Uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) trouxe aos casais formados por pessoas de mais de 70 anos a possibilidade de optar por regimes diferentes da separação de bens em casamentos ou uniões estáveis. A medida vem a calhar em um momento em que a sociedade vem debatendo cada vez mais a questão do etarismo, em um cenário em que a expectativa de vida dos brasileiros retoma o crescimento após o impacto da pandemia de covid-19.
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A expectativa de vida no Brasil tem aumentado progressivamente, com a evolução interrompida somente pela pandemia, nos anos de 2020 e 2021. Para se ter uma ideia, na década de 1980, a expectativa média de vida não chegava aos 70 anos. Atualmente, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), está em 75,5 anos. Não por acaso, revisões previdenciárias já foram feitas nos últimos anos e tudo indica que serão novamente requeridas se o país quiser manter o equilíbrio do sistema. Por uma conjunção de fatores – dentre os quais a necessidade e o desejo de contribuir por mais tempo com a sociedade –, a longevidade é acompanhada da ampliação no tempo de trabalho e de intensificação das relações sociais dos brasileiros. Como destacou o relator do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642, ministro Luís Roberto Barroso, obrigar o regime de separação de bens apenas em função da idade representa um impedimento à prática de atos civis a pessoas em pelo gozo de suas faculdades mentais.
O recurso extraordinário que levou à discussão não obteve provimento do STF, sobretudo pelo fato de que um dos cônjuges já havia falecido. Contudo, o julgado trouxe luz a um relevante tema que precisa de maior reflexão da sociedade, o etarismo, que, segundo afirmou o relator, é um tipo de discriminação que deve ser combatido e que está expressamente proibido no artigo 3°, inciso IV da Constituição Federal.
O ministro Barroso fez uma alerta sobre a visão utilitarista de se limitar os direitos dos idosos para satisfazer interesses dos herdeiros. Em sua análise, a prática viola o princípio da autonomia. “Utilizar a idade como elemento de desequiparação entre as pessoas é vedado pela Constituição Federal, sendo ilegítimo, uma vez que são pessoas maiores e capazes. Considero que a interpretação que dê cogência a esse dispositivo seja inconstitucional”, declarou durante o julgamento.
O ministro relator também apresentou um histórico de mais de um século do Código Civil para mostrar que a legislação que prevê a separação compulsória de bens acompanhou o aumento da expectativa no país. Os ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e a ministra Cármen Lúcia acompanharam o voto do relator.
Por ter repercussão geral, a tese agora serve para balizar casos semelhantes em todo o país. “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, 2, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes por escritura pública”, diz o texto.
A regra que estava prevista no Código Civil – agora derrubada – foi elaborada com o objetivo de evitar fraudes e golpes e seria uma forma de proteger aqueles que eventualmente estejam em situação de vulnerabilidade em função de limitações advindas com a idade. Contudo, o aumento da expectativa e da qualidade de vida têm, de modo geral, postergado essas limitações.
Vale ressaltar que a corte teve o cuidado de manter alguma proteção aos maiores de 70 anos, pois, para afastar a obrigatoriedade prevista no Código Civil, é necessário que as partes manifestem sua vontade por meio de escritura pública registrada em cartório. Portanto, o regime de separação de bens obrigatório após os 70 anos não foi totalmente declarado inconstitucional. Há ainda um rito a ser seguido para viabilizar a opção por outros regimes. Tal medida certamente dificulta passos impensados ou eventuais atos de oportunismo e exploração.
Também é de se destacar o cuidado que a corte teve em relação à segurança jurídica. Para aqueles que já consolidaram uma união estável ou casamento após a idade em questão, é possível fazer a alteração, mas com efeitos patrimoniais apenas a partir da mudança do regime. Nos casos de casamento, será necessário que esse trâmite ocorra por meio de autorização judicial e, nos casos de união estável, a manifestação deverá ser registrada por meio de escritura pública.
Também houve o cuidado na modulação, a partir de proposta feita pelo ministro Cristiano Zanin, com a definição de que o novo entendimento não vai retroagir, ou seja, não se aplicará a casos de herança ou divisão de bens que já estejam tramitando no Judiciário.
É fundamental que o direito seja vivo e evolua conforme a realidade social passa por transformações. Ao mesmo tempo, não é razoável que mudanças abruptas impactem a vida de milhares de pessoas com mudanças de regras no meio do jogo. Portanto, a condução do Supremo Tribunal Federal foi exemplar nesse caso, conciliando a necessidade de modernização com a sempre indispensável segurança jurídica.
Melhor ainda seria a reafirmação desse entendimento por via legislativa. O fim do regime da separação obrigatória de bens está entre os temas sob análise da Comissão de Juristas composta para propor o anteprojeto de lei para a reforma do Código Civil. Com a questão em debate no âmbito da reforma, esse certamente é um ponto que deve ser consolidado e melhor detalhado em uma futura legislação.