Empreender no Brasil compreende não apenas saber das questões de mercado, mas também lidar com as inúmeras legislações tributárias e regulatórias existentes, bem como se defender de exageros fiscais que, interpretando de forma equivocada os negócios realizados, veem uma brecha para tributação mesmo que isso signifique contrariar à lei. Prova disso, são casos, como o que foi recentemente julgado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, e confirmou a anulação de uma multa fiscal milionária de ICMS sofrida por uma empresa produtora de gases industriais e medicinais.
A autuação fiscal promovida pelo Estado do Rio de Janeiro levanta uma questão desafiadora para os empresários brasileiros: a incidência - ou não - do imposto estadual em simples remessas de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte e na circulação de mercadorias, máquinas, utensílios e implementos a título de comodato.
Em descompasso com o entendimento do Poder Judiciário, os fiscos estaduais acabam autuando contribuintes em condições que não correspondem com o conceito previsto de que o ICMS é devido a partir de uma "operação mercantil relativa à circulação de mercadoria", o que se pressupõe um negócio jurídico de compra e venda onde uma pessoa (vendedor) se obriga a transferir para outra (comprador) o domínio de um bem corpóreo ou incorpóreo mediante pagamento.
No caso da simples remessa de bens para outro estabelecimento do próprio contribuinte, seja na mesma unidade federativa ou não, pode-se perceber que os requisitos do fato gerador estão ausentes: não há mercancia, não existe preço a ser pago, muito menos a alteração da titularidade do bem (a chamada circulação jurídica) que autorizem a cobrança do imposto.
Do mesmo modo o comodato, que, por ser um empréstimo gratuito de bem prontamente restituído no tempo convencionado pelas partes, não tem em si a aptidão de gerar transferência de propriedade, haja vista inexistir valor transacionado e, por consequência, impossível de ser tributado pelo ICMS.
Por isso, é refutável à alegação trazida nos autos pelo ente fiscal representando o Estado do Rio de Janeiro, cuja defesa afirmava "que a legislação atualmente é clara no sentido da incidência do ICMS sobre transferências de mercadorias entre estabelecimentos, ainda que do mesmo titular, sendo que somente se poderia imaginar o afastamento desta regra quando da sua declaração de inconstitucionalidade", e assim, ainda, alegou que "o Constituinte não exigiu que a operação relativa à circulação acarretasse em transferência de propriedade para caracterizar o fato gerado do ICMS", sobretudo, amparando seu argumento no inciso I do artigo 3.º da Lei Estadual n. 2.657/96. Com a decisão judicial, foi possível esclarecer que primeiro, "como se sabe, o fato gerador do ICMS é a circulação de mercadoria, o que só ocorre quando há a efetiva transferência de titularidade", e, ainda, ressaltar ao fisco que o "Órgão Especial deste Tribunal de Justiça ao julgar a Arguição de Inconstitucionalidade n. 0001513-02.2013.8.19.0000, declarou inconstitucional, por vício material, o artigo 3.º, inciso I, parte final ('ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular'), da Lei Estadual n. 2.657/96", corroborando a segurança jurídica para o caso em concreto.
Ainda, vale dizer que, em detrimento da lógica acerca da inocorrência do fato gerador do tributo, cujo entendimento encontra-se sumulado nos verbetes nº 573 do Supremo Tribunal Federal ("não constitui fato gerador do imposto de circulação de mercadorias a saída física de máquinas, utensílios e implementos a título de comodato") e nº 166 do Superior Tribunal de Justiça ("não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte"), as empresas ainda são autuadas nessas hipóteses, o que estabelece uma inaceitável insegurança jurídica.
Não é de hoje que muitas companhias com filiais em diferentes estados do Brasil se deparam com as situações descritas acima, acreditando estar amparados e agindo da forma correta, acabam tendo que se defender diante do contencioso administrativo e judicial.
Por outro lado, os estados enfrentam as razões jurídicas da ausência de tributação e exigem o imposto, ora com o argumento de que "somente bens destinados ao ativo permanente possuem a benesse da não incidência do ICMS", ou então que "apenas a circulação de mercadoria no mesmo estado da federação é que deve deixar de ser tributada", ou, o mais temerário, desvirtuam a realidade e, por muitas vezes, descaracterizam o comodato para considerá-lo uma compra e venda, e assim, tributá-lo.
Diante das súmulas apresentadas nesse texto, os contribuintes que sofrerem autuações amparadas nestes fundamentos podem e devem se defender, primordialmente em razão da necessária segurança jurídica, que é sempre prejudicada quando há desrespeito de entendimentos vinculantes e protetivos.
*Danilo Vicari Crastelo, Daniel Sircilli Motta e Paola Andrade, sócios e advogada do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados