A Procuradoria-Geral da República (PGR) suspeita que o desembargador Ivo de Almeida teria negociado e vendido decisões judiciais em ao menos quatro casos, a preços diferentes, considerando a “gravidade” dos processos. O mais sensível se refere a um narcotraficante internacional, que seria, segundo os investigadores, homem de confiança de Fernandinho Beira-Mar. A PGR indica que a propina negociada em tal caso era de R$ 1 milhão.
A PGR ainda vê indícios de suposta corrupção em habeas corpus que beneficiariam condenados por fraude, roubo e estelionato. Segundo o órgão, a atuação de Ivo no esquema sob suspeita se dava não só nas ações e procedimentos já sob sua relatoria, mas por direcionamento de distribuições de processos, “especialmente pela participação em plantões judiciários na capital paulista”.
As informações constam da manifestação que pediu aval do ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça, para a abertura da Operação Churrascada nesta quinta, 20, e para o afastamento de Ivo de Almeida de seu cargo por um ano. A ordem foi deferida após a PGR identificar uma “provável associação criminosa”, dividida em três núcleos (advogados, intermediadores e servidores públicos). Como mostrou Estadão, os investigados usavam senhas como “churrasco” e “picanha” para se referirem às negociações de venda de decisões.
O caso mais sensível sob investigação trata de indícios de ilícitos envolvendo os processos de Romilton Hosi, que foi preso em abril de 2002, acusado de ser dono de 449 quilos de cocaína. Ele passou anos foragido e foi preso em marco de 2019. Foi condenado a 39 anos de prisão por tráfico de drogas, porte ilegal de arma, uns de documento falso e associação para o tráfico. Ele é apontado como um dos homens de confiança de Fernandinho Beira Mar, diz a PGR. O órgão diz ainda que ele fugiu do Fórum de Campo Grande em 2002 após o pagamento de propina de R$ 1 milhão a policiais.
A Procuradoria-Geral da República analisou os processos envolvendo Romilton e constatou “conluio fraudulento entre advogados para direcionar a distribuição de processos e procedimentos de interesse do imputado à 1ª Câmara Criminal do TJSP”.
Os processos de Romilton inicialmente eram analisados pela 6ª Câmara Criminal, mas os advogados investigados teriam achado uma brecha para que o caso ficasse no colegiado do qual Ivo era parte, diz a PGR. Assim, segundo a Procuradoria, em setembro de 2020, tiveram início as tratativas acerca da corrupção do desembargador.
Neste caso, os representantes de Romilton eram o advogado Luiz Pires Moraes Neto e o guarda civil Wellignton, que trabalha no escritório de advocacia do primeiro. Segundo a PGR, ambos negociavam a venda de decisões judiciais com os interlocutores de Ivo de Almeida, dizem os investigadores.
A PGR diz que a dupla reconhecia a situação processual grave de Romilton, vez que se tratava de um narcotraficante internacional. O guarda teria dito a Luiz que Ivo de Almeida teria constatado que o caso era delicado e “demandaria cuidado do julgador para manipulação da decisão”. Ainda de acordo com a mensagem, o “desembargador estaria empenhado em corromper mais um membro da Câmara”, narrou a PGR.
Foi então que Luiz revelou que o valor disponível para a propina, naquele caso, era de R$ 1 milhão. Wellington respondeu que já havia repassado a informação sobre o valor da propina para Wilson, interlocutor de Ivo de Almeida.
Segundo a PGR, Luiz foi até o Paraguai buscar o dinheiro para pagamento da propina. Com base nos diálogos entre os alvos da Churrascada, os investigadores ainda lançam suspeitas de que Ivo de Almeida “pode ter tentado ajustar o voto com um segundo julgador, que não teria aceitado a oferta, dado a delicadeza inerente ao caso”.
A PGR aponta ampla movimentação dos investigados para autorizar a transferência de Romilton para o presídio de Campo Grande, com o objetivo de facilitar uma nova tentativa de fuga do narcotraficante.
“A partir das conversas se extrai que, ao desembargador Ivo de Almeida, por meio de Wilson Vital de Menezes Junior, foi oferecida a importância de R$ 1 milhão. Afirma-se categoricamente que o desembargador aceitou a proposta de “venda de decisão judicial”, mas houve dificuldades, pelas peculiaridades do caso concreto, em convencer os demais membros da Câmara a participar da corrupção”, narrou a PGR.
Lívia, condenada por fraude com prejuízo de R$ 3,1 milhões
Um dos outros processos nos quais haveria indícios de venda de decisão judicial é o de Lívia Carnicer Sacoman, condenada a 8 anos e quatro meses de prisão por furto mediante fraude, por 158 vezes, causando um prejuízo de R$ 3,1 milhões. Segundo a PF, foram encontrados diálogos para direcionamento de habeas corpus a Ivo de Almeida em plantão judiciário “a fim de assegurar a possibilidade de compra da decisão”.
Neste caso, a senha picanha seria referente ao caso que se pretendia direcionar a Ivo, dizem os investigadores. Junto do diálogo, o guarda civil Wellington Pires da Silva teria encaminhado ao interlocutor de Ivo no Tribunal de Justiça a petição inicial do habeas corpus em favor de Lívia.
Segundo a PF, Wellington chegou a questionar de Ivo já teria uma posição sobre a possibilidade de conceder a ordem, mediante pagamento indevido. O interlocutor, Valmi, diz ter um encontro presencial com o magistrado para tratar do assunto com o desembargador.
Com base no mesmo diálogo, a Polícia Federal observou que Wellington revelou pretender fazer os pagamentos de propina ao desembargador por meio de um autoposto, do qual Valmi era sócio. A PF encontrou transações financeiras atípicas nas contas dos investigados e do autoposto, as quais remontam a maio de 2017.
Adomervil e Sergio Audi, condenados por roubo e estelionato
Outro caso na mira dos investigadores envolve Adomervil Vieira Santana, condenado a 7 anos de prisão em regime fechado por estelionato e roubo, como antecipou o Estadão. Segundo a PF, neste caso, Wellington tratou do caso como um outro interlocutor de Ivo. No dia 11 de março de 2019, o advogado encaminhou uma captura de tela do processo no sistema do TJSP pedindo que Wilson, o interlocutor, interviesse junto a Ivo, “questionando qual valor seria cobrado pelo magistrado para favorecer o paciente”.
Os investigadores narram que Wilson retornou o contato, sinalizando que o desembargador teria aceitado a proposta. O advogado disse que a família do beneficiário do habeas corpus teria sinalizado que venderia obras de arte para viabilizar o pagamento da propina. Segundo Wilson, o preço “costumeiramente cobrado” para a venda de decisões era de R$ 100 mil a R$ 150 mil.
No entanto, Adomervil acabou não conseguindo levantar o valor acordado e assim, segundo a PF, o habeas corpus foi negado. Ainda de acordo com os investigadores, “as partes deixaram em aberto a possibilidade de negociações futuras”.
Como mostrou o Blog, posteriormente, o recurso de apelação de Adormevil foi parcialmente acolhido pelo TJSP, mudando o regime de cumprimento de pena do réu para o semiaberto. Para a PF, Ivo de Almeida, relator do caso, contrariou sua própria linha jurisprudencial, ao propor a mudança do regime.
“O tratamento dispensado de Adomervil reforça o que as mensagens antes expostas revelaram. Após as negociações envolvendo o habeas corpus, os interlocutores mantiveram margem para negociações futuras para “venda de decisões” de Ivo de Almeida”, sustentou a PF ao STJ.
Os investigadores ainda identificaram possíveis ilicitudes em outros dois habeas corpus favorecendo Adomervil e outro investigado condenado no mesmo processo, Sergio Audi. Em um dos casos, a PF aponta indícios de que foram pagos R$ 100 mil a Ivo em troca de decisão favorável. No outro processo, o magistrado teria reconsiderado a decisão proferida por um colega no plantão judiciário, que negava o pedido do investigado.
Dez dias depois da primeira negativa, por parte de outro magistrado, Ivo teria colocado Audi em prisão domiciliar. A PF suspeita de transações feitas pelo advogado Luiz Pires à conta do auto posto de Wilson poucos das antes da decisão que beneficiou Audi.
Diogo e Almir, presos por roubo
A PF investiga ainda à atuação de Ivo em dois habeas corpus envolvendo a prisão em flagrante de Diogo Concórdia da Silva e Almir Gustavo Miranda. Eles foram capturados em 2015 pela tentativa de roubo de um caminhão que transportava R$ 320 mil em alimentos.
Segundo a PF, Ivo negou, em um primeiro momento, habeas corpus que alegava excesso de prazo na investigação, considerando que os investigados estavam detidos há 14 meses. Depois da negativa, o advogado Luiz assumiu a defesa e pediu a reconsideração da decisão. Assim, ele conseguiu revogar as preventivas, com um acórdão lavrado por Ivo, relator.
Os investigadores consideram o caso suspeito em razão de um corréu de Diogo e Almir ter feito o mesmo pedido a Ivo, com o mesmo argumento, tendo a solicitação negada. A PF ainda questiona o fato de que a reconsideração pedida por Luiz ocorreu no mesmo dia em que houve depósito em espécie de R$ 65 mil na conta de um empreendimento imobiliário do qual Ivo de Almeida é sócio.