O governo federal publicou no começo de abril os decretos 11.466 e 11.467, que afetam os investimentos do setor de saneamento básico. Diversos aspectos levantaram discussão no mercado, com receio de um possível retrocesso, sobretudo após a Medida Provisória nº 1.154. A MP, editada no primeiro dia do ano, ameaça a subtração de competências da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) para a instituição de normas de referência, um dos principais pilares de segurança jurídica conquistados pelo setor.
Um dos aspectos mais criticados é a prorrogação do prazo para o requerimento de comprovação de capacidade econômico-financeira, que foi de 31 de março de 2022 para 31 de dezembro de 2023. Nesse novo intervalo, poderão ser contabilizadas operações irregulares compreendendo contratos precários ou sequer formalizados. No caso de não serem atingidos os referenciais mínimos previstos no Decreto 11.446, o prestador poderá apresentar um plano de metas para atingir os referenciais em até cinco anos. Tais previsões visam dar sobrevida a estatais com limitada capacidade de investimento - as companhias de água e esgoto de Acre, Maranhão, Piauí, Roraima e Tocantins sequer enviaram documentação para a ANA no prazo anterior e se encontravam em situação irregular e sob o risco de serem substituídas.
O adiamento do prazo para a formação de blocos regionais, de 31 de março de 2023 para 31 de dezembro de 2025, é outro alvo de críticas por ser uma das principais apostas do novo marco para ampliar o "ticket" de projetos a partir da combinação de municípios rentáveis e deficitários em bloco único ("filé com osso"). Essa nova revisão de metas torna improvável atingir a universalização dos serviços até 2033. O adiamento de metas, aliás, tem sido uma constante no setor, que convive com frustração de expectativas desde 2007, com a Lei nº 11.445. Portanto, é natural que haja apreensão com os atuais decretos.
Outro aspecto criticado diz respeito à possibilidade de prestação direta de serviços por empresa estadual em municípios de região metropolitana ou microrregião. O Decreto nº 11.467 encampa uma visão um tanto polêmica do art. 8º, II, da Lei nº 11.445 ao permitir a prestação de serviços sem licitação, a partir de mera autorização da entidade de governança interfederativa. O tema é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7335 movida pela Associação e Sindicato das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON/ SINDCON) no STF questionando Lei Complementar editada em 2021 pela Paraíba.
Apesar da repercussão negativa, há aspectos potencialmente positivos nos decretos. O Decreto 11.467 prioriza, na alocação de verbas federais, projetos cujas licitações sejam baseadas em modicidade tarifária e na antecipação de metas de universalização em detrimento do critério de maior valor de outorga. O ponto de interrogação é se os municípios irão se mobilizar para a delegação dos serviços sem a possibilidade de arrecadação de valor de outorga. Outra preocupação é que pode haver uma certa obscuridade entre priorizar a modicidade tarifária e a antecipação de metas, já que o último objetivo demanda ampliação de investimentos nos anos iniciais do projeto.
O Decreto nº 11.467 resolveu importante celeuma em torno do limite de 25% previsto no art. 11-A do Novo Marco do Saneamento envolvendo a subdelegação de serviços de saneamento básico, tornando claro que o limite não é aplicável a PPPs (parcerias público-privadas). Nesse sentido, em 13 de abril, a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) lançou edital de PPP envolvendo o esgotamento em 16 cidades da Microrregião Centro-Litoral do Paraná. O contrato será válido por 24 anos, para viabilizar o atingimento da meta de 90% até 2033. A celebração de PPPs de concessão para a prestação de serviços de esgotamento sanitário visa assegurar a sobrevida de empresas estaduais, responsáveis pelo fornecimento de água. Porém, o modelo torna permanentes as ineficiências operacionais que seriam eliminadas na concessão plena. Além disso, esse modelo de concessão implica risco de crédito pois está atrelado à solvência das empresas.
Por outro lado, considerando que a eliminação de prestadores ineficientes a partir da outorga de concessões plenas não parece ser um objetivo no cenário atual, a clareza da norma acerca da inaplicabilidade do limite de 25% tem potencial de gerar novas oportunidades de PPP de concessão administrativa para além do edital da Sanepar. Essa pode ser uma solução realista para compensar a redução do ritmo de projetos municipais.
Já as competências da ANA para a edição de normas de referência foram reforçadas no Decreto nº 11.467. Contudo, as normas deverão observar diretrizes da política federal de saneamento básico, inclusive estabelecidas pelo Ministério das Cidades. É de se esperar que haja coordenação produtiva entre as autoridades, de forma a assegurar a máxima eficiência à atividade da ANA.
Um balanço realista aponta que os decretos reduzem as ambições do Novo Marco do Saneamento, dando sobrevida a estatais ineficientes. Por outro lado, os decretos vêm acompanhados da promessa de ampliação de financiamento federal a municípios que aderirem a blocos regionais, além de criar novas oportunidades de PPP de esgotamento na modalidade de concessão administrativa, cujo sucesso dependerá da estruturação de garantias sólidas e da saúde financeira das companhias estaduais. Nesse aspecto, é interessante notar que a Fitch Ratings classificou como neutra a edição dos decretos, que em sua visão não impactariam significativamente os perfis de crédito das 18 companhias de controle público e privado classificadas pela agência.
*Roberto Lambauer, sócio de Direito Público do KLA Advogados
*Thiago Munhoz, advogado de Direito Público do KLA Advogados