribunal Pleno, Rel. Ministro GILMAR MENDES, j. 20/09/2021.

[5]NEVZOROV, Alexander. The horse crucified and risen. Nevzorov Haute Ecole, 2011, pp. 82/83.

[6]REsp n. 1.818.008/RO, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13/10/2020; AgInt no TP n. 2.476/RJ, relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 1/9/2020; AgInt no AREsp n. 1.373.360/PR, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 14/10/2019; e AgInt no AREsp n. 1.311.669/SC, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 3/12/2018.

[7]Ibidem, p. 103/104.

[8]"Princípios Fundamentais do Direito Ambiental" in Revista de Direito Ambiental, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 62.

[9]ARE nº 1336187, relatora Ministra Cármen Lúcia, julgado em 01/10/2021.

*Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser, procuradora de Justiça / Ministério Público do Estado de São Paulo e associada do Movimento do Ministério Público Democrático

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica

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